Cultura

Somos todos selvagens

O que Iñarritú propõe é um regresso, de fato, a uma história fundada no genocídio para responder uma pergunta atual: Quando deixamos de ser bárbaros?

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-Vivemos uma época terrível.

-Não especialmente terrível. De jeito nenhum. Ao contrário do que se diz o século XX não foi tão sangrento. Admite-se que as guerras fizeram cem milhões de mortos. Acrescente-se 10 milhões nos gulags russos. Nos campos chineses, digamos, 20 milhões. Um total de 130, 135 milhões de mortos. Não é tão impressionante. No século XVI, espanhóis e portugueses conseguiram sem câmera de gás, nem bombas, fazer desaparecer 150 milhões de índios na América Latina. Deu trabalho, irmã. 150 milhões de pessoas. A machadadas. Mesmo com o apoio da sua igreja, foi um grande feito. A ponto de holandeses, alemães, ingleses e americanos se sentirem inspirados e massacrarem mais 50 milhões. Um total de 200 milhões de mortos. O maior massacre da humanidade foi aqui, ao nosso redor. E nem um mísero museu do holocausto. A história da humanidade é a história do horror.

O diálogo, entre uma enfermeira católica e um professor à beira da morte, é uma das cenas mais marcantes de As Invasões Bárbaras, filme do diretor canadense Denys Arcand que serve como um prólogo do finado século XX.

Saiam de cena as utopias, e com elas o romantismo de quem fracassou em desconstruir o mundo e deixar algo no lugar, e entravam em cena os filhos da revolução pela metade, indivíduos pragmáticos, focados e sem qualquer projeto para o mundo a não ser sobreviver e/ou ganhar dinheiro (o que, em todo caso, dá no mesmo).

Naquela virada, o dinheiro era o único deus capaz de guiar nossos afetos, inclusive a esperança, comprada a duras penas pelo filho de professores que fazia fortuna no mercado financeiro.

No filme, de 2003, Denys Arcand deixava uma estrada aberta em direção a um mundo que emergia. Para entender como chegamos até ele, era preciso atentar para a fala do protagonista com a enfermeira. Algo como: “somos fundados no genocídio. Como podemos falar em paz?”.

De certa maneira, O Regresso, filme de Alejandro Gonzalez Iñarritu que estreou nesta semana, é quase uma retomada desta pergunta indireta. Para quem se questiona como chegamos até aqui, este presente incerto de violência aflorada e aparentemente repentina, é preciso voltar algumas casas e compreender nossa cruzada civilizatória ao longo da história.

 

Logo na primeira cena, um grupo de trabalhadores americanos é cercado e dizimado por uma tribo local. Eles passavam meses na floresta caçando animais para vender a pele. Um pequeno grupo de sobreviventes, entre eles Hugh Glass (Leonardo di Caprio) e seu filho, empreende, então, uma fuga floresta adentro para escapar da fúria dos nativos. Para sobreviver, precisam vencer duas naturezas selvagens: a dos índios perseguidores e as prepotências da mata em pleno inverno.

Até aí, nada muito diferente dos primeiros filmes de bang bang e o mito fundador do homem branco americano para se fixar na terra prometida: os índios eram uma barreira a serem removidas por um projeto civilizatório. No filme, porém, esta natureza está embaralhada, e a dualidade entre civilização e mundo selvagem é nada mais que um discurso.

Um discurso que começa a ser desmentido no momento em que, ao acompanhar o drama do protagonista abandonado pelos amigos na mata, já não sabemos se quem uiva é ele ou o urso à sua espreita. Ambos, afinal, são movidos pelo mesmo instinto: proteger a cria. E sobreviver.

Para isso aceitamos viver em sociedade. Da natureza, afinal, esperamos a tirania e dos homens, os nossos homens, a solidariedade e proteção. No filme, a fé na humanidade é inversamente proporcional à generosidade da natureza – é nela, com seus abismos, suas correntezas, nevascas e subidas íngremes que o personagem se encontra minimamente protegido.

É nela que consegue, apesar dos percalços (e são muitos), estabelecer uma aliança com a população nativa. Essa aliança não é quebrada por uma índole forjada pela natureza, mas sim por uma ideia de expansão fundada na guerra.

Numa fronteira mal definida entre os EUA e o Canadá (justamente o cenário onde Remy Girard, de As Invasões Bárbaras, descreve os genocídios dos índios americanos), duas tribos rivais estão no caminho de uma disputa entre americanos de origem inglesa e franceses por território e matéria-prima.

Não se trata apenas de uma exploração predatória da natureza, mas dos próprios pares, a começar pelo regime semi-escravo estabelecido entre a companhia em busca da pele dos animais e os empregados. As redes de proteção, portanto, são criadas a partir de redes esfaceladas de solidariedade – muitas vezes limitadas a um exercício retórico de mera identificação do tipo “Je Suis”. O quê? Vítima? Opressor? Ou ambos? Com quem nos identificamos na história quando todos estão armados?

Em uma das cenas mais chocantes, um índio é enforcado e exposto numa árvore com a inscrição em francês: “Somos todos selvagens”. 

Entre todos os concorrentes a melhor filme no Oscar, O Regresso é, talvez, o que melhor define, já no título, uma angústia do mundo contemporâneo: o medo do esfacelamento da chamada civilização e a volta ao estado de barbárie, quando éramos lobos dos homens e dos animais e vivíamos em guerra, cortando gargantas, escapando das flechas e buscando uma limitada proteção nas cavernas.

Esse medo parece potencializado quando exércitos de fundamentalistas com recursos primários espalham o terror pelo mundo com atentados e imagens de inimigos decapitados. São bárbaros, pensamos conosco, numa tentativa inconsciente de compreendê-los como o resultado de uma aberração – quanto mais localizados e distantes de nós, mais fáceis, imaginamos, de eliminá-los.

O que Iñarritú propõe é um regresso, de fato, para responder outra pergunta: “Quando deixamos de ser bárbaros?”. A história da humanidade é ainda uma história de horror.

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