Cultura

Um dramaturgo à prova de balas

Mário Bortolotto completa 50 anos com energia para o palco e aversão à política que prega igrejas em cada esquina

Com Bukowski no coração. Na camiseta e na essência, Bortolotto se afilia aos beats e à boemia do Baixo Bexiga
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por Álvaro Machado

Seu olhar sobre a banda podre da vida e suas incitações a “passeios pelo lado selvagem” estão a completar três décadas, nas encenações sem afetações cenográficas de sua companhia Cemitério de Automóveis, radicada em São Paulo. Considerado o mais importante herdeiro do espírito de Plínio Marcos desde que ganhou prêmios nacionais de autor, em 2000, o paranaense Mário Bortolotto também comemora, neste mês, 50 anos de idade, número que coincide com o de peças que escreveu, quase todas encenadas por ele mesmo em papel de destaque. “Atuar é o melhor do teatro, pois escrever se faz por necessidade, dirigir por obrigação e estar no palco é a grande diversão”, afiança a CartaCapital o dramaturgo, que também expõe os cabelos prateados e o vozeirão de barítono em shows da banda de blues Saco de Ratos, com um segundo CD independente lançado agora para integrar a múltipla efeméride e as letras, em grande parte, assinadas pelo teatrólogo.

O que ele descreve como “o prazer do palco” se conforma, no entanto, a princípios técnicos e marcações rigorosas. “Cada expressão facial e o tempo de cada diálogo se repetem todas as noites”, ele diz, a fundamentar o veio realista inaugurado em 1982, ainda em Londrina, a partir de leituras de Scott Fitzgerald, Henry Miller e John Steinbeck. Além, não menos importante, de um quaquilhão de revistas de HQ, citadas como “grande material de formação”. “Só fui conhecer Bukowski, Kerouac e os outros beats depois, e então o nome da companhia mudou para o atual, não por causa da peça (homônima) de Arrabal, mas de uma referência ao escritor Lawrence Ferlinghetti.” O verso beat sobre o tal cemitério está no poema Obbligato do Bicho Louco, que Bortolotto lembra, instalado numa mesa de bar no centro de São Paulo: Vamos desaparecer imergindo/em cemitérios de automóveis/e reaparecer anos depois/catando trapos e jornais/secando a cueca/no calor do lixo queimado/com o rabo remendado.

A anamnese poética é interrompida por moças de pele alva em insinuantes colantes negros, que elogiam sua camisa jeans recém-envergada no palco: “É a cor de Libra!”, esclarece. Nesse figurino, Bortolotto compartilhara o tablado com o ator Gabriel Pinheiro, em mais uma récita de Homens, Santos e Desertores (peça de 2002 recentemente encenada por Ricardo Blat no Rio de Janeiro), parte de uma ocupação, pela companhia, do Teatro Estação Caneca, em São Paulo.

O título seguinte do projeto, que estreou no início de setembro, tem foros de ineditismo: Inferno em Mim. Nesta, o autor vive Pluto, amigo de um motoqueiro que assassina o pai a tiros. “Simples assim”, diz o dramaturgo, sempre atento à crônica policial e pronto a dividir experiências com várias das tribos paulistanas. Entre outras, convive com integrantes da legião montada sobre Harley-Davidsons. Inferno é a terceira peça que propõe desde 2009, quando um assaltante o alvejou com quatro tiros, um deles no coração, enquanto ele bebia com amigos no bar de um espaço teatral. Em princípio desenganado, emergiu de um coma de 48 horas para provar, poucos meses depois e sob os holofotes do Festival de Teatro de Curitiba, uma resistência à prova de balas. No tablado da temporada atual, não poupa energia nas catarses que costumam pontuar os clímax de seus textos.

“Música para Ninar Dinossauros, que escrevi com o braço na tipoia e com dois dedos, Quartos de Hotel, também no projeto do Estação, e Inferno apontam uma radicalização, mas isso nada tem que ver com o incidente”, avalia. “Essas peças são resultado de um amadurecimento normal, um processo de verticalização iniciado antes, que não me deixa mais escrever comédia ou besteirol, que adoro.” A reação se fez conhecer, pois, segundo ele, “todos falam bem, mas poucos vêm assistir e acham que o sabor pouco palatável vem dos tiros, no entanto, isso em nada mudou minha cabeça e sempre tive algo de niilista”.

