Cultura

O segredo em base distante

Reportagem de Roberto Muylaert refaz o encontro de Franklin Roosevelt e Getúlio Vargas, em Natal, há quase 70 anos

Só sorrisos. Presidente Roosevelt parte com Getúlio Vargas para Parnamirim
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por Elias Thomé Saliba

Inspiradas em US Navy, muitas famílias batizaram seus bebês com o nome de “Osnavi”. Um menino abiscoitou 5 dólares ao dar um brilho nos sapatos de Tyrone Power, um dos muitos artistas a fazer shows- para os soldados. Os ônibus que levavam as moças potiguares para festas na base norte-americana de Parnamirim receberam o gaiato apelido de “marmitas”. Juntamente com os milhares de soldados americanos vindos para Parnamirim Field, chegaram também a Natal a música das big bands, filmes, chicletes, uísques e até calças compridas para mulheres. É com essas cenas pitorescas e folclóricas que o filme Forall, o Trampolim da Vitória, lançado em 1997, registra a presença norte-americana na base de Natal durante os anos mais críticos da Segunda Guerra Mundial. Até o burlesco título do filme refere-se a um equívoco paródico, pois retrata os bailes domingueiros, não exclusivos dos soldados americanos, ou seja, for all, abertos a todos. Mas o registro da história apenas pelo seu lado pitoresco maltrata nossa combalida memória coletiva e obscurece o real significado do evento.

1943: Roosevelt e Vargas em Natal, de Roberto Muylaert (Bússola, 208 págs., R$ 36,90), é um antídoto a essa espécie de amnésia bem brasileira, na qual a caricatura passa ao largo da história. O tema central é o encontro secreto entre Franklin Roosevelt e Getúlio Vargas, em Natal, no fim de janeiro de 1943. A partir de fontes dispersas em arquivos brasileiros e estrangeiros, Muylaert reconstitui os eventos paralelos que levaram a esse encontro, mostrando a maneira pela qual ele serviu como catalisador de mudanças importantes no cenário brasileiro. A ameaça alemã, de estender seu domínio marítimo ao Atlântico Sul, incluindo uma possível invasão da costa brasileira, era onipresente. No ano anterior ao encontro, 1942, cerca de 400 navios americanos foram torpedeados pelos alemães, resultando em mais de 5 mil mortos e no bloqueio de toneladas de alimentos e armas que não chegaram à frente de batalha europeia. Parnamirim Field tornara-se estratégico, pois, a partir dali, a frota americana transformou a rota Natal-Dacar num corredor para municiar os exércitos aliados na batalha de tanques no Norte da África.

Roosevelt vinha de Casablanca, no Marrocos, num Boeing Clipper que voava a baixa altitude pelo oceano coalhado de frotas de guerra, mais um motivo para o sigilo da viagem. Ao contrário do que se pensa comumente, Muylaert mostra como os dois governantes não discutiram a instalação de bases brasileiras, mesmo porque isso já havia sido decidido anteriormente. Como desdobramento das reuniões de Roosevelt com Churchill e os diplomatas russos em Casablanca, eles conversaram mais sobre a conjuntura geral da guerra, estabelecendo alguns acordos que redundaram na efetiva participação nacional no conflito, com o envio dos soldados da Força Expedicionária Brasileira.

Por meio da narrativa de dramas paralelos, Muylaert mostra como o segredo do encontro foi mantido até o final, pois Getúlio acabara de deixar seu filho (Getulinho, de 23 anos) em estado grave, sem revelar nenhum detalhe da viagem a Natal. Getulinho faleceu dias depois, vítima da doença da qual padecia Roosevelt.  Mais do que ninguém, o americano poderia compreender o sofrimento de Vargas em relação ao filho, atingido pela poliomielite, para a qual ainda não existiam vacinas. Outro episódio paralelo e pouco conhecido que Muylaert refaz é o casamento de Lutero Vargas com a charmosa alemã Ingeborg ten Haeff, em abril de 1940. A apressada vinda de Lutero para o Brasil em avião militar pilotado por Bruno, o jovem filho de Mussolini, o casamento, o nascimento da filha Cândida em 1941 e o divórcio, logo após a guerra. Como um repórter que não quer perder nada, Muylaert relata alguns desses dramas pessoais, incluindo muitos depoimentos contraditórios, já que, como afirmou John Githens, o terceiro marido de Ingeborg, os Vargas “foram e continuam sendo um bom manancial de fofocas”. Seja como for, a narrativa desses dois dramas paralelos ao encontro de 1943 adiciona um colorido afetivo ao conturbado panorama histórico.

