Cultura

Roupa apertada

O homem vai sendo empurrado para a periferia da sociedade que se dizia sua, para dar lugar aos artefatos que ele mesmo criou

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Meu amigo e compadre Adamastor já é, pode-se dizer, um velho conhecido dos leitores. E vocês já perceberam que troco muitas opiniões com ele, muito do que escrevo é por sua sugestão. O Adamastor, frustrando as expectativas propostas por seu nome, não é gigante coisa nenhuma.

Aliás, para defini-lo de modo simples e rápido, pode-se dizer que é um homem comum, de um saber só de experiências feito. E ele me contou que nem conhece o Camões. Mas ele circula pela cidade, observa tudo, e tem opiniões, coisa rara nestes tempos em que só a televisão aparece com tal propriedade. E a maioria das pessoas fica repetindo o que certos canais afirmam como pensamento seu, a sua opinião.

Outro dia, voltei do centro da cidade irritado com o trânsito, e meu fiel amigo sentou-se a meu lado e, depois de um longo silêncio compreensivo, começou dizendo que as cidades crescem, porque são vivas, mas as ruas não alargam.

Imagine você, ele me disse, que há ruas em franca atividade com mais de cem anos. Muito mais. Velhinhas que em sua infância assistiam deslumbradas à passagem de um ou dois automóveis por dia, umas poucas carroças e alguns cavalos. De gente não se fala porque nada ocupa tão pouco espaço neste mundo como o ser humano.

O homem vai sendo empurrado para a periferia da sociedade que se dizia sua, a sociedade humana, para dar lugar aos artefatos que ele mesmo criou e aos animais de estimação que ele considera membro de sua família.

Que desconforto, quando era criança, ficar preso em uma roupa por ter crescido muito rápido. Você não passou por isso? Sorte sua. Era uma sensação muito grande de desconforto. A roupa tinha encolhido e me tolhia os movimentos.

Roupa nova só no próximo aniversário além daquela camisa linda com que uma das tias presenteava no Natal. Só no ano passado, foram postos em circulação em nossas apertadas ruas mais 19.800 novos veículos. E são cerca de 55 novos veículos a cada dia.

Esses, pelo menos, foram os dados com que meu amigo Adamastor me atualizou a respeito de uma cidade, que não é muito diferente de outras do mesmo porte.

Mas onde tudo isso vai parar? perguntei, e ele, marotamente, sugeriu que eu comprasse um helicóptero enquanto o céu continuasse azul, pois é fatalmente o próximo espaço a ser ocupado pelos novos desbravadores.

Algumas pessoas afirmam com orgulho que as ruas de sua cidade estão entupidas, e com muita dificuldade se pode transitar por elas.

 

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