Embora se permitam saltos cronológicos à frente e para trás, as peças são de comunicação direta, como o autor apregoa: “Meu teatro é simples, mas contemporâneo, refletindo coisas que vemos agora”. A escrita quase instantânea com base na vivência cotidiana é como a de um blog teatral, que, aliás, ele também mantém, no endereço Atire no Dramaturgo, com a ressalva de que o nome precede o assalto. A crônica dos tempos correntes se amalgama, em suas obras, à reconstrução autobiográfica e à reverência, por meio de citações diretas, ao espírito das gerações entre os anos 1950 e 1970, “muito mais interessantes que as novas”.

À parte a violência de boa parte dos diálogos, as peças em cartaz revelam um ângulo inesperado do autor perante sua antiga fama de “marginal”. Inferno em Mim começa e termina numa igreja, como um Luz de Inverno (o filme de Ingmar Bergman) atualizado para o Baixo Bexiga. Seu personagem Mancha reivindica uma dramatização da condição humana, ausente hoje nas consciências médias, por meio de um parricídio. Em Homens…, o pai postiço, interpretado pelo autor, lê os santos Agostinho e Tomás de Aquino, além de recordar o seminário onde se deu sua formação. “Estive mesmo em seminário por cinco anos e não vou mais à igreja porque assisti a tantas missas que deve ter bastado, mas a questão da religiosidade é muito presente e estará sempre. Sou cardíaco, católico e palmeirense, mas não levo nenhuma dessas condições muito a sério.” Não por acaso, sua capacidade de atuar foi consagrada em 1997 num papel central de Santidade, de José Vicente, dirigido por Fauzi Arap.

Do cenário cultural atual, aponta o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez como uma de suas admirações, ainda que retorne sempre às fontes: “Temos forte parentesco com Miller e Kerouac, mas não os repetimos”. Quanto ao seu ídolo beat, rebate com crítica elegante o filme recente de Walter Moreira Salles: “Na Estrada é muito fiel, com falas ipsis litteris etc., mas o grande erro do diretor foi ter tornado o personagem Dean Moriarty, que corresponde ao escritor Neal Cassady, um sujeito contemplativo, melancólico, cheio de pausas e respirações, quando na leitura ele te deixa exasperado e age como um dínamo”. No mais, lamenta a “caretice atual da cidade”, com bares obrigados a fechar cedo e sem lugares públicos para beber na madrugada. “Daqui a pouco vai ter realmente uma igreja em cada quarteirão para regular tudo e fechar as últimas casas de prostituição, um golpe de morte para um boêmio como eu”, protesta o dramaturgo, mais temeroso da “nojenta política” atual que de balas perdidas nas noites das quais não abre mão.

por Álvaro Machado

Seu olhar sobre a banda podre da vida e suas incitações a “passeios pelo lado selvagem” estão a completar três décadas, nas encenações sem afetações cenográficas de sua companhia Cemitério de Automóveis, radicada em São Paulo. Considerado o mais importante herdeiro do espírito de Plínio Marcos desde que ganhou prêmios nacionais de autor, em 2000, o paranaense Mário Bortolotto também comemora, neste mês, 50 anos de idade, número que coincide com o de peças que escreveu, quase todas encenadas por ele mesmo em papel de destaque. “Atuar é o melhor do teatro, pois escrever se faz por necessidade, dirigir por obrigação e estar no palco é a grande diversão”, afiança a CartaCapital o dramaturgo, que também expõe os cabelos prateados e o vozeirão de barítono em shows da banda de blues Saco de Ratos, com um segundo CD independente lançado agora para integrar a múltipla efeméride e as letras, em grande parte, assinadas pelo teatrólogo.

O que ele descreve como “o prazer do palco” se conforma, no entanto, a princípios técnicos e marcações rigorosas. “Cada expressão facial e o tempo de cada diálogo se repetem todas as noites”, ele diz, a fundamentar o veio realista inaugurado em 1982, ainda em Londrina, a partir de leituras de Scott Fitzgerald, Henry Miller e John Steinbeck. Além, não menos importante, de um quaquilhão de revistas de HQ, citadas como “grande material de formação”. “Só fui conhecer Bukowski, Kerouac e os outros beats depois, e então o nome da companhia mudou para o atual, não por causa da peça (homônima) de Arrabal, mas de uma referência ao escritor Lawrence Ferlinghetti.” O verso beat sobre o tal cemitério está no poema Obbligato do Bicho Louco, que Bortolotto lembra, instalado numa mesa de bar no centro de São Paulo: Vamos desaparecer imergindo/em cemitérios de automóveis/e reaparecer anos depois/catando trapos e jornais/secando a cueca/no calor do lixo queimado/com o rabo remendado.

