Cultura

Não vi Heleno, mas vi Herrera

Apesar do esforço, filme sobre ídolo do Botafogo deixa a impressão de que Rodrigo Santoro jamais passou perto de um campo de futebol

Rodrigo Santoro, no papel de Heleno de Freitas: tudo, menos futebol
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O torcedor do Botafogo tinha duas opções, na quarta-feira à noite, se quisesse entrar bem, de fôlego e coração renovados, no feriado santo.

Ao deixar o trabalho, ao fim do dia, podia correr para o cinema e conferir a cinebiografia de Heleno de Freitas (1920-1959), dirigida por José Henrique Fonseca e propagandeada pela crítica especializada. Parecia um programa e tanto.

O mesmo torcedor podia, em vez disso, se sentar no sofá da sala e acompanhar, pela tevê, a partida de ida na Copa do Brasil contra o Guarani, no Brinco de Ouro, em Campinas – se fosse fanático, podia seguir caravana com o time. Mas, para ver Herrera, seria pedir demais.

Quem optou pelo futebol acertou em cheio: viu, se não um grande jogo, uma vitória importante, de virada, sofrida. Com gol marcado por Herrera, o contestado meia-atacante argentino que de vez em quando desencanta. E ainda se divertiu toda vez que a bolinha apareceu na tela para anunciar um novo gol do Emelec, que no Equador venceu o rival Flamengo por 3 a 2 pela Libertadores.

Quem viu Herrera, autor do segundo gol contra o Bugre, não viu Heleno, dirão os saudosos. É verdade. Heleno de Freitas foi durante os anos 40 o símbolo máximo do time da estrela solitária. Brilhou sozinho num tempo em que a consagração nacional estava ainda em gestação. Era o tempo do “quase”, pelo menos para Botafogo e para a seleção brasileira, que ao fim da década sairia derrotada na final da Copa do Mundo contra o Uruguai num Maracanã recém-inaugurado – e lotado.

Não havia melhor lugar para abrigar um gênio contraditório, como anotou em crítica na revista Bravo o cineasta Cacá Diegues: o clube que Heleno amaria para sempre é alvinegro, a união da totalidade da cor e a ausência de todas elas.

O Rio e o Brasil também estavam em construção, e a chance de o diretor fazer um clássico, baseado num drama pessoal, para se entender o próprio País era colossal. Uma espécie de pênalti para um cinema que começa a dar sinais de cansaço, fórmulas batidas, contaminadas pelo tom novelesco, pelo drama favela-sertão ou pela risada auto-digestiva. Heleno, prometia-se, não seria nada disso. Era a chance de ver na tela um País em formação.

Mero engano.

De novo, como aconteceu em “Meu País”, Rodrigo Santoro tenta de toda forma se salvar. Como seu personagem, pede a bola no meio, encara rivais, sai costurando, dá carrinho, bate falta, escanteio, voa pra cabecear, esmurra as mãos contra parede. Mas o jogo fica no máximo num 0 a 0.

É compreensível que, ao levar a vida de um ídolo para a tela, o diretor se preocupe em desvendar o homem e não o artista. Foque, portanto, a vida e não a obra. Até se perdoa o fato de Heleno aparecer em cidades diferentes, de repente, sem alguma explicação. Por exemplo: o que o jogador fazia em Barranquilla quando soube que o Brasil havia sido derrotado na Copa de 50? Só quem gosta da história do futebol ou leu a biografia escrita por Marcos Eduardo Neves (“Nunca Houve um Homem como Heleno”) entendeu – mas quem só foi apresentado à história agora, em tese o público-alvo do filme, não.

O filme tem todos os elementos para fazer com que os que não gostam de futebol também não gostem do filme. Chega a ser impressionante, de fato, a mudança do personagem de Santoro nas cenas entrecortadas entre passado e presente, todo filmado em preto e branco. Santoro emagreceu, “perdeu” os dentes e os cabelos, sujou as unhas e empipocou o rosto para lembrar o fim de Heleno, ídolo decadente, morto em decorrência da sífilis e da loucura – espécie de punição mundana dos deuses pela esbórnia vivida em tempos áureos de gols, carros e mulheres.

Passou longe de enterrar o personagem, como fez André Gonçalves ao interpretar Garrincha tempos atrás.

