Cultura

Oscar 2016 vê nosso agravado sentimento de isolamento

Indicados apresentam personagens que parecem buscar forças numa ideia de solidariedade para remediar um mundo de referências em colapso

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A primeira impressão, ao analisar a lista de indicados ao Oscar 2016, é que a premiação deste ano privilegiou uma série de pequenas boas histórias sem que, entre elas, haja qualquer obra-prima.

Diferentemente do ano passado, quando duas grandes obras – Birdman e Boyhood – e uma bela surpresa – Whiplash – se destacavam entre os concorrentes, desta vez é preciso olhar os filmes em sequência para identificar como o cinema incorporou, e a Academia se sensibilizou a isso, o espírito de um período de incertezas e rupturas com as zonas de conforto de um mundo em desconstrução. 

A turbulência dessa travessia e os laços de solidariedade construídos ou esfacelados durante o processo são os pontos que parecem ligar personagens tão diferentes quanto um astronauta esquecido em Marte e uma jovem irlandesa que volta para casa pouco depois de se mudar para os EUA.

Em situações distintas (e a quilômetros, no tempo e no espaço, um do outro), os dois personagens se defrontam com os mesmíssimos dilemas quando se veem sozinhos. Estão longe de casa, em território desconhecido, e o sistema de comunicação com o ponto de origem é frágil e incompleto.

As perguntas, levantadas direta ou indiretamente, são parecidas: O que define um lar? São os laços afetivos? Existe um caminho de volta? O que resta da nossa casa quando, na volta, já não somos os mesmos? É possível reconstruir este ponto de origem? É possível recriar um novo mundo? Mais: o que somos exatamente quando estamos distantes e não há ninguém dizendo o que devemos ser?

Para Mark Watney, personagem de Matt Damon (concorrente também ao Oscar de melhor ator) em Perdido em Marte, o caminho de volta é um resgate. O filme funciona como um polo positivo entre os indicados: com uma pequena ajuda dos amigos, e da aliança improvável com a agência espacial chinesa, à espera pelo retorno é uma questão de sobrevivência – e uma questão de fundo quase ecológica sobre uso racional de recursos finitos.

O astronauta, afinal, é um biólogo, e sobrevive a um território hostil e à escassez de mantimentos com uma missão não programada: é preciso recriar o mundo e repensar a ideia de espaço. (O outro recado, para quem assistiu, é que, às vezes, é preciso se imaginar diante do olhar do outro para não enlouquecer. Daí a ideia de falar para a câmera, como se falasse com ele mesmo, sem a certeza de ser correspondido. A aventura no espaço, afinal, é um grande Big Brother. Só que mais cara).

No caso de Ellis Lacey (Saoirse Ronan), a imigrante de Brooklyn, a ideia de lar é uma ideia de pertencimento em desintegração. Entre permanecer na cidade onde nasceu, cuidar da mãe, casar com o bom partido da localidade ou se perder para se encontrar, ela conclui, a certa altura do filme, que ser livre é construir laços afetivos não determinados por nossas origens ou passado.

Em outras palavras, é preciso romper com um destino imposto antes do nascimento. Isso requer um rompimento mais doloroso com os papeis de filha ou esposa ideal, conformada com o provincianismo de uma vida sob controle dos laços sanguíneos, comunitários, religiosos.

Trata-se de um jogo entre confinamento e expansão, e é louvável que, apesar da polêmica (justificada, diga-se) sobre diversidade no Oscar, e a ausência de atores negros entre os indicados, três dos oito concorrentes tenham como tema o protagonismo de mulheres que assumem sua vontade (e, consequentemente, sua subjetividade) se rebelando contra um destino imposto.

Em Mad Max – A Estrada da Fúria, é a filha favorita do chefe do clã quem se rebela e decide tomar uma estrada diferente daquela determinada pelo patriarca. Leva com ela as parceiras favoritas do opressor. A mudança de curso é a mudança de postura: ela pode dirigir o próprio caminhão e ir para onde quiser – onde ela e as amigas possam ser mais do que figuras de procriação e se reafirmar como humanas, e não escravas de vontades alheias. Mad Max é um filme sobre a objetificação. E sobre a rebelião contra esta ideia.

