Cultura

O que foi feito devera?

Marie acordou num belo dia e se esqueceu do que viveu nos últimos 15 anos. Sorte dela

Marie, personagem de Juliette Binoche em A Vida de Outra Mulher
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Das coincidências. Acabava de assistir A Vida de Outra Mulher ontem no cinema quando, a caminho de casa, começou a tocar O Que Foi Feito Devera, talvez uma das dez canções que eu levaria comigo a qualquer praia deserta.

Tanto o filme de Sylvie Testud como a música cantada por Elis Regina e Milton Nascimento falam de mudanças. Mais: das angústias de quem acordou certo dia e, distante daquilo que foi um dia, já não se reconhece mais. Na música, o esforço para se lembrar do que se foi um dia é cantado numa troca de vozes constante de quem quer apenas encontrar um “verso menino” escrito anos atrás – num tempo em que o “cansaço era rio e rio qualquer dava pé”. Um tempo em que o compromisso era chegar a algum ponto (o futuro inevitável), longe do lugar de origem, mas manter a essência. O alerta era: “Não vá dormir como pedra e esquecer o que foi feito de nós”.

Pois é exatamente o que acontece com Marie (Juliette Binoche) ao acordar de sonhos talvez tormentosos: ao abrir os olhos, vê-se numa cama de um quarto de uma casa desconhecida. Não reconhece o filho, a faxineira, nada. Sua última lembrança é do dia em que conheceu e se apaixonou por Paul (Mathieu Kassovitz), com quem descobre ter se casado.

Na prática, o apagão da memória faz com que ela desperte de um sono de 15 anos. É como dormir aos 25 anos e acordar aos 40. O impacto é brutal (e hilário em alguns momentos). Ao ler o jornal, ela se assusta ao saber que Michael Jackson estava morto e que um tal Barack Obama era presidente dos Estados Unidos. Como opta por não buscar tratamento médico (com medo de ser internada como “louca”), Marie conta com as raras pistas deixadas por quem viveu aquela história acordado para entender o novo tempo – como quando pergunta a um estranho na rua o que aconteceu de importante nos últimos 15 anos e o sujeito responde: a vitória da França em 98!

“Houve uma guerra?”, pergunta, assustada, a personagem.

Os códigos de conduta mundo afora também são outros – no dia de sua última lembrança, ainda era possível fumar em locais fechados, e para se adaptar ao novo mundo ela terá de lidar com olhares de reprovação de quem assimilou as novas regras com os anos. Porque o que antes era tolerado hoje está sob a batuta da lei (uma lei que ela desconhece).

Mas nada é mais desafiador, para ela, do que entender por que todos a olham com medo, receio e distância quando a veem passar. Aos poucos, Marie descobre que a menina talentosa e cheia de vontade de outro tempo se transformou numa temida e bem-sucedida executiva. E que está podre de rica.

Mas, como dormiu como pedra, esqueceu o que foi feito dela. Já não sabe em que se transformou e não tem ideia dos motivos que fazem sua mãe barrar sua entrada na antiga casa nem por que a amiga da juventude rejeita o seu contato. E descobre, por fim, que seu principal desafio é entender por que fracassou no casamento com a pessoa que (disso ela se lembra bem) ainda ama.

“No que me transformei?”, ela se pergunta, já sem saber se é uma mulher de 25 anos que acordou aos 40 ou se é uma mulher de 40 que acordou com 25.

Noves fora alguns (poucos) diálogos e situações previsíveis, ora inverossímeis ou melosos demais, o filme de alguma forma brincou com um desejo, talvez inconfesso, de um retorno à essência. Como na música de Elis e Milton, todos em algum momento da vida se perguntaram o que nossos personagens de 15 ou 20 anos pensariam de nós se nos vissem agir aos 30, aos 40 ou aos 70 anos. É a velha questão: “O que foi feito de nós?”

A resposta não é fácil porque “aquele verso menino” escrito anos atrás agora está coberto de poeira, rancores, frustrações, traições, angústias, ambições, novas prioridades, cansaços, tédios, desencantos. É o que se acumula com os anos – e isso nem os ditos vencedores escapam. A memória, a certa altura da vida, é nada mais que um fardo, um peso a ser carregado como maldição (saí do cinema bastante desconfiado de quem repete todos os dias que não se arrepende de nada nesta vida, mas esta é outra conversa).

Marie demora a perceber, mas tirou a sorte grande: sem seu histórico de arrependimentos e mágoas (dos quais, afinal, não se lembra), ela consegue olhar para o marido com os olhos de 15 anos atrás. Esses novos velhos olhos não estão viciados pela culpa nem pela dor, apenas pelo encanto de algo que sabe ter vivido, mas que por algum motivo se dissipou – não para a jovem Marie. O esquecimento é a sua maior benção. E é também o combustível para encarar de frente a pergunta que todos um dia fizeram (ou cantaram, como Milton e Elis): “O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou?”

