Cultura

Pedro Almodóvar: “É o filme mais gay que já fiz”

Em novo filme, o cineasta retrata a catastrófica crise econômica da Espanha com uma farsa escandalosa e cheia de sexo

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Por Giles Tremlett

Pedro Almodóvar está mancando. E também salta como louco. Ele veio a seu escritório em Madri — onde os visitantes são recebidos por um enorme álbum de nus de Helmut Newton — apesar da cirurgia que sofreu no joelho um dia antes. Por isso manca. Mas o que realmente lhe dói é que, obrigado a descansar de sua rotina normalmente frenética escrevendo roteiros, o diretor passou a convalescença assistindo aos noticiários. “Certos dias eu tento não ver as notícias”, diz ele. “Mas ontem não pude evitar. Tudo é terrível.”

O dia que Almodóvar passou diante da televisão, consumindo intermináveis reportagens sobre os problemas econômicos da Espanha – que deixaram um quarto da população sem trabalho – o deixou indignado. “Acho que o país como um todo está preocupado que haja uma explosão da inquietação social”, ele me diz. “Eu certamente estou. Cada dia que passa, tenho a impressão de que há mais provocações.” Mas me tranquiliza, “isso não significa que eu esteja incitando alguém à violência. Muito pelo contrário. Eu convidaria todos a reagir — mas da maneira mais pacífica possível”.

Como o diretor de cinema mais famoso da Espanha — autor vencedor do Oscar de dramas como Fale com Ela e Volver, que vão do melancólico ao subversivo ao simplesmente retorcido –, podemos imaginar a raiva de Almodóvar sendo expressa de maneiras sombrias. Veja A Pele que Habito, seu mais recente filme e talvez o mais assustador até hoje. Mas aos 63 anos Almodóvar tem outros planos. “Gosto da ideia de ajudar as pessoas a se divertir”, diz ele, “porque o clima neste momento é muito sombrio.”

E assim o criador de Abraços Partidos e Má Educação nos oferece seu último filme — uma comédia excêntrica passada em um jato transatlântico, cheia de sexo oral nas alturas e comissários de bordo que dançam imitando as Pointer Sisters (sua canção marca-registrada, “I’m So Excited”, dá o título em inglês do filme — em português chama-se Os Amantes Passageiros, tradução fiel do original). E o resultado das bilheterias na Espanha sugere que Almodóvar julgou o clima perfeitamente — o filme lhe deu o melhor fim de semana de estreia até hoje.

Em Madri, ouvi comentários sobre ele em tom de aprovação, como uma “mariconada” — uma espécie de irreverência gay. O primeiro retorno do diretor à comédia pura em 25 anos, desde Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, é uma peça de entretenimento brega, extravagante, o que ele chama com bom humor de “meu filme mais gay até hoje”. E também é um retorno ao estilo de seus primeiros sucessos, quando ele explodiu no cenário como um colorido provedor de transgressão generosa, alegre, hedonista. Entre as piadas estão uma vidente que perde a virgindade montada em um passageiro adormecido, mas excitado, e vestígios de sêmen no rosto de um comissário de bordo que se trancou em um banheiro minúsculo com o capitão.

Mas o filme também pode ser entendido como uma metáfora da Espanha em apuros, abalada pela recessão. “Eu queria que fosse uma comédia maluca, uma coisa escapista”, diz Almodóvar. “Mas é verdade que há coisas que combinam com os tempos.” Um avião circula sem destino no céu, com o trem de pouso danificado, esperando a autorização para uma aterrissagem forçada. A tripulação e os passageiros da primeira classe afogam as mágoas, confessam seus pecados e se entregam ao sexo movido a mescalina, enquanto a classe turística cai em um sono descuidado, induzido por drogas. O próprio Almodóvar ficou surpreso ao ver como as histórias surreais dos personagens principais do filme — que incluem um banqueiro corrupto que foge do país e uma garota de programa que afirma ter um vídeo comprometedor do rei — ecoam cada vez mais as coisas que os espanhóis leem diariamente nos jornais.