A anamnese poética é interrompida por moças de pele alva em insinuantes colantes negros, que elogiam sua camisa jeans recém-envergada no palco: “É a cor de Libra!”, esclarece. Nesse figurino, Bortolotto compartilhara o tablado com o ator Gabriel Pinheiro, em mais uma récita de Homens, Santos e Desertores (peça de 2002 recentemente encenada por Ricardo Blat no Rio de Janeiro), parte de uma ocupação, pela companhia, do Teatro Estação Caneca, em São Paulo.

O título seguinte do projeto, que estreou no início de setembro, tem foros de ineditismo: Inferno em Mim. Nesta, o autor vive Pluto, amigo de um motoqueiro que assassina o pai a tiros. “Simples assim”, diz o dramaturgo, sempre atento à crônica policial e pronto a dividir experiências com várias das tribos paulistanas. Entre outras, convive com integrantes da legião montada sobre Harley-Davidsons. Inferno é a terceira peça que propõe desde 2009, quando um assaltante o alvejou com quatro tiros, um deles no coração, enquanto ele bebia com amigos no bar de um espaço teatral. Em princípio desenganado, emergiu de um coma de 48 horas para provar, poucos meses depois e sob os holofotes do Festival de Teatro de Curitiba, uma resistência à prova de balas. No tablado da temporada atual, não poupa energia nas catarses que costumam pontuar os clímax de seus textos.

“Música para Ninar Dinossauros, que escrevi com o braço na tipoia e com dois dedos, Quartos de Hotel, também no projeto do Estação, e Inferno apontam uma radicalização, mas isso nada tem que ver com o incidente”, avalia. “Essas peças são resultado de um amadurecimento normal, um processo de verticalização iniciado antes, que não me deixa mais escrever comédia ou besteirol, que adoro.” A reação se fez conhecer, pois, segundo ele, “todos falam bem, mas poucos vêm assistir e acham que o sabor pouco palatável vem dos tiros, no entanto, isso em nada mudou minha cabeça e sempre tive algo de niilista”.

Embora se permitam saltos cronológicos à frente e para trás, as peças são de comunicação direta, como o autor apregoa: “Meu teatro é simples, mas contemporâneo, refletindo coisas que vemos agora”. A escrita quase instantânea com base na vivência cotidiana é como a de um blog teatral, que, aliás, ele também mantém, no endereço Atire no Dramaturgo, com a ressalva de que o nome precede o assalto. A crônica dos tempos correntes se amalgama, em suas obras, à reconstrução autobiográfica e à reverência, por meio de citações diretas, ao espírito das gerações entre os anos 1950 e 1970, “muito mais interessantes que as novas”.

À parte a violência de boa parte dos diálogos, as peças em cartaz revelam um ângulo inesperado do autor perante sua antiga fama de “marginal”. Inferno em Mim começa e termina numa igreja, como um Luz de Inverno (o filme de Ingmar Bergman) atualizado para o Baixo Bexiga. Seu personagem Mancha reivindica uma dramatização da condição humana, ausente hoje nas consciências médias, por meio de um parricídio. Em Homens…, o pai postiço, interpretado pelo autor, lê os santos Agostinho e Tomás de Aquino, além de recordar o seminário onde se deu sua formação. “Estive mesmo em seminário por cinco anos e não vou mais à igreja porque assisti a tantas missas que deve ter bastado, mas a questão da religiosidade é muito presente e estará sempre. Sou cardíaco, católico e palmeirense, mas não levo nenhuma dessas condições muito a sério.” Não por acaso, sua capacidade de atuar foi consagrada em 1997 num papel central de Santidade, de José Vicente, dirigido por Fauzi Arap.

Do cenário cultural atual, aponta o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez como uma de suas admirações, ainda que retorne sempre às fontes: “Temos forte parentesco com Miller e Kerouac, mas não os repetimos”. Quanto ao seu ídolo beat, rebate com crítica elegante o filme recente de Walter Moreira Salles: “Na Estrada é muito fiel, com falas ipsis litteris etc., mas o grande erro do diretor foi ter tornado o personagem Dean Moriarty, que corresponde ao escritor Neal Cassady, um sujeito contemplativo, melancólico, cheio de pausas e respirações, quando na leitura ele te deixa exasperado e age como um dínamo”. No mais, lamenta a “caretice atual da cidade”, com bares obrigados a fechar cedo e sem lugares públicos para beber na madrugada. “Daqui a pouco vai ter realmente uma igreja em cada quarteirão para regular tudo e fechar as últimas casas de prostituição, um golpe de morte para um boêmio como eu”, protesta o dramaturgo, mais temeroso da “nojenta política” atual que de balas perdidas nas noites das quais não abre mão.

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