Mesmo assim, falta alguma coisa. O filme se concentra em mostrar cenas longas da depressão sem mostrar suas origens. Tudo passa batido: do drible sofrido pela mulher e pelo melhor amigo, filmado às pressas, às cenas da infância que foram simplesmente ignoradas. De onde vinha Heleno? Como era a relação com seus pais? Nasceu rico e mimado? Dava sinais de explosão desde cedo? Como entrou na faculdade? Em que cidade nasceu? Tinha amigos na infância? O que o marcou? Como foi parar em General Severiano? Quando se tornou super-craque? Quem o lançou? Quem foram seus padrinhos no esporte?

Um filme de nem duas horas não pode ter a pretensão de explicar a complexidade de um personagem, mas pode chegar perto disso sem parecer melodrama. A vida no Copacabana Palace não pode explicar um personagem – e quem não gosta de futebol e nem se liga no Botafogo tem a novela da Globo (ou da Record) como opção.

Já quem gosta, e se importa minimamente com o Botafogo, tem ainda menos chances de encontrar um ídolo na tela. Lá, não vai ver lances semelhantes aos da vida, nem em campo nem fora dele. Os grandes episódios, como as embaixadinhas à la Edílson antes de um gol contra o Fluminense, não passaram nem perto dos gramados do filme.

Fora de campo, a coisa também não convence. Preso ao roteiro, Santoro, que é um bom ator, não conseguiu ficar sequer parecido com um jogador de futebol. A malandragem do boleiro é uma linguagem única; sobram palavrões e ombros caídos, faltam frases-feitas. As famosas declarações de Heleno, ainda que verdadeiras, na boca de Santoro soam inverossímeis, como se fossem ditas em outra linguagem…uma linguagem de folhetim.

Heleno era um lorde, um elitista num meio ainda pobre, amador, em que a grama do campo era ainda carpida por cabras. Era isso o que o distinguia dos demais. Ainda assim era boleiro, um caipora típico de Machado de Assis – capaz de quebrar o nariz mesmo quando cai de costas.

Mas a impressão, ao fim do filme, é que diretor e ator principal jamais chegaram perto de um campo de futebol antes. Não é preciso gostar do esporte para perceber.

Ao torcedor, ter Herrera e não ver Heleno nunca foi tão bom negócio.

 

O torcedor do Botafogo tinha duas opções, na quarta-feira à noite, se quisesse entrar bem, de fôlego e coração renovados, no feriado santo.

Ao deixar o trabalho, ao fim do dia, podia correr para o cinema e conferir a cinebiografia de Heleno de Freitas (1920-1959), dirigida por José Henrique Fonseca e propagandeada pela crítica especializada. Parecia um programa e tanto.

O mesmo torcedor podia, em vez disso, se sentar no sofá da sala e acompanhar, pela tevê, a partida de ida na Copa do Brasil contra o Guarani, no Brinco de Ouro, em Campinas – se fosse fanático, podia seguir caravana com o time. Mas, para ver Herrera, seria pedir demais.

Quem optou pelo futebol acertou em cheio: viu, se não um grande jogo, uma vitória importante, de virada, sofrida. Com gol marcado por Herrera, o contestado meia-atacante argentino que de vez em quando desencanta. E ainda se divertiu toda vez que a bolinha apareceu na tela para anunciar um novo gol do Emelec, que no Equador venceu o rival Flamengo por 3 a 2 pela Libertadores.

Quem viu Herrera, autor do segundo gol contra o Bugre, não viu Heleno, dirão os saudosos. É verdade. Heleno de Freitas foi durante os anos 40 o símbolo máximo do time da estrela solitária. Brilhou sozinho num tempo em que a consagração nacional estava ainda em gestação. Era o tempo do “quase”, pelo menos para Botafogo e para a seleção brasileira, que ao fim da década sairia derrotada na final da Copa do Mundo contra o Uruguai num Maracanã recém-inaugurado – e lotado.

Não havia melhor lugar para abrigar um gênio contraditório, como anotou em crítica na revista Bravo o cineasta Cacá Diegues: o clube que Heleno amaria para sempre é alvinegro, a união da totalidade da cor e a ausência de todas elas.