“Sempre houve a metáfora de uma Espanha que não sabe para onde vai, que não sabe onde pousar ou quem estará no comando, nem quais são os perigos”, diz ele. Mas o diretor não previu a série de casos de corrupção que desde então abalaram tudo, desde o primeiro-ministro Mariano Rajoy e seu conservador Partido Popular até a família do rei Juan Carlos. “Desde que fizemos o filme, ele realmente ganhou relevância metafórica”, diz.

O tufo de cabelos grossos de Almodóvar, penteado na vertical, hoje está completamente grisalho e seu rosto é marcado por uma barba igualmente cinzenta. Ele usa tudo isso com a mesma atitude que, digamos, Albert Einstein — mas é um lembrete, juntamente com o joelho, de que a idade está chegando. De fato, há nele algo de um astro do rock maduro, como se o espírito da rebelião juvenil não possa ser descartado. Ele certamente exala energia verbal — eu poderia ter feito uma entrevista de uma hora com apenas um punhado de perguntas –, mas consegue evitar ser imperioso ou arrogante. Depois de décadas de elogio e adoração, Almodóvar poderia facilmente ter-se tornado pretensioso. Um pedido de última hora para que eu não o fizesse parecer que estava malhando a Espanha, que o fez voltar correndo do escritório depois que terminamos a entrevista, foi um sinal de que ainda se importa com o que as pessoas pensam a seu respeito.

Almodóvar é há muito tempo o símbolo de uma Espanha mais alegre e entusiástica, que emergiu de décadas de escuridão e rigidez moral sob a ditadura de Franco em meados dos anos 1970 para se tornar uma democracia vibrante. Ele nasceu nas planícies avermelhadas de La Mancha, terra de Dom Quixote. Seu pai, Antonio, era vendedor ambulante de azeite e vinho, que carregava em uma mula. Mas Pedro não se enquadrava na versão paterna do mundo masculino. Sua mãe, Francisca, que apareceu em alguns filmes antes de sua morte, em 1999, foi seu principal ponto de referência. Ela ganhava um dinheiro extra escrevendo cartas para vizinhos analfabetos. Como seu filho, gostava de enfeitar as coisas. “As improvisações foram uma grande lição para mim”, ele escreveu após sua morte. “Estabeleciam a diferença entre ficção e realidade, e como a realidade precisa da ficção para ser completa, mais agradável, mais suportável.”

O irmão de Almodóvar, Agustín, que também é seu produtor, certa vez descreveu sua aldeia natal de Calzada de Calatrava como “o tipo de lugar onde as pessoas passam a vida inteira economizando para ter uma lápide decente no cemitério”. O próprio Almodóvar disse que era “um lugar duro, onde ninguém compreendia a sensualidade, a alegria de viver, ou mesmo a ideia de cor”. Toda a sua carreira pode parecer uma rebelião contra isso (embora muitos fãs do cineasta afirmem que seu melhor filme é Volver, uma história sobre superstição e morte filmada em uma cidade próxima a Calzada de Calatrava e estrelada por Penélope Cruz, em seu melhor papel até hoje).

Perto de onde Almodóvar cresceu fica uma das cidades mais sem graça da Espanha, Ciudad Real, e é lá que foi filmada a maior parte de Os Amantes Passageiros — em um aeroporto abandonado que é um dos infames elefantes brancos arquitetônicos da Espanha, parte dos detritos reluzentes que restaram de uma década de extravagância, corrupção financeira e ilusões de grandeza política.

“Aquele aeroporto custou mais de 1 bilhão de euros para ser construído e é totalmente inútil”, diz Almodóvar. “Tudo o que se vê são alguns coelhos saltando pela pista mais longa da Espanha. Algum ministro fez uma lista de 17 aeroportos como esse em La Mancha — eles representam a megalomania de nossos políticos e financistas inescrupulosos na última década.”

O aeroporto internacional, que deveria receber 2 milhões de passageiros por ano, acabou afundando a caixa de poupança local. “De alguma forma eles convenceram meus conterrâneos de que as pessoas de todo o mundo pegariam voos diretos para o centro de La Mancha”, diz Almodóvar. “Mas quem quer voar para lá?”

