Economia

A Espanha pode sobreviver à crise

Madri faz hoje para parceiros a mesma pergunta feita por Monti: ‘Se fizermos a nossa parte, vocês farão a sua?’

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Por Luis Garicano*

Quando Willem Buiter, o economista chefe do Citigroup, declarou que a Espanha enfrenta um risco de moratória maior que nunca, os blogs na Internet e as seções de comentários nos jornais espanhóis imediatamente se encheram de obscuras teorias da conspiração.

“Os anglo-saxões estão ‘armando’ para a Espanha”, dizia uma delas. “Eles estão enciumados; não podiam aceitar o incrível desempenho econômico da Espanha nos últimos 25 anos”, propunha outra.

Pois o próprio Citibank não foi resgatado pelos contribuintes americanos, enquanto nenhum grande banco espanhol precisou de ajuda? O Reino Unido não precisou salvar o RBS e o Lloyds com grande custo, como reconheceu a UK Financial Investments? O Reino Unido e os Estados Unidos não sofreram uma forma pior da mesma doença que a Espanha, ou seja, uma bolha habitacional maciça alimentada por crédito, que deixou para trás um setor privado cronicamente superendividado?

As respostas, é claro, são: sim, sim e sim. Não podemos culpar os espanhóis por acreditarem nessas teorias da conspiração. No entanto, existe pelo menos um motivo econômico bastante sólido pelo qual as dificuldades da Espanha são muito piores que as sofridas pelo Reino Unido e os EUA: o euro.

Enquanto o Reino Unido e os EUA podem pedir empréstimos em suas próprias moedas, a Espanha deve fazê-lo em euros. Como disse Paul de Grauwe — coincidentemente o herdeiro da antiga cadeira de Buiter na Escola de Economia de Londres (mais material para teorias da conspiração?) –, o euro transformou países desenvolvidos como a Espanha e a Itália em países em desenvolvimento, expostos a paradas súbitas periódicas.

Se o Reino Unido não puder enfrentar suas obrigações, pode decidir monetarizá-las parcialmente, causando uma depreciação da libra esterlina e um aumento da competitividade que ajude a recuperar o crescimento. Se a Espanha enfrenta o mesmo problema, deve elevar as taxas de juros para manter os mutuários a bordo, o que mata o crescimento e piora a falta de confiança, colocando em movimento um círculo vicioso brutal.

A falta de autonomia monetária, portanto, faz que a Espanha também tenha pouca margem de manobra orçamentária. Diante de uma economia que está caindo em um buraco negro, a Espanha não tem escolha senão piorar as coisas ao aceitar as ordens europeias de reduzir o déficit para 3% em 2013, contra 8,5% em 2011. Compare isto com a previsão oficial do Reino Unido que, apesar de ter um crescimento maior, ainda pede um déficit de 5,9% em 2013-14, contra 8,3% em 2011-12.

Daí o orçamento brutal apresentado na última sexta-feira pelo Partido Popular, conservador, que governa a Espanha, visando reduções de gastos entre o governo central e as regiões de 55 bilhões de euros, ou 5,5% do PIB de 2012, com o objetivo de alcançar (depois de contabilizadas novas perdas de receitas) a meta de 5,3% para o fim do ano e 3% em 2013.

A Espanha pode evitar uma queda livre no estilo grego? Talvez. Mas para tanto deverá lidar com três problemas interligados: um índice de desemprego extremamente alto, um sistema financeiro carregado de ativos de valor dúbio e uma preocupante falta de disciplina fiscal entre os governos regionais.

Enquanto isso, se o público terá capacidade e vontade de tomar o remédio europeu prescrito é uma questão que seria melhor abordada por um psiquiatra do que por um economista. A Espanha está no auge de um dos piores momentos de uma recessão que já dura 50 meses. Mesmo antes da última rodada de cortes orçamentários, o FMI previa uma queda de 1,7% no PIB. É possível que a brutal consolidação fiscal que está sendo exigida, concebida sob circunstâncias mais benignas, possa deter o ímpeto de reformas na Espanha sem qualquer ganho real.

O novo governo espanhol aprovou três leis de reformas estruturais em seus primeiros meses no cargo para enfrentar esses três problemas. Primeiro, uma reforma no mercado de trabalho, que pretende reduzir os salários reais depois de grandes aumentos salariais no meio da pior crise de emprego. A reforma torna mais flexíveis o sistema de negociação coletiva e a estrutura de contratação.