As histórias da Segunda Guerra Mundial, em geral, silenciam sobre o episódio de Natal, reduzindo-o no máximo a uma nota de rodapé do jogo diplomático. Assim como os encontros entre Roosevelt e Stalin, tais cenas inoportunas foram varridas da memória pelo ambiente pesado da diplomacia da Guerra Fria pós-1945. As biografias de Roosevelt também se encarregaram de desinfetar de sua trajetória encontros com déspotas e ditadores. As promessas de Roosevelt a Vargas, incluída a vaga na ONU e, sobretudo, um futuro bônus de participar no Conselho de Segurança, foram abandonadas no pós-guerra. Mas, como revela a correspondência entre Stalin e Roosevelt, de recente publicação, muita coisa importante foi abandonada após a morte do americano.

Menos de dez dias depois da morte de Roosevelt, em 1945, o embaixador russo Vyacheslav Molotov (que era para Stalin o que Harry Hopkins era para Roosevelt) seria destratado por Harry Truman. “Ninguém jamais falou assim comigo”, reclamou Molotov. “Cumpra sua palavra e não o tratarei dessa maneira”, rebateu Truman. O diálogo seria inconcebível na presença de Roosevelt. O restante da história é bem conhecido: quatro meses depois da morte de Roosevelt vieram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki e as cinzas da Guerra Fria manietaram o diálogo e calcinaram as mentes. A narrativa do encontro de 1943 só reforça o perfil diplomático notável do presidente americano, a quem Isaiah Berlin definiu como “um farol iluminando o futuro”. Roosevelt foi o único personagem controverso a obter unanimidade de dois historiadores tão diferentes como Arthur Schlesinger Jr. e Eric J. Hobsbawm. Já Vargas, com seu comportamento ambíguo em 1943, apenas reacende o juízo definitivo de Raymundo Faoro sobre o ditador: “Um chuchu sem gosto e inodoro, que assume o sabor do molho com que o condimentam: ele protela, procrastina, transfere, demora, adia, prorroga, esperando ninguém sabe o quê. Bem, ele sabia o que esperava”.

O episódio de Natal nada acrescenta à história da Segunda Guerra, mas fornece novos ângulos de visão e outras perspectivas, nem sempre agradáveis à nossa cômoda amnésia histórica. Até mesmo o flagrante preservado na famosa foto do jipe, com o sorriso e a bonomia de Roosevelt e Vargas, apenas escondia as violências e as perversidades da guerra. Perversidades tanto do front externo quanto aquelas do front interno: a violenta repressão ditatorial em pleno Estado Novo que nenhum sorriso, nem a burla da caricatura, poderia fazer esquecer.

por Elias Thomé Saliba

Inspiradas em US Navy, muitas famílias batizaram seus bebês com o nome de “Osnavi”. Um menino abiscoitou 5 dólares ao dar um brilho nos sapatos de Tyrone Power, um dos muitos artistas a fazer shows- para os soldados. Os ônibus que levavam as moças potiguares para festas na base norte-americana de Parnamirim receberam o gaiato apelido de “marmitas”. Juntamente com os milhares de soldados americanos vindos para Parnamirim Field, chegaram também a Natal a música das big bands, filmes, chicletes, uísques e até calças compridas para mulheres. É com essas cenas pitorescas e folclóricas que o filme Forall, o Trampolim da Vitória, lançado em 1997, registra a presença norte-americana na base de Natal durante os anos mais críticos da Segunda Guerra Mundial. Até o burlesco título do filme refere-se a um equívoco paródico, pois retrata os bailes domingueiros, não exclusivos dos soldados americanos, ou seja, for all, abertos a todos. Mas o registro da história apenas pelo seu lado pitoresco maltrata nossa combalida memória coletiva e obscurece o real significado do evento.

1943: Roosevelt e Vargas em Natal, de Roberto Muylaert (Bússola, 208 págs., R$ 36,90), é um antídoto a essa espécie de amnésia bem brasileira, na qual a caricatura passa ao largo da história. O tema central é o encontro secreto entre Franklin Roosevelt e Getúlio Vargas, em Natal, no fim de janeiro de 1943. A partir de fontes dispersas em arquivos brasileiros e estrangeiros, Muylaert reconstitui os eventos paralelos que levaram a esse encontro, mostrando a maneira pela qual ele serviu como catalisador de mudanças importantes no cenário brasileiro. A ameaça alemã, de estender seu domínio marítimo ao Atlântico Sul, incluindo uma possível invasão da costa brasileira, era onipresente. No ano anterior ao encontro, 1942, cerca de 400 navios americanos foram torpedeados pelos alemães, resultando em mais de 5 mil mortos e no bloqueio de toneladas de alimentos e armas que não chegaram à frente de batalha europeia. Parnamirim Field tornara-se estratégico, pois, a partir dali, a frota americana transformou a rota Natal-Dacar num corredor para municiar os exércitos aliados na batalha de tanques no Norte da África.