De certa maneira, a jornada do próprio cineasta reflete a da Espanha. Ele chegou à cidade grande na juventude, experimentando um surto de liberação depois da atmosfera claustrofóbica da vida na aldeia e das escolas de padres católicos. E quando a chamada “movida madrileña” — o movimento anárquico voltado para festas em que tudo valia — incendiou a vida noturna da capital espanhola nos anos 1980, Almodóvar tornou-se seu mestre-de-cerimônias e ícone duradouro. Ele também é um de seus poucos produtos culturais verdadeiros.

“Estávamos embriagados de otimismo e liberdade”, lembra-se Almodóvar. “Realmente não tínhamos consciência de que a Espanha estava dando um enorme salto à frente, sendo um país tradicionalmente tão dividido e fratricida. Eu pude reinventar minha vida como se fosse um recém-nascido.” Havia algo inocente — e até ingênuo — naquela época, apesar de sua natureza confessadamente hedonista. Almodóvar começou a fazer filmes curtos em super-8, geralmente mudos, mas obcecados por sexo, com títulos como A Queda de Sodoma. Seu primeiro filme comercial, Pepi, Luci, Bom, foi escrito no tempo livre enquanto ele trabalhava como atendente em uma companhia telefônica. Tirava folgas não remuneradas para filmar, depois voltava para o emprego e chorava. Mas havia definitivamente trocado a armadura moral da Espanha católica rural pela liberdade pessoal e artística.

“Hoje estamos todos em pior situação”, ele diz com tristeza. “E também nos tornamos pessoas piores. Se um cineasta quisesse começar como eu fiz nos anos 80, acharia impossível. Existe concorrência demais. Não quero parecer nostálgico, é apenas que tudo mudou.” Almodóvar faz parte dessa mudança. O homem que costumava usar meias arrastão e minissaias de couro como líder de uma banda glam-punk hoje faz aulas de ioga.

Suas irmãs ainda visitam a capela em Calzada de Calatrava para acender velas e rezar sempre que ele é indicado ao Oscar. As orações fizeram sua magia em 2000, quando Tudo Sobre Minha Mãe ganhou o prêmio de melhor filme estrangeiro, e também em 2003, quando Almodóvar ganhou o melhor roteiro original por Fale com Ela — uma rara distinção para um diretor de língua não inglesa. Mas seu culto pela crítica de Nova York e as multidões no Festival de Cannes é excessivo para alguns espanhóis, que não entendem por que esse aparente excêntrico — na realidade, um trabalhador disciplinado e dirigido — deveria representar a Espanha para os estrangeiros; Almodóvar entrou para uma lista de grandes destruidores de moldes que inclui Pablo Picasso e Salvador Dalí, que conquistaram mais respeito no exterior que em seu próprio país.

Um estudo de acadêmicos espanhóis afirmou que seus personagens estão transtornados por causa de álcool ou drogas 14% do tempo (Os Amantes Passageiros só pode ter elevado essa porcentagem). Um total de 170 personagens, na maioria mulheres, eram usuárias habituais de drogas. Almodóvar diz que o estudo o deixou com “uma sensação kafkiana de medo, repulsa, incredulidade, fúria e indignação”, pois não há nada que lhe desagrade mais que o moralismo puritano. Entretanto, ele zela pela ética política: certa vez deu ordens para proibir que as empresas de Silvio Berlusconi distribuíssem seus filmes na Itália. Até José Luis Rodríguez Zapatero, o ex-primeiro-ministro socialista que fez da Espanha o terceiro país do mundo (depois da Holanda e da Bélgica) a aprovar o casamento gay, em 2009, o decepcionou ao endossar os profetas da austeridade. “Não é apenas decepção. Seus últimos quatro anos foram um desastre monumental.”

Almodóvar também é famoso por colocar personagens femininas no centro de seus filmes. Penélope Cruz pode ter apenas um papel secundário ao lado de Antonio Banderas em Amantes Passageiros — com um forte e ciciante sotaque andaluz –, mas sua presença é um lembrete de como Almodóvar fez a carreira da atriz, e por que hoje uma longa lista de atrizes famosas lhe pedem papéis. Eva Mendes é a última a admitir que lhe pediu para dirigi-la.