Para enfrentar a crise financeira enquanto minimiza o apelo aos fundos dos contribuintes, o novo governo optou por um pacote que inclui uma provisão adicional de 50 bilhões de euros por prejuízos com empréstimos e descontos generalizados na carteira imobiliária. O objetivo é em primeiro lugar aumentar a transparência dos livros bancários e a confiança no sistema. Segundo, obrigar as instituições insolventes a colocar-se à venda. Assim, a reforma incentiva novas fusões através de uma série de novas cenouras e varas.

Finalmente, para lidar com as regiões rebeldes, o governo apresentou uma lei de estabilidade financeira. O rascunho se inspira no novo pacto fiscal europeu, e dá ao governo central amplos poderes de supervisão, assim como a capacidade de impor pesadas multas às regiões que gastarem demais. Infelizmente, o esboço é insuficiente porque não prevê a criação de um conselho de políticas fiscais independente.

Para que a Espanha tenha êxito, essas três medidas precisam dar certo. Os salários devem ser adaptados para que a perda de competitividade do período pós-euro seja revertida. O sistema financeiro deve reconhecer os prejuízos e seguir em frente, possivelmente com as instituições maiores e mais solventes adquirindo as mais fracas. Finalmente, as regiões devem reconhecer que não podem continuar gastando o dinheiro que não têm e depois ser socorridas pelo Estado.

Claramente, a Espanha não pode fazer tudo isso ao mesmo tempo. Se os demais países do euro continuarem insistindo em tratar esse problema como uma peça moral, em que alguns sulistas rebeldes devem ser refreados, a queda livre só vai piorar. Portanto, a pergunta que a Espanha faz hoje para seus parceiros europeus é a mesma que Monti vem fazendo em nome da Itália: “Se fizermos a nossa parte, vocês farão a sua?”

Fazer sua parte significa que a Europa deve corrigir seu rumo e sair do pacto mútuo suicida em que embarcou, ao exigir que todos os países consolidem seus orçamentos ao mesmo tempo. Também significa que a Europa deve estar pronta para ajudar com a reforma das velhas cajas (bancos de poupança) em seu setor financeiro, que poderá exigir mais fundos do que a Espanha tem disponíveis hoje.

A Espanha deve ouvir claramente que as reformas devem continuar. Mas ao mesmo tempo não deve ser obrigada a entrar na espiral descendente que está destruindo a Grécia. A Espanha pode se reformar, mas para isso necessita do apoio de seus parceiros europeus. Existe um limite de quanta dor sua população poderá suportar.

*Luis Garicano é professor de economia e estratégia na Escola de Economia de Londres e editor de nadaesgratis.es, um blog popular sobre a economia espanhola.

Leia mais em Guardian.co.uk

Por Luis Garicano*

Quando Willem Buiter, o economista chefe do Citigroup, declarou que a Espanha enfrenta um risco de moratória maior que nunca, os blogs na Internet e as seções de comentários nos jornais espanhóis imediatamente se encheram de obscuras teorias da conspiração.

“Os anglo-saxões estão ‘armando’ para a Espanha”, dizia uma delas. “Eles estão enciumados; não podiam aceitar o incrível desempenho econômico da Espanha nos últimos 25 anos”, propunha outra.

Pois o próprio Citibank não foi resgatado pelos contribuintes americanos, enquanto nenhum grande banco espanhol precisou de ajuda? O Reino Unido não precisou salvar o RBS e o Lloyds com grande custo, como reconheceu a UK Financial Investments? O Reino Unido e os Estados Unidos não sofreram uma forma pior da mesma doença que a Espanha, ou seja, uma bolha habitacional maciça alimentada por crédito, que deixou para trás um setor privado cronicamente superendividado?

As respostas, é claro, são: sim, sim e sim. Não podemos culpar os espanhóis por acreditarem nessas teorias da conspiração. No entanto, existe pelo menos um motivo econômico bastante sólido pelo qual as dificuldades da Espanha são muito piores que as sofridas pelo Reino Unido e os EUA: o euro.

Enquanto o Reino Unido e os EUA podem pedir empréstimos em suas próprias moedas, a Espanha deve fazê-lo em euros. Como disse Paul de Grauwe — coincidentemente o herdeiro da antiga cadeira de Buiter na Escola de Economia de Londres (mais material para teorias da conspiração?) –, o euro transformou países desenvolvidos como a Espanha e a Itália em países em desenvolvimento, expostos a paradas súbitas periódicas.

Se o Reino Unido não puder enfrentar suas obrigações, pode decidir monetarizá-las parcialmente, causando uma depreciação da libra esterlina e um aumento da competitividade que ajude a recuperar o crescimento. Se a Espanha enfrenta o mesmo problema, deve elevar as taxas de juros para manter os mutuários a bordo, o que mata o crescimento e piora a falta de confiança, colocando em movimento um círculo vicioso brutal.

