Cultura

Varre, varre, vassourinha

Alguma coisa acontece no bairro da Lapa

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Faça chuva ou faça sol, lá está ela toda manhã, bem cedinho, meio escuro ainda, varrendo a calçada. Aparenta ter mais de setenta anos, na verdade, beirando os oitenta. A vaidade já foi embora e ela veste um vestido florido, sem cintura, e calça sandálias Havaianas quase sem cor.  

Quando caminho rumo ao estúdio de pilates, não tem dia que não vejo a senhorinha de vassoura na mão varrendo a calçada do seu sobradinho que fica localizado numa rua tranquila do bairro da Lapa, Lapa de São Paulo. 

No verão, ela varre umas poucas folhas secas, algumas bitucas de cigarro, uma página rasgada do Jornal do Bairro, um guardanapo sujo, gravetos, coisas assim. 

No outono, varre as folhas que não param de cair de uma imensa árvore bem em frente ao seu sobradinho, responsável pela sombra e o frescor quando é verão. Varre, varre, varre e as folhas nunca acabam. Mas ela continua varrendo. 

No inverno, ela costuma vestir uma blusa cor de rosa por cima do vestido florido e colocar uma meia branca nos pés, mas insiste nas Havaianas. Varre as últimas folhas secas do chão deixando tudo impecavelmente limpo para quem passa, como eu. 

Na primavera, a árvore não dá sossego para aquela senhorinha. As flores amarelas vão caindo como se fossem flocos de neve. Ela vai varrendo e colocando todas dentro de uma pá de alumínio com cabo de madeira, dessas bem antigas, como ela.

Venho observando-a não é de hoje, desde quando comecei a fazer pilates e a passar por essa rua. Outras senhorinhas também varrem suas calçadas de manhãzinha no meu bairro. Mas essa do vestido florido me chamou mais a atenção por estar ali religiosamente todos os dias, sempre na mesma hora. 

A Lapa, apesar da explosão imobiliária, conserva ainda muitos sobradinhos e suas proprietárias, geralmente viúvas, e que gostam de ver, logo cedo, as calçadas limpas, bem limpas, não sei bem por que. 

No percurso da minha casa até o estúdio de pilates, são pelos menos umas quatro senhorinhas que cruzo varrendo as calçadas. Mas assídua mesmo, é aquela do sobradinho com as paredes creme meio descascadas e com as janelas azuis. 

Outro dia, garoava e ela estava lá tentando equilibrar uma sombrinha em uma mão e, na outra, a vassoura. Foi uma peleja tentar varrer aquelas folhas grudadas no chão. Quando não conseguia com a vassoura, abaixava-se e ia pegando com as mãos, numa agilidade mais impressionante do que a minha nas aulas de pilates.

Nunca parei pra perguntar a ela, aquelas perguntas comuns das chamadas do Globo Repórter: De onde vem, o que faz, como vive, de que se alimenta?

Imagino que nasceu na Lapa e mora naquele sobradinho há muitos e muitos anos, desde que se casou. O tempo foi passando, os filhos vieram, cresceram, saíram de casa e, um dia, vítima de uma parada cardíaca, o marido foi-se embora para sempre.

Ela deve conhecer de cor e salteado o bairro. Lembra-se como se fosse hoje do armazém que vendia Crush, Alpargatas 7 Vidas, Querosene Jacaré e cereais a granel. Lembra da oficina mecânica que reparava velhos Studebackers, do cheiro que exalava da fábrica de biscoitos no quarteirão em frente, do apito da fábrica de tecidos que feria seus ouvidos.  

Hoje, seu sobradinho está encravado entre dois prédios modernosos que ergueram recentemente, destruindo as coisas belas. Mas ela resiste ali naquele lugar, firme e forte. Ela, o sobradinho, a calçada e o ipê amarelo.

Fico imaginando o dia em que passar na sua porta e ela não estiver mais ali. A calçada vai estar cheia de folhas, flores, bitucas de cigarro, um guardanapo sujo, gravetos e uma página rasgada do velho Jornal do Bairro. Nunca mais vou ouvir aquele chap chap chap da vassoura e isso vai ser triste.

Tenho certeza que alguns dias depois, os homens virão para cercar o sobradinho com lâminas de alumínio e colocar uma placa escrito assim: Breve aqui! Mais um lançamento imobiliário de alto padrão.  

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