“Toda a minha vida grandes atrizes me pediram papéis — o número é infinito”, admite. Ele acha que é porque escreveu muitos bons papéis femininos nos anos 1990, quando Hollywood ignorava suas melhores atrizes.

“Elas percebem que não escrevo apenas bons papéis femininos, mas que também trabalho duro com as atrizes. As grandes atrizes muitas vezes são condenadas a trabalhar seus personagens sozinhas. Quando grandes estrelas que não falam espanhol me pedem papéis, eu imagino que elas pensem em mim como um diretor que passa mais da metade do tempo durante a filmagem e a pré-produção trabalhando com os atores. Elas pensam: ‘Eu quero alguém que me obrigue a trabalhar, que me faça saltar sem paraquedas, mas está ali cuidando da minha segurança’. Nunca fiz um filme em inglês, mas um motivo para isso seria trabalhar com algumas dessas atrizes que adoro.”

Um dos vários roteiros inacabados que Almodóvar tem na gaveta é para um filme em Nova York, mas ele admite que as chances de fazê-lo estão diminuindo. “Estou um pouco velho para mudar de língua e cultura”, diz. “Talvez seja tarde demais para experimentar esse tipo de coisa.” O diretor descreve Amantes Passageiros como uma comédia mediterrânea, que tem elementos comuns com o tipo de comédia italiana em que uma Sophia Loren cheia de babados perderia a calma. “Nós temos línguas afiadas, mas isso não quer dizer que realmente queremos que coisas ruins aconteçam para a pessoa com quem estamos falando”, diz ele. “Existe uma desinibição desavergonhada na maneira como os personagens agem e falam. Eles gritam e perdem a compostura, dizendo acaloradamente o que sentem. Não é que sejamos mais sinceros que os britânicos, ou que eles sejam mais hipócritas; é apenas que temos menos capacidade de manter nossas bocas fechadas. E isso é ótimo para a comédia.”

Com mais de uma dúzia de filmes de sucesso e dois Oscars, poderíamos pensar que Almodóvar fosse imune aos dardos lançados por alguns críticos. Mas esse claramente não é o caso. Uma famosa briga com o crítico de cinema Carlos Boyero, de El País, levou o diretor a pedir que o jornal enviasse outra pessoa para o Festival de Cannes em 2009. Na verdade, ler uma resenha maligna de Boyero antes de ver o último filme de Almodóvar tornou-se parte integral da diversão para alguns cinéfilos espanhóis. Escrevendo sobre Amantes Passageiros, Boyero criticou seu humor “infantil” e o comparou às produções bregas de Mariano Ozores, um prolífico diretor espanhol de comédias picantes nos anos 1970.

Almodóvar leu a resenha? “Não, não li”, responde. Ele certamente costumava ler Boyero — existe uma conhecida troca de cartas com o ombudsman do jornal que continua em seu blog. “Nos últimos 30 anos uma das funções de Boyero na vida foi desancar meus filmes”, diz o diretor. “Eu não acho que El País deveria deixá-lo usar seu emprego para fazer isso.”

Mas a Grã-Bretanha, diz ele, foi um dos lugares mais duros de conquistar, onde os críticos e o público inicialmente se recusaram a enxergar além do escândalo sexual de muitos de seus filmes. “Estou fazendo mais sucesso lá agora”, diz o diretor. “Eles se cansaram de ficar chocados com os filmes e acham mais fácil se aproximar deles.”

Os espectadores britânicos de Amantes Passageiros talvez considerem difícil entender o subtexto da crise na Espanha, mas eles têm suas próprias preocupações com o futuro econômico. Talvez o humor espanhol maluco e salpicado de sêmen de Almodóvar também os faça esquecer suas tristezas.

Os Amantes Passageiros estreia no Brasil em 5 de julho, segundo o site Adoro Cinema.

*Leia mais em Guardian.co.uk

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