Da mesma forma, O Quarto de Jack, de Lenny Abrahansom, pode ser visto, entre outras possibilidades de leitura, como uma rebelião: uma rebelião contra o confinamento simbólico da maternidade (por coincidência, falamos sobre o tema na última crônica). No filme, Joy (Brie Larson) é uma mulher sequestrada e obrigada a viver durante sete anos no cativeiro com um estranho que a agride, a violenta e a engravida.

Diante de um destino imposto por uma violência, ela se apega ao filho com todas as forças para expandir aquele mundo de vigilância e punição. Contada pela ótica da criança, o filme abusa do direito de manipular os sentimentos do espectador, como bem lembrou minha amiga Clarice Cardoso.

Mas é preciso reconhecer que conseguiu levar, para uma história de violência extrema de sequestro e estupro, uma série de elementos comuns das violências mais sutis presentes nas melhores famílias. Como quando o dono da casa justifica a agressividade por estar desempregado. Ou quando assume a autoridade questionando a mulher sobre quem paga as contas em casa e exige dela não a opinião, mas o agradecimento.

O rompimento com a ideia de confinamento com a ajuda do filho é só o começo da história. Fora de lá, é preciso sobreviver a um mundo que ela já não reconhece. Há uma simbologia nessa travessia entre um quarto/cativeiro e um quarto/morada.

Fora daquele cativeiro, existem variadas forças de controle e aprisionamento sobre a personagem – a falta de acolhimento do pai que se descobre avô, o olhar perseguidor da vizinhança, a fúria da repórter, porta-voz da curiosidade mórbida dos espectadores que querem emparedar aquela mulher com perguntas do tipo: “você acha mesmo que fez o melhor para o seu filho?”.

A expansão de uma ideia de cativeiro (ou o aprisionamento de uma ideia de liberdade) é seguida de uma pergunta: como não enlouquecer quando quem deveria proteger é justamente quem mais oferece perigo?

A mesma pergunta pode ser transportada para as vítimas de abusos frequentes praticados por padres investigados pelos repórteres da Spotligh, a tropa de elite do The Boston Globe responsável por furar a espiral de silêncio e impunidade em torno da Igreja Católica.

Para isso é preciso atravessar o colchão de conforto colocado na superfície das grandes tragédias, muitas vezes escondidas nos pronunciamentos protocolares e no medo de comprar briga com uma instituição não só poderosa como sagrada. O conflito fica mais claro quando uma das repórteres, frequentadora da igreja com a avó, passa a questionar a própria fé. 

Para sair dessa zona de conforto, o diretor McCarthy mostra que é preciso ir à rua. Ouvir negativas, domar a ansiedade, desconstruir versões oficiais e, sobretudo, se solidarizar com a vítima, numa transposição de fronteiras pouco recomendada pelas cartilhas do bom jornalismo – aquele que não se envolve mas também não mergulha.

É preciso, enfim, vencer a força gravitacional para a manutenção da ordem quando todos, inclusive os colaboradores mais confiáveis, dizem que é melhor não mexer em certas histórias porque não vão dar em nada. 

Não é outra a força gravitacional enfrentada pelos personagens de A Grande Aposta, sobretudo quando a sensação de normalidade é assegurada por profissionais especializados em avaliação de risco. O filme de Adam Mckay retrata o mundo do mercado financeiro como um circo de fraudes e irresponsabilidades que levou ao estouro da bolha da farra imobiliária e, consequentemente, à crise econômica de 2008.

Essa crise tinha hora para estourar, mas só foi percebida por quem notou os sinais estranhos negligenciados pelas instituições consideradas, até então, sólidas e seguras. Os sinais não estavam apenas nos números, mas no cenário das mansões abandonadas quando o sistema de financiamento imobiliário já se mostrava insustentável. Deu no que deu.

