Cultura

O Juca

“Quando a coleção acabou com Donga e os primitivos eu resolvi passar uma flanelinha em cada disco para guardar a coleção bem guardada. Foi ai que percebi que faltava um número, o 41”

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No final dos anos 60 eu colecionava apenas selos e chaveiros. Todo mundo colecionava. Os chaveiros guardava numa caixa de sapatos da Clark escondida debaixo da minha cama. Eram muitos, dezenas de chaveiros. Para os selos tinha um álbum, presente que minha madrinha trouxe da América do Norte. Era dividido por países e eu me orgulhava de ter selos até mesmo da União Soviética, da Checoslováquia e do Congo Belga.

Quando Chico Anysio apareceu em preto e branco na televisão Colorado RQ do nosso vizinho anunciando a chegada às bancas da História da Música Popular Brasileira, pensei: vou colecionar! No reclame, Chico Anysio surgia num palco com o fascículo número 1 nas mãos e toda vez que o abria vinha a música do outro Chico, o Buarque: “hoje o samba saiu…” O anuncio fechava em off: “a Abril não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”.

Numa segunda feira 8 de junho, bem cedo, corri até a banca de Seu Benito para comprar o primeiro fascículo e o disco que Chico Anysio anunciara à noite na televisão: Noel Rosa. Cheguei em casa, rasguei o papel celofane que o envolvia e coloquei aquele disquinho de oito faixas no meu toca-discos três em um comprado com o meu primeiro ordenado.

Lá estava Aracy de Almeida cantando O Último Desejo, Almirante cantando O orvalho vem caindo, Martinho da Vila e o Regional de Canhoto Conversa de Botequim e uma Bethânia maravilhosa soltando a voz em Três Apitos. Ouvi uma, duas, dez vezes e fiquei esperando quinze dias pelo número dois, Pixinguinha.

A coleção foi crescendo. Veio o Caymmi, o Ismael Silva, o Ataulfo Alves, Capiba, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Luiz Gonzaga, Haroldo Lobo, Antônio Maria além dos novos baianos Caetano e Gil. Vieram também o Chico, o Milton, Roberto e Erasmo Carlos. Quando a coleção acabou com Donga e os primitivos eu resolvi passar uma flanelinha em cada disco para guardar a coleção bem guardada. Foi ai que percebi que faltava um número, o 41.

Últimas crônicas de Alberto Villas:

A primeira providencia foi encomendar ao jornaleiro que dez dias depois veio com a triste notícia: o fascículo 41 está esgotado! Não me dei por vencido e escrevi uma carta a Editora Abril.  Peguei o meu bloco Aviador papel de seda e com a Compactor na mão relatei o meu drama. Precisava encontrar custasse o que custasse o fascículo número 41. Fechei o envelope, fui ao correio, selei e despachei. Foram duas semanas para receber a resposta: não temos em estoque o fascículo solicitado. Inconformado, coloquei minha coleção incompleta na estante com a esperança de um dia, quem sabe, encontrar o número perdido.

Toda sexta feira à noite eu pegava o ônibus da Esplanada na rodoviária de Belo Horizonte com destino a Cataguases. Era lá que morava Teresa, meu primeiro amor.  Era sagrado. Todo fim de semana comia poeira pra ver Teresa. Adorava passear pelas ruas de Cataguases e parar na Distribuidora de Revistas Leone, uma loja enorme que ficava bem perto do Grande Hotel Villas, o hotel do meu tio. Era lá que os italianos Armando e o filho Giusepe Leone passavam o dia colocando ordem no galinheiro em meio a uma confusão de jornais, revistas e fascículos.

E foi num desses fins de semana que aconteceu o que eu sonhava. Avistei na última prateleira, bem lá no alto alguns fascículos empoeirados da História da Música Popular Brasileira. Perguntei ao velho Leone se por acaso ele não teria o 41 que me faltava.

– Só vendo! Disse ele.

Pegou uma escada de madeira e foi subindo devagarinho. Passou a mão naquele punhado de fascículos e foi descendo testando cada degrau antes de colocar os pés. Despejou tudo em cima do balcão e foi mostrando um a um: Billy Blanco, Johnny Alf, Catulo da Paixão Cearense, Carlos Lyra, Custodio Mesquita e, de repente, Juca Chaves! Perguntei a ele quanto teria de pagar por aquela preciosidade. Foi quando ele pegou um segundo óculos no bolso da camisa e disse:

– O que está escrito ai na capa, nove cruzeiros!

A noite de domingo chegou e o Juca já estava lá guardadinho na mala entre livros para não empenar. A noite na estrada foi longa. Cheguei em casa estropiado mas ainda tive ânimo para ouvir o disco inteirinho, as oito faixas. Presidente Bossa Nova, Meu violão morreu, Por quem sonha Ana Maria?, Aquarela de Sonhos,  Dona Maria Teresa, Caixinha, obrigado, Auto-Retrato e a Pequena marcha para um grande amor.

Essa semana rolou no Facebook um papo que acabou caindo na História da Música Popular Brasileira.  Meus amigos Edu Ramos e Lauro Lisboa, dois apaixonados pela coleção, rasgaram elogios em público confessando que foi graças aqueles fascículos e aqueles disquinhos de oito faixas que aprenderam a gostar de Lamartine Babo, Chiquinha Gonzaga, Cartola, Sinhô, Herivelto Martins e tantos outros.  A coleção nunca saiu da cabeça deles.

Essa pequena história que estou contando aqui hoje foi só pra deixar claro que eu, Edu Ramos e Lauro Lisboa não queremos abafar ninguém. Só queremos mostrar que gostamos de samba também.

