Cultura

Um evento alemão, mas sem exageros

Dieter Kosslick, diretor do Festival de Cinema de Berlim, defende espaço de filmes alemães, mas destaca caráter político amplo do evento

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Por Fatima Lacerda, de Berlim

Um dos mais importantes eventos cinematográficos do mundo, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, inicia sua 63ª edição nesta quinta-feira 7. Exibirá no período de dez dias 404 filmes de 70 países. Produções de todos os gêneros, durações e formatos expostas em mais de mil sessões.

Uma diversidade que reflete a origem do evento, criado em 1951 para tirar do isolamento uma Alemanha isolada e destruída após a Segunda Guerra Mundial. À época, Berlim ainda guardava os escombros do conflito, enquanto hoje o festival se tornou uma plataforma para todos os tipos de negócios da indústria de filmes.

E o responsável por inúmeras destas mudanças é Dieter Kosslick, de 64 anos, os últimos 12 deles como diretor e garoto-propaganda do festival. Simpático e de cabelos grisalhos, ele deu novamente destaque ao cinema de seu país na mostra. Este é um festival alemão, e isso deve se espelhar na competição. Embora, sem exageros“, diz a CartaCapital.

Antes de gerenciar o Berlinale, comandou por nove anos a Fundação Cinematográfica em Düsseldorf. Com um robusto orçamento, também impulsionou diretores alemães como Tom Tykwer, Fatih Akin e Andreas Dresen, até então desconhecidos.

Sentimental, não esconde a face zangada ao ver que diretores como Woody Allen e Lars von Trier preferem estrear seus filmes no glamouroso Festival de Cannes, na França. “O que posso fazer se eles não nos disponibilizam os filmes?“ Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: Quando o senhor chegou à direção do festival, o cinema alemão era quase inexistente na mostra competitiva. Por isso, o senhor criou a mostra paralela “Perspectiva do Cinema Alemão”. Foi a constatação de um déficit?

Dieter Kosslick: Sou ativo no cinema alemão há mais de 20 anos e sempre quis torna-lo mais presente na competição. Então, logo na primeira edição sob o meu comando, exibimos quatro filmes [da Alemanha]. Mas o interessante é que não sou eu quem distribui os Ursos de Ouro e Prata, mas um júri internacional, muito difícil de manipular. Foi esse júri que, nos últimos dez anos, premiou diversas produções alemães. Não foram apenas filmes como Contra a Parede, de Fatih Akin, mas também atores e atrizes da Alemanha. Mesmo assim, gostaria de aliviar um pouco a responsabilidade do meu antecessor, Moritz de Hadeln. Em sua época, havia filmes alemães, mas não eram devidamente posicionados para alcançar a atenção merecida de público e mídia. Este é um festival alemão, e isso deve se espelhar na competição. Embora, sem exageros.

CC: O aspecto histórico de Berlim está visível em cada esquina, mas o senhor faz questão de ressalta-lo na programação do festival e na escolha dos membros do júri. Por quê?

DK: Desde 1951, o festival tem tradicionalmente um posicionamento político, que vem em segundo plano. O mais importante são os filmes, não o seu caráter político. Sem pestanejar, exibiria Mamma Mia! na abertura do evento. Um excelente filme, com ótimos atores, simplesmente para proporcionar uma noite agradável.

CC: O que faz a Berlinale especial comparando com Cannes e Veneza?

DK: O público, de maneira objetiva. Cerca de 300 mil pessoas compram ingressos para os mais diferentes filmes. Há também a contribuição da chuva e do frio. Tem que ter existir algo positivo nesse tempo que rege em Berlim no início do ano! (Risos).

CC: O festival de 2008 com foco programático musical foi marcante. Trouxe para Berlim, entre outros astros, os Rolling Stones. Como foi possível reunir a  banda para o festival?

DK: Negociamos durante um ano com a distribuidora do documentário Shine a Light, que queria estrear o filme sobre a banda em Berlim. Mas tínhamos que assegurar ao menos a presença de Martin Scorcese e de Mick Jagger. Em cima da hora, os quatro integrantes do grupo confirmaram a presença e, na noite de abertura, estavam todos no palco. Foi uma noite memorável!

CC: O convite ao diretor iraniano Jafar Panahi para integrar o júri em 2011, enquanto ele estava em prisão domiciliar e proibido de exercer sua profissão por 20 anos, além da inclusão de Closed Curtain, filme do diretor que estreia na competição, são claras notas políticas..

DK: De fato. Essa é uma atitude intencional.

CC: O senhor não cogitou pedir suporte a diplomatas alemães para conseguir a viagem de Panahi a Berlim e,  com esse sinal, ratificar o posicionamento do festival?

DK: Temos conhecimento de que Claudia Roth [uma das líderes do Partido Verde alemão] está negociando com embaixador do Irã. O Ministério das Relações Exteriores também está a par do assunto. Estamos tentando, mas com comedimento. Closed Curtain foi colocado na programação não apenas por causa de Panahi, mas como manifesto para todos os artistas desse mundo.

CC: O senhor tem uma popularidade que invejaria políticos alemães. Isso não se torna um fardo?

DK: É preciso estar sempre concentrado, porque a pressão de pessoas específicas e organizações é grande. Um ditado popular alemão diz: “Quem não suporta o calor, não deve entrar na cozinha”.

CC: O festival de Berlim está sempre reagindo a acontecimentos políticos, como a Primavera Árabe. Nos últimos anos, o Brasil tem se destacado internacionalmente, inclusive como sede de grandes eventos esportivos. Mas desde 2008, com Tropa de Elite, o cinema brasileiro não está na mostra Competição. Isso não é uma contradição?

DK: Creio que não. O cinema brasileiro sempre foi muito bem representado no festival.  Quando o filme é bom, o exibimos. O nosso critério são os filmes e a carreira dos cineastas, mas não os mega-eventos esportivos.

CC: O senhor se aborrece quando diretores como Terence Malick, Lars von Trier e Woody Allen aguardam o mês de maio para apresentar seus filmes em Cannes?

DK: De Terence Malik, não posso reclamar. Durante a sua vida, ele não fez muitos filmes, e Além da Linha Vermelha até ganhou o Urso de Ouro. Quanto a Lars von Trier, estou sempre correndo atrás. Os filmes de Woody Allen também cairiam como uma luva em Berlim. Mas o que eu posso fazer se eles não nos disponibilizam os filmes ou se eles não ficam prontos a tempo?

CC: Com o episódio envolvendo Diários de Motocicleta, de Walter Salles, que estava acertado com Berlim e foi “fisgado” por Cannes, houve algum ressentimento?

DK: Claro que você fica zangado, quando tem o filme na mão e ele estreia em outro lugar. Mas, por ironia do destino, o filme documentário sobre a vida de Che Guevara foi exibido por nós. Seu amigo, o motoqueiro Alberto esteve aqui. A filha de Che também. Isso me recompensou muito.

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