Cultura

Um chamado dos deuses

A cineasta Lina Chamie mantém a verve poética ao narrar a São Silvestre e a história futebolística do Santos

Humor paulista. Lina Chamie à janela do escritório: “Faço Godard, reclamam. Faço filme popular e reclamam também?”
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Ela é poética, mas não como o pai, morto no ano passado. Lina Chamie procura pela poesia fora do papel, portanto, onde ela não tem mais havido, no cinema nacional. Embora a tarefa beire o impossível, parece não incomodá-la a ponto de um impedimento, como não incomodou a Mário Chamie, seu pai. E como expor a própria essência poética enquanto a torna interessante ao público que paga ingressos? A cineasta cerca o problema alegremente, agora mais que antes. Depois de dois longas fincados no uso da música e da luz, Tônica Dominante (2000) e Via Láctea (2007), obras inteligentemente construídas sobre as verdades da metrópole, esta paulistana que se iniciou no clarinete e no curta-metragem começa a andar na direção do entendimento amplo.

A jovialidade de Lina é evidente nos gestos e na fala, o que a torna dessemelhante a seus 50 anos de idade. Ela conversa com CartaCapital diante da janela do escritório, que dá para uma das ruas paralelas à Avenida Paulista, como quem ainda vê pertinência em filosofar a inquietude. A cineasta parece pronta para as mudanças. Seu primeiro gesto na direção de transformar o fio das emoções em raízes para a apreciação popular talvez tenha sido esboçado em 2010, enquanto assistia pela tevê à São Silvestre, a corrida do último dia do ano. Exercitada na esgrima, Lina não estava tão distante da via simbólica de São Paulo onde se dava o espetáculo, não a ponto de justificar a si mesma perdê-lo. E então desceu à calçada para experimentar um novo êxtase.

“As pessoas se ajoelhavam, caíam ao terminar a corrida. Era uma coisa catártica”, ela conta. “E eu me dei conta de que ninguém havia filmado aquilo antes.” A diretora se lembra, como única ocorrência anterior, das imagens documentais da prova noturna inseridas em uma sequência do filme São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, de 1965. Lina admira muito esse diretor, morto em 1976 aos 40 anos incompletos. Ela se aproxima dele de muitas formas, como de Roberto Santos ou de Ugo Giorgetti, porque jamais renuncia à aridez da paisagem paulistana e ao livre-pensar sobre ela, não importa quão estranho isso possa parecer a quem os observe no restante do País. Ser paulista no cinema, tantas vezes, é provar um humor amargo. Contudo, de onde não se espera beleza, Lina, como seus companheiros de arte no tempo, vê-se obrigada a oferecê-la. E São Paulo é seu prato cheio.

Ela fez primeiramente um curta sobre a São Silvestre a partir de duas câmeras subjetivas colocadas sobre corredores. O material resultante arrancou um inesperado entusiasmo do público do festival É Tudo Verdade em São Paulo e no Rio, no ano passado. “Meu curta foi o mais popular das duas sessões. E o curioso é que um crítico reclamou, pedindo um filme ‘cabeça’ da Lina. Pode uma coisa dessas? Eu faço Godard, eles reclamam. Eu faço um filme popular e reclamam também?”, ela ri. O sucesso animou-a a elaborar um longa sobre a prova, desta utilizando 17 câmeras, uma dúzia delas subjetivas, colocadas para transmitir seu maior interesse nesses casos, a sensação de estar na corrida como os próprios atletas. Além de perseguir a emoção dos corredores, ela focalizará as lentes em Fernando Alves Pinto, ator presente em seus dois longas anteriores, ele que treinou por seis meses antes de realizar a prova.

Isso porque Lina só sabe fazer documentários em que a subjetividade esteja presente e possa ser oferecida ao público como um dado real. Os seus são documentos que ela intitula “sensoriais”, e a prova desse caminho pode ser expressa no longa Santos, 100 Anos de Futebol Arte, que estreou em pequeno circuito oito dias antes do lançamento do DVD, em 14 de abril, data do centenário do clube. Otimista, a produtora Canal Azul, que entregara ao público Todo-Poderoso, o filme em torno do centenário corintiano, e planeja para o Santos mais dois DVDs, um sobre seus gols e outro, dirigido por Kátia Lund, sobre os meninos nas categorias de base, soltou 10 mil cópias iniciais do filme oficial.

