Cultura

Passando em revista

Alguma coisa aconteceu naquele final de 1968

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Naquele final de 1968, eu era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Meu figurino era uma calça boca de sino vermelha, uma camiseta bem apertada, manchada de água sanitária, tamancos suecos, óculos redondos tipo John Lennon e uma juba de leão.

Nas ruas, lutava contra a ditadura enfrentando os gorilas com paus e pedras. Sonhava em pegar o primeiro avião com destino a felicidade e ir conhecer a Ilha de Cuba, fumar um Cohiba e dançar em praça pública uma rumba ao som de Eliades Ochoa e Compay Segundo.

O mundo assistia de boca aberta o casamento do armador grego Aristóteles Onassis com Jackeline Kennedy, 29 anos mais nova que ele. A cerimônia foi na Ilha de Skorpios num dia de muita chuva, o que, para os gregos, significava muita sorte. Não havia Facebook, WhatsApp nem Instagram, mas a notícia e as piadas se espalharam rapidamente, boca a boca, mundo afora.

Eu era – aliás sempre fui – um rato de banca de jornal. A do Seu Benito, no coração da Savassi, em Belo Horizonte, era um sonho. Passava horas ali vendo aquelas maravilhas expostas e como o meu para era amigo dele, Seu Benito me deixava folhear todas elas: Manchete, O Cruzeiro, Fatos & Fotos, Realidade, Enciclopédia Bloch, Fairplay e ler aquela pilha de revistas de quadrinhos: Pato Donald, Mickey, Tio Patinhas, Zé Carioca, Os Jetsons, Os Flintstones, Gasparzinho e o Brasinha.

Ao mesmo tempo que lia Marx e Engels, que carregava pra cima e pra baixo o livro vermelho do Mao, lia também as aventuras do Príncipe Encantado, do Jim das Selvas, do Tarzan, do Zorro, do Fantasma e do mágico Mandrake.

Hoje, aqui sentado no meu escritório, rodeado de livros, revistas e discos por todos os lados, chego a conclusão que eu era uma figura meio esquisita.

O meu pai apostava que eu seria um humorista quando crescesse, uma mistura de Zé Trindade, Zé Vasconcelos, Ronald Golias, Ankito e Oscarito. A minha mãe, com os seus temores, tinha um pé atrás e era quem ficava de olho no meu boletim e vivia dizendo que o importante era conquistar o tal canudo de papel.

Acho que eu era mesmo uma figura meio esquisita e, hoje, me pergunto, porque cargas d’água eu, com 18 anos de idade, solteiro, passei na banca do Seu Benito e comprei o primeiro número da revista Pais & Filhos, em pleno 1968?

Logo eu, que nem sonhava ainda em ter filhos, fui comprar aquela revista que os Bloch estavam lançando com alarde, com outdoors espalhados pela cidade e anúncio na televisão.

Lembro-me perfeitamente da primeira capa, uma menininha loirinha, olhos azuis, fantasiada de formanda, olhando para mim. Haviam três chamadas: “Aprenda a dominar o seu ciúme”, “Como falar de sexo com o seu filho” e um aviso que, no interior da revista, havia um suplemento especial para adultos.

O suplemento vinha lacrado e foi com um estilete do meu pai que eu fui abrindo aquelas páginas misteriosas, proibidas para menores, impressas num papel pardo, diferente do papel meio couché dos irmãos Bloch.

Aos 18 anos, não só gostei da revista, como passei a comprar todos os meses, inclusive as capas duras azuis para encadernar a cada seis números. Com a Pais & Filhos, fui aprendendo a trocar fraldas, a preparar sopinhas de mandioquinha com batata, papinhas de espinafre, a raspar a meia maça com uma colherzinha, a dar o primeiro banho e a nunca mentir para os filhos que eu teria um dia.

Aprendi a entender as febres, distinguir choro de manha, aprendi a cuidar do umbigo até ele cair, aprendi que era importante conversar com o bebê desde pequenininho e, mais tarde, mais crescidinho, contar histórias maravilhosas como Robinson Crusoé, A Ilha do Tesouro, Oliver Twist e As aventuras de Tom Sawyer.

Porque eu fui me lembrar disso hoje? Porque essa semana passei na banca do Severino, em frente aqui da minha casa, e vi lá dependurado um número da Pais & Filhos, comemorando os seus 48 anos.

Eu sempre achei a minha casa, a minha família, muito engraçada. Imagine que enquanto eu, aos 18 anos estava comprando o primeiro número da Pais & Filhos, o meu irmão, só dois anos mais velho que eu, aos 20 anos, estava comprando um túmulo pra ele no cemitério Parque da Colina, túmulo que ele, aos 68 anos, tem até hoje. Mas isso é outra história.

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