Sorte de Marie, que acordou um belo dia sem as ranhuras que só o corpo acusa. Para quem passou a vida insone, a resposta é mais embaixo: está submersa em camadas e camadas de poeira e memória que só a música e os perfumes, quando muito, trazem de volta à superfície.

Das coincidências. Acabava de assistir A Vida de Outra Mulher ontem no cinema quando, a caminho de casa, começou a tocar O Que Foi Feito Devera, talvez uma das dez canções que eu levaria comigo a qualquer praia deserta.

Tanto o filme de Sylvie Testud como a música cantada por Elis Regina e Milton Nascimento falam de mudanças. Mais: das angústias de quem acordou certo dia e, distante daquilo que foi um dia, já não se reconhece mais. Na música, o esforço para se lembrar do que se foi um dia é cantado numa troca de vozes constante de quem quer apenas encontrar um “verso menino” escrito anos atrás – num tempo em que o “cansaço era rio e rio qualquer dava pé”. Um tempo em que o compromisso era chegar a algum ponto (o futuro inevitável), longe do lugar de origem, mas manter a essência. O alerta era: “Não vá dormir como pedra e esquecer o que foi feito de nós”.

Pois é exatamente o que acontece com Marie (Juliette Binoche) ao acordar de sonhos talvez tormentosos: ao abrir os olhos, vê-se numa cama de um quarto de uma casa desconhecida. Não reconhece o filho, a faxineira, nada. Sua última lembrança é do dia em que conheceu e se apaixonou por Paul (Mathieu Kassovitz), com quem descobre ter se casado.

Na prática, o apagão da memória faz com que ela desperte de um sono de 15 anos. É como dormir aos 25 anos e acordar aos 40. O impacto é brutal (e hilário em alguns momentos). Ao ler o jornal, ela se assusta ao saber que Michael Jackson estava morto e que um tal Barack Obama era presidente dos Estados Unidos. Como opta por não buscar tratamento médico (com medo de ser internada como “louca”), Marie conta com as raras pistas deixadas por quem viveu aquela história acordado para entender o novo tempo – como quando pergunta a um estranho na rua o que aconteceu de importante nos últimos 15 anos e o sujeito responde: a vitória da França em 98!

“Houve uma guerra?”, pergunta, assustada, a personagem.

Os códigos de conduta mundo afora também são outros – no dia de sua última lembrança, ainda era possível fumar em locais fechados, e para se adaptar ao novo mundo ela terá de lidar com olhares de reprovação de quem assimilou as novas regras com os anos. Porque o que antes era tolerado hoje está sob a batuta da lei (uma lei que ela desconhece).

Mas nada é mais desafiador, para ela, do que entender por que todos a olham com medo, receio e distância quando a veem passar. Aos poucos, Marie descobre que a menina talentosa e cheia de vontade de outro tempo se transformou numa temida e bem-sucedida executiva. E que está podre de rica.

Mas, como dormiu como pedra, esqueceu o que foi feito dela. Já não sabe em que se transformou e não tem ideia dos motivos que fazem sua mãe barrar sua entrada na antiga casa nem por que a amiga da juventude rejeita o seu contato. E descobre, por fim, que seu principal desafio é entender por que fracassou no casamento com a pessoa que (disso ela se lembra bem) ainda ama.

“No que me transformei?”, ela se pergunta, já sem saber se é uma mulher de 25 anos que acordou aos 40 ou se é uma mulher de 40 que acordou com 25.

Noves fora alguns (poucos) diálogos e situações previsíveis, ora inverossímeis ou melosos demais, o filme de alguma forma brincou com um desejo, talvez inconfesso, de um retorno à essência. Como na música de Elis e Milton, todos em algum momento da vida se perguntaram o que nossos personagens de 15 ou 20 anos pensariam de nós se nos vissem agir aos 30, aos 40 ou aos 70 anos. É a velha questão: “O que foi feito de nós?”

A resposta não é fácil porque “aquele verso menino” escrito anos atrás agora está coberto de poeira, rancores, frustrações, traições, angústias, ambições, novas prioridades, cansaços, tédios, desencantos. É o que se acumula com os anos – e isso nem os ditos vencedores escapam. A memória, a certa altura da vida, é nada mais que um fardo, um peso a ser carregado como maldição (saí do cinema bastante desconfiado de quem repete todos os dias que não se arrepende de nada nesta vida, mas esta é outra conversa).

Marie demora a perceber, mas tirou a sorte grande: sem seu histórico de arrependimentos e mágoas (dos quais, afinal, não se lembra), ela consegue olhar para o marido com os olhos de 15 anos atrás. Esses novos velhos olhos não estão viciados pela culpa nem pela dor, apenas pelo encanto de algo que sabe ter vivido, mas que por algum motivo se dissipou – não para a jovem Marie. O esquecimento é a sua maior benção. E é também o combustível para encarar de frente a pergunta que todos um dia fizeram (ou cantaram, como Milton e Elis): “O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou?”

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