É um filme inusual sobre futebol, já que narra a história do time com gols, mas também a partir de melodias e percussões explosivas, entre elas as do Bee Gees, e de depoimentos que procuram mais evidenciar o torcedor do que o goleador. Mais uma vez, a busca de Lina é emotiva, peculiar. Ela mostra o jogador Juari, de quem poucos hoje se recordam, dançando em volta da bandeirinha nos anos 70, ao som de discoteca, antes que aparecesse o Neymar coreógrafo destes dias. Marcelo Passos e Giovanni fazem um 5 a 2 de virada contra o Fluminense, plantados no campo durante o intervalo para depois perder o campeonato, em 1995, como se ecoassem um drama operístico. Enquanto isso, os anos 1960, que deram a identidade de futebol arte ao Santos, com Pelé e o bicampeonato mundial, são uma menção quase subliminar em diversas passagens. Como a diretora justifica: “Um filme não é um glossário, um catálogo, uma enciclopédia. É um objeto de comunicação. Se eu pusesse todos os títulos que o Santos ganhou nos anos 60, o filme teria sete horas”.

Sugere o documentário por linhas tortas que experimentar a primeira bandeira de seu time ou fazer a primeira viagem de ônibus para assistir a um jogo decisivo equivale a viver um primeiro amor. Mas não será necessariamente um afeto sensual, como o dedicado a uma mulher, mas aquele dirigido ao pai. Como diz Lina, “futebol é pátria, num sentido mais íntimo e mais amplo”. Vários depoimentos começam com a evocação daquele ser paterno que levou o menino ao estádio pela primeira vez. “Meu pai dizia que, ao ver o Santos jogar, santificou-se”, lembra Lina. “Ele morreu durante as filmagens, e eu naturalmente chorei muito. Futebol é um amor herdado, que continua pela vida. Até quando a pessoa torce contra o time do pai relaciona-se de forma emocional com ele.” Mário Chamie a levava aos jogos e ela viu todas as finais santistas até a controversa de 1973, contra a Portuguesa, na qual o juiz Armando Marques errou a contagem dos pênaltis e terminou o jogo antes do fim. “Este filme foi um chamado dos deuses”, diz Lina. “E como a invenção é o DNA do Santos, eu quis reproduzir sua irreverência, sua juventude.”

A cineasta andará junto a seu público, segundo diz, como qualquer outro diretor desejará, mas talvez faça isso a seu modo, distraidamente. Seu novo longa, Os Amigos, cujas filmagens começam em agosto, será uma quase-comédia, ela diz. Ao saber da morte do amigo, um homem voltará à infância perdida, equivalente à Ítaca de Ulisses. Lina jura que será um filme “simples”. Nele, como a satisfazer um pedido do amigo roteirista José Roberto Torero, é possível que nenhum personagem recite poesias.

Ela é poética, mas não como o pai, morto no ano passado. Lina Chamie procura pela poesia fora do papel, portanto, onde ela não tem mais havido, no cinema nacional. Embora a tarefa beire o impossível, parece não incomodá-la a ponto de um impedimento, como não incomodou a Mário Chamie, seu pai. E como expor a própria essência poética enquanto a torna interessante ao público que paga ingressos? A cineasta cerca o problema alegremente, agora mais que antes. Depois de dois longas fincados no uso da música e da luz, Tônica Dominante (2000) e Via Láctea (2007), obras inteligentemente construídas sobre as verdades da metrópole, esta paulistana que se iniciou no clarinete e no curta-metragem começa a andar na direção do entendimento amplo.

A jovialidade de Lina é evidente nos gestos e na fala, o que a torna dessemelhante a seus 50 anos de idade. Ela conversa com CartaCapital diante da janela do escritório, que dá para uma das ruas paralelas à Avenida Paulista, como quem ainda vê pertinência em filosofar a inquietude. A cineasta parece pronta para as mudanças. Seu primeiro gesto na direção de transformar o fio das emoções em raízes para a apreciação popular talvez tenha sido esboçado em 2010, enquanto assistia pela tevê à São Silvestre, a corrida do último dia do ano. Exercitada na esgrima, Lina não estava tão distante da via simbólica de São Paulo onde se dava o espetáculo, não a ponto de justificar a si mesma perdê-lo. E então desceu à calçada para experimentar um novo êxtase.

“As pessoas se ajoelhavam, caíam ao terminar a corrida. Era uma coisa catártica”, ela conta. “E eu me dei conta de que ninguém havia filmado aquilo antes.” A diretora se lembra, como única ocorrência anterior, das imagens documentais da prova noturna inseridas em uma sequência do filme São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, de 1965. Lina admira muito esse diretor, morto em 1976 aos 40 anos incompletos. Ela se aproxima dele de muitas formas, como de Roberto Santos ou de Ugo Giorgetti, porque jamais renuncia à aridez da paisagem paulistana e ao livre-pensar sobre ela, não importa quão estranho isso possa parecer a quem os observe no restante do País. Ser paulista no cinema, tantas vezes, é provar um humor amargo. Contudo, de onde não se espera beleza, Lina, como seus companheiros de arte no tempo, vê-se obrigada a oferecê-la. E São Paulo é seu prato cheio.