Na epígrafe de uma crise até hoje não superada, a lição transformada em tragicomédia é que a confiança é um ativo sem lastro. Nesse mundo novo, o sistema se tornou tão complexo que nele ninguém está seguro. O sonho da casa própria não tem garantia de abrigo – e apostar contra o sistema pode não salvar o mundo, mas rende lucro e abre um novo mercado de…seguros!

“Homem primata, capitalismo selvagem” daria uma trilha sonora perfeita para o filme, que garante umas boas horas de risadas seguidas de um desespero inevitável à espera da próxima crise.

É como a lei da selva, diria o protagonista interpretado por Leonardo DiCaprio em O Regresso. No filme, talvez o único candidato a clássico entre os indicados, o esforço pela sobrevivência acirrou a disputa pelo prêmio de melhor ator entre DiCaprio e Matt Damon, mas o percurso do guia deixado para trás na floresta em pleno inverno é o caminho contrário da volta à Terra.

Se no filme de Ridley Scott a solidariedade funciona como um bote de salvação, na história de Alejandro González Iñarritu a crise de empatia é tratada como um impasse civilizacional. Num aparente embate entre nativos e colonizadores, natureza e cultura, o diretor mexicano conseguiu retratar uma espiral de opressões que embaralha os conceitos consagrados de civilização e barbárie.

Com ela, levou o espectador a reconhecer um sintoma da sociedade contemporânea, com suas guerras territoriais e brutalidades desfiladas entre fanáticos de todas as vertentes, a um ponto de origem: uma sociedade fundada na violência e na invasão.

O personagem de DiCaprio incorpora, à sua maneira, a utopia do acolhimento. É o indivíduo que circula em segurança entre diferenças e produz, a partir dali, um novo pacto. Essa utopia, representada pelo filho de mãe indígena, é estraçalhada ao longo do filme, e os laços de solidariedade são fios desencapados dentro e fora de cada tribo. No filme, o dono da companhia de pele autoriza a matança dos animais, explora o trabalhador, que trai o companheiro, que foge dos índios Arikara, que perseguem os índios Pawnee, que são trucidadas pelos colonizadores franceses, que exploram os índios Arikara.

Entre a natureza agressiva que passa a servir como abrigo e o projeto de civilização fundado na exploração e no genocídio, um único elemento é capaz de separar homens de animais quando estão em perigo: a capacidade de se vingar é o que nos torna humanos. A placa sobre o corpo de um Pawnee assassinado é a senha de uma estrutura elementar: “somos todos selvagens”. Saímos do cinema com a sensação de que jamais deixamos de ser.

De tempos em tempos, porém, esta crise de empatia é agravada por eventos políticos e econômicos de radicalismos acirrados. Em Ponte dos Espiões, de Steven Spielberg, o advogado interpretado por Tom Hanks é convocado a trabalhar como defensor de um espião soviético. À fúria punitiva de seus conterrâneos, que ignoram as leis do próprio país para defender a morte do inimigo, o advogado, perseguido pela opinião pública se contrapõe como um sujeito intermediário entre o conforto (dar à população o que ela quer e evitar transtornos) e o dever.

Essa fúria só é domada quando um espião americano é preso numa incursão à URSS. É quando o inimigo execrado passa a ter um “igual”. A viagem para uma fria e desconhecida Alemanha Oriental, onde, em uma ponte de Berlim, é negociada a troca, é a transição dessa zona de conforto em direção ao desconhecido – retratado por Spielberg, vale frisar, com todos os estereótipos esperados.

No filme, todos querem voltar para casa, mas só alguns têm direito – os que são reconhecidos como detentores de direitos fundamentais, e não meramente como corpos a serem malhados e destruídos em troca de informação. Vista de longe, entretanto, a casa/nação não é mais um local de abrigo. É onde se elege e se persegue inimigos com ou sem o consentimento da lei – a instituição em xeque quando o debate é contaminado pela irracionalidade política que não se limita à Guerra Fria.

Em comum entre os indicados, todos os personagens parecem buscar forças numa ideia abstrata de solidariedade para minimizar a sensação de isolamento em um mundo de referências – simbólicos, religiosos, sociais e afetivas – em colapso. A pergunta inevitável é a convidada inconveniente da festa de premiação: para onde estamos indo?

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