A falta de autonomia monetária, portanto, faz que a Espanha também tenha pouca margem de manobra orçamentária. Diante de uma economia que está caindo em um buraco negro, a Espanha não tem escolha senão piorar as coisas ao aceitar as ordens europeias de reduzir o déficit para 3% em 2013, contra 8,5% em 2011. Compare isto com a previsão oficial do Reino Unido que, apesar de ter um crescimento maior, ainda pede um déficit de 5,9% em 2013-14, contra 8,3% em 2011-12.

Daí o orçamento brutal apresentado na última sexta-feira pelo Partido Popular, conservador, que governa a Espanha, visando reduções de gastos entre o governo central e as regiões de 55 bilhões de euros, ou 5,5% do PIB de 2012, com o objetivo de alcançar (depois de contabilizadas novas perdas de receitas) a meta de 5,3% para o fim do ano e 3% em 2013.

A Espanha pode evitar uma queda livre no estilo grego? Talvez. Mas para tanto deverá lidar com três problemas interligados: um índice de desemprego extremamente alto, um sistema financeiro carregado de ativos de valor dúbio e uma preocupante falta de disciplina fiscal entre os governos regionais.

Enquanto isso, se o público terá capacidade e vontade de tomar o remédio europeu prescrito é uma questão que seria melhor abordada por um psiquiatra do que por um economista. A Espanha está no auge de um dos piores momentos de uma recessão que já dura 50 meses. Mesmo antes da última rodada de cortes orçamentários, o FMI previa uma queda de 1,7% no PIB. É possível que a brutal consolidação fiscal que está sendo exigida, concebida sob circunstâncias mais benignas, possa deter o ímpeto de reformas na Espanha sem qualquer ganho real.

O novo governo espanhol aprovou três leis de reformas estruturais em seus primeiros meses no cargo para enfrentar esses três problemas. Primeiro, uma reforma no mercado de trabalho, que pretende reduzir os salários reais depois de grandes aumentos salariais no meio da pior crise de emprego. A reforma torna mais flexíveis o sistema de negociação coletiva e a estrutura de contratação.

Para enfrentar a crise financeira enquanto minimiza o apelo aos fundos dos contribuintes, o novo governo optou por um pacote que inclui uma provisão adicional de 50 bilhões de euros por prejuízos com empréstimos e descontos generalizados na carteira imobiliária. O objetivo é em primeiro lugar aumentar a transparência dos livros bancários e a confiança no sistema. Segundo, obrigar as instituições insolventes a colocar-se à venda. Assim, a reforma incentiva novas fusões através de uma série de novas cenouras e varas.

Finalmente, para lidar com as regiões rebeldes, o governo apresentou uma lei de estabilidade financeira. O rascunho se inspira no novo pacto fiscal europeu, e dá ao governo central amplos poderes de supervisão, assim como a capacidade de impor pesadas multas às regiões que gastarem demais. Infelizmente, o esboço é insuficiente porque não prevê a criação de um conselho de políticas fiscais independente.

Para que a Espanha tenha êxito, essas três medidas precisam dar certo. Os salários devem ser adaptados para que a perda de competitividade do período pós-euro seja revertida. O sistema financeiro deve reconhecer os prejuízos e seguir em frente, possivelmente com as instituições maiores e mais solventes adquirindo as mais fracas. Finalmente, as regiões devem reconhecer que não podem continuar gastando o dinheiro que não têm e depois ser socorridas pelo Estado.

Claramente, a Espanha não pode fazer tudo isso ao mesmo tempo. Se os demais países do euro continuarem insistindo em tratar esse problema como uma peça moral, em que alguns sulistas rebeldes devem ser refreados, a queda livre só vai piorar. Portanto, a pergunta que a Espanha faz hoje para seus parceiros europeus é a mesma que Monti vem fazendo em nome da Itália: “Se fizermos a nossa parte, vocês farão a sua?”

Fazer sua parte significa que a Europa deve corrigir seu rumo e sair do pacto mútuo suicida em que embarcou, ao exigir que todos os países consolidem seus orçamentos ao mesmo tempo. Também significa que a Europa deve estar pronta para ajudar com a reforma das velhas cajas (bancos de poupança) em seu setor financeiro, que poderá exigir mais fundos do que a Espanha tem disponíveis hoje.

A Espanha deve ouvir claramente que as reformas devem continuar. Mas ao mesmo tempo não deve ser obrigada a entrar na espiral descendente que está destruindo a Grécia. A Espanha pode se reformar, mas para isso necessita do apoio de seus parceiros europeus. Existe um limite de quanta dor sua população poderá suportar.

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