O Rio e o Brasil também estavam em construção, e a chance de o diretor fazer um clássico, baseado num drama pessoal, para se entender o próprio País era colossal. Uma espécie de pênalti para um cinema que começa a dar sinais de cansaço, fórmulas batidas, contaminadas pelo tom novelesco, pelo drama favela-sertão ou pela risada auto-digestiva. Heleno, prometia-se, não seria nada disso. Era a chance de ver na tela um País em formação.

Mero engano.

De novo, como aconteceu em “Meu País”, Rodrigo Santoro tenta de toda forma se salvar. Como seu personagem, pede a bola no meio, encara rivais, sai costurando, dá carrinho, bate falta, escanteio, voa pra cabecear, esmurra as mãos contra parede. Mas o jogo fica no máximo num 0 a 0.

É compreensível que, ao levar a vida de um ídolo para a tela, o diretor se preocupe em desvendar o homem e não o artista. Foque, portanto, a vida e não a obra. Até se perdoa o fato de Heleno aparecer em cidades diferentes, de repente, sem alguma explicação. Por exemplo: o que o jogador fazia em Barranquilla quando soube que o Brasil havia sido derrotado na Copa de 50? Só quem gosta da história do futebol ou leu a biografia escrita por Marcos Eduardo Neves (“Nunca Houve um Homem como Heleno”) entendeu – mas quem só foi apresentado à história agora, em tese o público-alvo do filme, não.

O filme tem todos os elementos para fazer com que os que não gostam de futebol também não gostem do filme. Chega a ser impressionante, de fato, a mudança do personagem de Santoro nas cenas entrecortadas entre passado e presente, todo filmado em preto e branco. Santoro emagreceu, “perdeu” os dentes e os cabelos, sujou as unhas e empipocou o rosto para lembrar o fim de Heleno, ídolo decadente, morto em decorrência da sífilis e da loucura – espécie de punição mundana dos deuses pela esbórnia vivida em tempos áureos de gols, carros e mulheres.

Passou longe de enterrar o personagem, como fez André Gonçalves ao interpretar Garrincha tempos atrás.

Mesmo assim, falta alguma coisa. O filme se concentra em mostrar cenas longas da depressão sem mostrar suas origens. Tudo passa batido: do drible sofrido pela mulher e pelo melhor amigo, filmado às pressas, às cenas da infância que foram simplesmente ignoradas. De onde vinha Heleno? Como era a relação com seus pais? Nasceu rico e mimado? Dava sinais de explosão desde cedo? Como entrou na faculdade? Em que cidade nasceu? Tinha amigos na infância? O que o marcou? Como foi parar em General Severiano? Quando se tornou super-craque? Quem o lançou? Quem foram seus padrinhos no esporte?

Um filme de nem duas horas não pode ter a pretensão de explicar a complexidade de um personagem, mas pode chegar perto disso sem parecer melodrama. A vida no Copacabana Palace não pode explicar um personagem – e quem não gosta de futebol e nem se liga no Botafogo tem a novela da Globo (ou da Record) como opção.

Já quem gosta, e se importa minimamente com o Botafogo, tem ainda menos chances de encontrar um ídolo na tela. Lá, não vai ver lances semelhantes aos da vida, nem em campo nem fora dele. Os grandes episódios, como as embaixadinhas à la Edílson antes de um gol contra o Fluminense, não passaram nem perto dos gramados do filme.

Fora de campo, a coisa também não convence. Preso ao roteiro, Santoro, que é um bom ator, não conseguiu ficar sequer parecido com um jogador de futebol. A malandragem do boleiro é uma linguagem única; sobram palavrões e ombros caídos, faltam frases-feitas. As famosas declarações de Heleno, ainda que verdadeiras, na boca de Santoro soam inverossímeis, como se fossem ditas em outra linguagem…uma linguagem de folhetim.

Heleno era um lorde, um elitista num meio ainda pobre, amador, em que a grama do campo era ainda carpida por cabras. Era isso o que o distinguia dos demais. Ainda assim era boleiro, um caipora típico de Machado de Assis – capaz de quebrar o nariz mesmo quando cai de costas.

Mas a impressão, ao fim do filme, é que diretor e ator principal jamais chegaram perto de um campo de futebol antes. Não é preciso gostar do esporte para perceber.

Ao torcedor, ter Herrera e não ver Heleno nunca foi tão bom negócio.

 

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