Cultura

Quero o meu mundo de volta

Nesses tempos cada vez mais virtuais, que tal colocar os pés no chão?

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A frase que mais tenho ouvido nos últimos tempos é “está tudo na internet”, como se eu não precisasse mais pegar nada nas mãos, apalpar, cheirar, passar a língua para sentir o gosto. Basta dar um clique no teclado que um admirável mundo se ilumina à minha frente. 

Às vezes é mesmo verdade. 

Outro dia mesmo procurei no Google a imagem de uma caixinha amarela de Eskibon do meu tempo de menino e ela estava lá. Procurei um anúncio do Danoninho em que um menino francês fala geladerra e achei, sem muita dificuldade. 

Minhas filhas, que são bem mais modernas que eu – claro – vivem me dando dicas. Por exemplo, eu poderia substituir quatro paredes de CDs da nossa casa pelo Spotify e ouvir todas as músicas que tenho. Poderia substituir o meu escritório forrado de livros por um Kindle, bem fininho, que não ocuparia espaço nenhum. 

Talvez eu seja um herói da resistência. E olha que, um dia, já me desfiz de quinze mil discos de vinil que ocupavam boa parte deste pequeno apartamento que temos. E olha que todo fim de ano, encho umas caixas de livros lidos mas que não quero guardar e passo pra frente. 

Mas hoje vim aqui confessar que quero o meu mundo de volta. 

Quero comprar um postinho de gasolina cheio de carrinhos para o meu neto que vem ai, ou então os tijolinhos do Pequeno Arquiteto, quem sabe um carrinho de rolimã ou uma patinete? 

Quero sentir o cheiro de tinta de uma Realidade comprada na banca, lamber o indicador e ir passando as páginas. Quero deitar na rede, ler algumas reportagens e depois colocar a revista no chão quando o sono chegar. 

Quero ir pra rua e fazer sinal pro motorista de táxi parar e me levar ao cinema na Consolação. Cansei de ficar aqui sentado chamando Uber e escolhendo filmes no Netflix. 

Quero comprar um disco de vinil dos Monkees, chegar em casa, desembrulhar o pacote, admirar o desenho da capa, retirar lá de dentro o encarte e ouvir cada faixa do lado A, depois as do lado B, acompanhando e traduzindo as letras, verso por verso.

Quero comprar um bloco Aviador com folhas de seda para escrever uma carta para o meu amor. Depois pingar uma gota da colônia Pinho de Campos do Jordão, só pra dar uma de Roberto e impressionar.

Quero ir ao armazém comprar uma escovinha, uma flanela e uma latinha de graxa Nugget para engraxar os meus sapatos.

Quero sair andando por ai sem Waze, parando em cada esquina e perguntando onde fica o Gigetto, para que eu possa comer aquele cabrito com batatas e brócolis.

Quero uma caixa de lápis com 48 cores para que eu possa rabiscar aquela revistinha chamada Para Colorir.

Quero de volta a minha caneta Parker 51 e aquele vidrinho de tinta azul real lavável para que eu possa fazer uma composição cujo tema é Minhas Férias.

Quero sim, ver as rendinhas das anáguas das meninas quando elas cruzam as pernas nos bondes da cidade.

Quero sentir aquele cheirinho da fumaça que vinha do primeiro trago do cigarro Continental sem filtro do meu pai.

Quero minha coleção de soldadinhos de chumbo, escondidos numa caixa de sapatos Clark debaixo da minha cama.

Quero rir com Ronald Golias na Família Trapo, com Zé Vasconcelos contando piadas e com Grande Otelo no filme Um Candango na Belacap. 

Quero pegar um carro de praça com a minha mãe e ir até a cidade tomar um milk shake de morango na lanchonete das Lojas Americanas. 

Quero plantar um feijãozinho no algodão, pingar umas gotinhas de água todos os dias e ficar observando ele crescer.

Quero jogar uma partida de futebol de botão, fazer um gol com aquele temível Ademir da Guia, verdinho, que colocava a bolinha sempre na última gaveta.

Quero ver na televisão em preto e branco aqueles palitos marchando na propaganda dos fósforo Marca Olho, Pinheiro e Beija Flor. 

Quero ir ao Banco Nacional, aquele que estava ao meu lado, descontar um cheque, conversar com o gerente, reclamar com o caixa da demora e explicar a ele que minha assinatura está diferente porque faz muito tempo que eu assinei essa ficha de cartolina.

Quero uma cédula de papel para poder fazer um X na frente do nome do meu candidato. E se o nome dele não estiver lá em 2018, escrever em letras garrafais com o meu lápis Johann Faber: Temer golpista!

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