Ela fez primeiramente um curta sobre a São Silvestre a partir de duas câmeras subjetivas colocadas sobre corredores. O material resultante arrancou um inesperado entusiasmo do público do festival É Tudo Verdade em São Paulo e no Rio, no ano passado. “Meu curta foi o mais popular das duas sessões. E o curioso é que um crítico reclamou, pedindo um filme ‘cabeça’ da Lina. Pode uma coisa dessas? Eu faço Godard, eles reclamam. Eu faço um filme popular e reclamam também?”, ela ri. O sucesso animou-a a elaborar um longa sobre a prova, desta utilizando 17 câmeras, uma dúzia delas subjetivas, colocadas para transmitir seu maior interesse nesses casos, a sensação de estar na corrida como os próprios atletas. Além de perseguir a emoção dos corredores, ela focalizará as lentes em Fernando Alves Pinto, ator presente em seus dois longas anteriores, ele que treinou por seis meses antes de realizar a prova.

Isso porque Lina só sabe fazer documentários em que a subjetividade esteja presente e possa ser oferecida ao público como um dado real. Os seus são documentos que ela intitula “sensoriais”, e a prova desse caminho pode ser expressa no longa Santos, 100 Anos de Futebol Arte, que estreou em pequeno circuito oito dias antes do lançamento do DVD, em 14 de abril, data do centenário do clube. Otimista, a produtora Canal Azul, que entregara ao público Todo-Poderoso, o filme em torno do centenário corintiano, e planeja para o Santos mais dois DVDs, um sobre seus gols e outro, dirigido por Kátia Lund, sobre os meninos nas categorias de base, soltou 10 mil cópias iniciais do filme oficial.

É um filme inusual sobre futebol, já que narra a história do time com gols, mas também a partir de melodias e percussões explosivas, entre elas as do Bee Gees, e de depoimentos que procuram mais evidenciar o torcedor do que o goleador. Mais uma vez, a busca de Lina é emotiva, peculiar. Ela mostra o jogador Juari, de quem poucos hoje se recordam, dançando em volta da bandeirinha nos anos 70, ao som de discoteca, antes que aparecesse o Neymar coreógrafo destes dias. Marcelo Passos e Giovanni fazem um 5 a 2 de virada contra o Fluminense, plantados no campo durante o intervalo para depois perder o campeonato, em 1995, como se ecoassem um drama operístico. Enquanto isso, os anos 1960, que deram a identidade de futebol arte ao Santos, com Pelé e o bicampeonato mundial, são uma menção quase subliminar em diversas passagens. Como a diretora justifica: “Um filme não é um glossário, um catálogo, uma enciclopédia. É um objeto de comunicação. Se eu pusesse todos os títulos que o Santos ganhou nos anos 60, o filme teria sete horas”.

Sugere o documentário por linhas tortas que experimentar a primeira bandeira de seu time ou fazer a primeira viagem de ônibus para assistir a um jogo decisivo equivale a viver um primeiro amor. Mas não será necessariamente um afeto sensual, como o dedicado a uma mulher, mas aquele dirigido ao pai. Como diz Lina, “futebol é pátria, num sentido mais íntimo e mais amplo”. Vários depoimentos começam com a evocação daquele ser paterno que levou o menino ao estádio pela primeira vez. “Meu pai dizia que, ao ver o Santos jogar, santificou-se”, lembra Lina. “Ele morreu durante as filmagens, e eu naturalmente chorei muito. Futebol é um amor herdado, que continua pela vida. Até quando a pessoa torce contra o time do pai relaciona-se de forma emocional com ele.” Mário Chamie a levava aos jogos e ela viu todas as finais santistas até a controversa de 1973, contra a Portuguesa, na qual o juiz Armando Marques errou a contagem dos pênaltis e terminou o jogo antes do fim. “Este filme foi um chamado dos deuses”, diz Lina. “E como a invenção é o DNA do Santos, eu quis reproduzir sua irreverência, sua juventude.”

A cineasta andará junto a seu público, segundo diz, como qualquer outro diretor desejará, mas talvez faça isso a seu modo, distraidamente. Seu novo longa, Os Amigos, cujas filmagens começam em agosto, será uma quase-comédia, ela diz. Ao saber da morte do amigo, um homem voltará à infância perdida, equivalente à Ítaca de Ulisses. Lina jura que será um filme “simples”. Nele, como a satisfazer um pedido do amigo roteirista José Roberto Torero, é possível que nenhum personagem recite poesias.

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