Roosevelt vinha de Casablanca, no Marrocos, num Boeing Clipper que voava a baixa altitude pelo oceano coalhado de frotas de guerra, mais um motivo para o sigilo da viagem. Ao contrário do que se pensa comumente, Muylaert mostra como os dois governantes não discutiram a instalação de bases brasileiras, mesmo porque isso já havia sido decidido anteriormente. Como desdobramento das reuniões de Roosevelt com Churchill e os diplomatas russos em Casablanca, eles conversaram mais sobre a conjuntura geral da guerra, estabelecendo alguns acordos que redundaram na efetiva participação nacional no conflito, com o envio dos soldados da Força Expedicionária Brasileira.

Por meio da narrativa de dramas paralelos, Muylaert mostra como o segredo do encontro foi mantido até o final, pois Getúlio acabara de deixar seu filho (Getulinho, de 23 anos) em estado grave, sem revelar nenhum detalhe da viagem a Natal. Getulinho faleceu dias depois, vítima da doença da qual padecia Roosevelt.  Mais do que ninguém, o americano poderia compreender o sofrimento de Vargas em relação ao filho, atingido pela poliomielite, para a qual ainda não existiam vacinas. Outro episódio paralelo e pouco conhecido que Muylaert refaz é o casamento de Lutero Vargas com a charmosa alemã Ingeborg ten Haeff, em abril de 1940. A apressada vinda de Lutero para o Brasil em avião militar pilotado por Bruno, o jovem filho de Mussolini, o casamento, o nascimento da filha Cândida em 1941 e o divórcio, logo após a guerra. Como um repórter que não quer perder nada, Muylaert relata alguns desses dramas pessoais, incluindo muitos depoimentos contraditórios, já que, como afirmou John Githens, o terceiro marido de Ingeborg, os Vargas “foram e continuam sendo um bom manancial de fofocas”. Seja como for, a narrativa desses dois dramas paralelos ao encontro de 1943 adiciona um colorido afetivo ao conturbado panorama histórico.

As histórias da Segunda Guerra Mundial, em geral, silenciam sobre o episódio de Natal, reduzindo-o no máximo a uma nota de rodapé do jogo diplomático. Assim como os encontros entre Roosevelt e Stalin, tais cenas inoportunas foram varridas da memória pelo ambiente pesado da diplomacia da Guerra Fria pós-1945. As biografias de Roosevelt também se encarregaram de desinfetar de sua trajetória encontros com déspotas e ditadores. As promessas de Roosevelt a Vargas, incluída a vaga na ONU e, sobretudo, um futuro bônus de participar no Conselho de Segurança, foram abandonadas no pós-guerra. Mas, como revela a correspondência entre Stalin e Roosevelt, de recente publicação, muita coisa importante foi abandonada após a morte do americano.

Menos de dez dias depois da morte de Roosevelt, em 1945, o embaixador russo Vyacheslav Molotov (que era para Stalin o que Harry Hopkins era para Roosevelt) seria destratado por Harry Truman. “Ninguém jamais falou assim comigo”, reclamou Molotov. “Cumpra sua palavra e não o tratarei dessa maneira”, rebateu Truman. O diálogo seria inconcebível na presença de Roosevelt. O restante da história é bem conhecido: quatro meses depois da morte de Roosevelt vieram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki e as cinzas da Guerra Fria manietaram o diálogo e calcinaram as mentes. A narrativa do encontro de 1943 só reforça o perfil diplomático notável do presidente americano, a quem Isaiah Berlin definiu como “um farol iluminando o futuro”. Roosevelt foi o único personagem controverso a obter unanimidade de dois historiadores tão diferentes como Arthur Schlesinger Jr. e Eric J. Hobsbawm. Já Vargas, com seu comportamento ambíguo em 1943, apenas reacende o juízo definitivo de Raymundo Faoro sobre o ditador: “Um chuchu sem gosto e inodoro, que assume o sabor do molho com que o condimentam: ele protela, procrastina, transfere, demora, adia, prorroga, esperando ninguém sabe o quê. Bem, ele sabia o que esperava”.

O episódio de Natal nada acrescenta à história da Segunda Guerra, mas fornece novos ângulos de visão e outras perspectivas, nem sempre agradáveis à nossa cômoda amnésia histórica. Até mesmo o flagrante preservado na famosa foto do jipe, com o sorriso e a bonomia de Roosevelt e Vargas, apenas escondia as violências e as perversidades da guerra. Perversidades tanto do front externo quanto aquelas do front interno: a violenta repressão ditatorial em pleno Estado Novo que nenhum sorriso, nem a burla da caricatura, poderia fazer esquecer.

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