………………………………………………………………………………………

Durante o mês de julho o cronista estará de ferias porque ninguém é de ferro. Volto no dia 3 de agosto, inclusive, mais velho. 

No final dos anos 60 eu colecionava apenas selos e chaveiros. Todo mundo colecionava. Os chaveiros guardava numa caixa de sapatos da Clark escondida debaixo da minha cama. Eram muitos, dezenas de chaveiros. Para os selos tinha um álbum, presente que minha madrinha trouxe da América do Norte. Era dividido por países e eu me orgulhava de ter selos até mesmo da União Soviética, da Checoslováquia e do Congo Belga.

Quando Chico Anysio apareceu em preto e branco na televisão Colorado RQ do nosso vizinho anunciando a chegada às bancas da História da Música Popular Brasileira, pensei: vou colecionar! No reclame, Chico Anysio surgia num palco com o fascículo número 1 nas mãos e toda vez que o abria vinha a música do outro Chico, o Buarque: “hoje o samba saiu…” O anuncio fechava em off: “a Abril não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”.

Numa segunda feira 8 de junho, bem cedo, corri até a banca de Seu Benito para comprar o primeiro fascículo e o disco que Chico Anysio anunciara à noite na televisão: Noel Rosa. Cheguei em casa, rasguei o papel celofane que o envolvia e coloquei aquele disquinho de oito faixas no meu toca-discos três em um comprado com o meu primeiro ordenado.

Lá estava Aracy de Almeida cantando O Último Desejo, Almirante cantando O orvalho vem caindo, Martinho da Vila e o Regional de Canhoto Conversa de Botequim e uma Bethânia maravilhosa soltando a voz em Três Apitos. Ouvi uma, duas, dez vezes e fiquei esperando quinze dias pelo número dois, Pixinguinha.

A coleção foi crescendo. Veio o Caymmi, o Ismael Silva, o Ataulfo Alves, Capiba, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Luiz Gonzaga, Haroldo Lobo, Antônio Maria além dos novos baianos Caetano e Gil. Vieram também o Chico, o Milton, Roberto e Erasmo Carlos. Quando a coleção acabou com Donga e os primitivos eu resolvi passar uma flanelinha em cada disco para guardar a coleção bem guardada. Foi ai que percebi que faltava um número, o 41.

Últimas crônicas de Alberto Villas:

A primeira providencia foi encomendar ao jornaleiro que dez dias depois veio com a triste notícia: o fascículo 41 está esgotado! Não me dei por vencido e escrevi uma carta a Editora Abril.  Peguei o meu bloco Aviador papel de seda e com a Compactor na mão relatei o meu drama. Precisava encontrar custasse o que custasse o fascículo número 41. Fechei o envelope, fui ao correio, selei e despachei. Foram duas semanas para receber a resposta: não temos em estoque o fascículo solicitado. Inconformado, coloquei minha coleção incompleta na estante com a esperança de um dia, quem sabe, encontrar o número perdido.

Toda sexta feira à noite eu pegava o ônibus da Esplanada na rodoviária de Belo Horizonte com destino a Cataguases. Era lá que morava Teresa, meu primeiro amor.  Era sagrado. Todo fim de semana comia poeira pra ver Teresa. Adorava passear pelas ruas de Cataguases e parar na Distribuidora de Revistas Leone, uma loja enorme que ficava bem perto do Grande Hotel Villas, o hotel do meu tio. Era lá que os italianos Armando e o filho Giusepe Leone passavam o dia colocando ordem no galinheiro em meio a uma confusão de jornais, revistas e fascículos.

E foi num desses fins de semana que aconteceu o que eu sonhava. Avistei na última prateleira, bem lá no alto alguns fascículos empoeirados da História da Música Popular Brasileira. Perguntei ao velho Leone se por acaso ele não teria o 41 que me faltava.

– Só vendo! Disse ele.

Pegou uma escada de madeira e foi subindo devagarinho. Passou a mão naquele punhado de fascículos e foi descendo testando cada degrau antes de colocar os pés. Despejou tudo em cima do balcão e foi mostrando um a um: Billy Blanco, Johnny Alf, Catulo da Paixão Cearense, Carlos Lyra, Custodio Mesquita e, de repente, Juca Chaves! Perguntei a ele quanto teria de pagar por aquela preciosidade. Foi quando ele pegou um segundo óculos no bolso da camisa e disse:

– O que está escrito ai na capa, nove cruzeiros!

A noite de domingo chegou e o Juca já estava lá guardadinho na mala entre livros para não empenar. A noite na estrada foi longa. Cheguei em casa estropiado mas ainda tive ânimo para ouvir o disco inteirinho, as oito faixas. Presidente Bossa Nova, Meu violão morreu, Por quem sonha Ana Maria?, Aquarela de Sonhos,  Dona Maria Teresa, Caixinha, obrigado, Auto-Retrato e a Pequena marcha para um grande amor.

Essa semana rolou no Facebook um papo que acabou caindo na História da Música Popular Brasileira.  Meus amigos Edu Ramos e Lauro Lisboa, dois apaixonados pela coleção, rasgaram elogios em público confessando que foi graças aqueles fascículos e aqueles disquinhos de oito faixas que aprenderam a gostar de Lamartine Babo, Chiquinha Gonzaga, Cartola, Sinhô, Herivelto Martins e tantos outros.  A coleção nunca saiu da cabeça deles.

Essa pequena história que estou contando aqui hoje foi só pra deixar claro que eu, Edu Ramos e Lauro Lisboa não queremos abafar ninguém. Só queremos mostrar que gostamos de samba também.

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Durante o mês de julho o cronista estará de ferias porque ninguém é de ferro. Volto no dia 3 de agosto, inclusive, mais velho. 

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