Cultura

Muito além do jardim

A estrada de Hasta La Vista é um caminho sem volta: pais e filhos abdicam de seus papéis pré-definidos para atingir, por si, uma vida inesgotável

Jozef, Lars e Philip: os amigos em busca de sexo na Espanha
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Fosse a Disneylândia, seria até possível imaginar, no futuro, a chamada sobre uma “turminha da pesada em busca de confusão e muita aventura” na sessão da tarde. Só que a aventura – juntar os amigos numa van e viajar à Espanha em busca de prostitutas – não é exatamente a trama apropriada para o horário.

O roteiro já subverteria naturalmente a lógica dos filmes sobre a família ideal – em que os filhos se rebelam, quebram as convenções, saem de casa, sentem saudades e voltam amansados, arrependidos, cheios de lições sobre a importância da família, união e moral da história. Em Hasta La Vista o cineasta belga Geoffrey Enthoven tomou um caminho diferente. Não criou um bordel qualquer, mas um bordel idealizado para atender clientes com necessidades especiais. Reunidos numa van, três amigos portadores de deficiência driblam os pais na Bélgica e seguem em direção à terra dos prazeres – longe da bolha de (in) segurança e cuidados especiais. Philip é tetraplégico, Lars tem um tumor que compromete o movimento das pernas e Jozef é cego.

No princípio, o diretor parece forçar um estranhamento ao colocar um garoto tetraplégico falando sobre sexo. É como se o espectador tendesse a ver algo deslocado: ele será o primeiro a defender a dignidade do portador da doença, mas teria dificuldade em associá-lo a um ato físico de padrões definidos de estética e integridade.

É essa barreira que o diretor tenta quebrar a marretada. Tudo o que seus personagens não querem é ser motivo de pena. Não querem lugares específicos e adequados para sua suposta condição. Querem, na verdade, mas não só.

Pelas limitações, os personagens precisam de mais atenção do que outros jovens da idade, mas as vocações juvenis estão todas lá: o desejo de independência, os testes de limites (inclusive do que pode ou não ser dito sem ofender), a insolência adolescente, as oscilações de humor, a excitação pelo novo, o medo da rejeição, a bebedeira para criar coragem, a vontade de conquistar e ser conquistado. Mas sobretudo o desejo de não deixar a vida passar sem deixas lastros do que tem de melhor. E eles também têm o direito de se perder em direção a elas.

O caminho é árduo e envolve um rompimento brusco. Os personagens do filme não parecem dispostos a aceitar um mundo só de comida levada à boa com a ajuda dos pais-babás. Querem comida, claro, mas também diversão, arte, vinho e mulheres. Para isso, é preciso assumir riscos e limites, e virar o mundo de ponta cabeça para dar outro significado às ideias de acessibilidade e inclusão – hoje obrigatórias em qualquer lugar sério.

Não fossem estes detalhes, o filme poderia facilmente ser enquadrado na etiqueta roadie movie, em que a estrada é nada mais que uma metáfora do caminho da auto-descoberta. Há ecos ali de Y Tu Mama También, do mexicano Alfonso Curarón, On The Road, clássico beatnik levado às telas por Walter Salles (ainda sem estreia no Brasil) e Pequena Miss Sunshine, de Jonathan Dayton. Em todos estes filmes há um lugar a ser alcançado e um caminho sem volta ao que funcionava antes.

Mas no filme Enthoven há ao menos um elemento novo: a apreensão dos pais encravada na história adolescente. Atentos e carinhosos, são eles a grande fonte de angústia ao ver os filhos chegarem à idade de sair de casa. É um estado de vigilância permanente de quem tenta dar ao filho uma vida normal mesmo sob os riscos de proteger demais, subestimar demais e inspirar coragem de menos. É comovente a forma com que os adultos observam os filhos, cientes de que podem perdê-los para o mundo – e sabendo que o mundo, da porta de casa para fora, foge dessa vigilância permanente.

É como se fossem pais duas vezes. Diante a apreensão, lembrei de uma cena arrebatadora do filme Ray, sobre o cantor Ray Charles: quando a mãe observa o esforço do filho, já completamente cego, para capturar um grilo na cozinha de casa. Em silêncio, sofre toda angústia de uma mãe ao ver o filho esbarrar às escuras em quinas e materiais cortantes, mas permanece em silêncio sem interferir na cena. Para fazer com que o filho acredite ser capaz de se virar por ele mesmo, sem mendigar ajuda, ela acabava de abdicar, em parte, do papel de mãe – e esse talvez seja o exercício mais alto de altruísmo que alguém poderia alcançar.

A estrada de Hasta La Vista é um pouco esse caminho sem volta: pais e filhos abdicando de papéis pré-definidos para atingir, cada um por si, uma vida inesgotável.  É um mundo imprevisível e incerto, mas que pode ser penetrado sem amarras além das inevitáveis. Para todo o resto existe a cumplicidade e apoio de quem menos se espera.

Fosse a Disneylândia, seria até possível imaginar, no futuro, a chamada sobre uma “turminha da pesada em busca de confusão e muita aventura” na sessão da tarde. Só que a aventura – juntar os amigos numa van e viajar à Espanha em busca de prostitutas – não é exatamente a trama apropriada para o horário.

O roteiro já subverteria naturalmente a lógica dos filmes sobre a família ideal – em que os filhos se rebelam, quebram as convenções, saem de casa, sentem saudades e voltam amansados, arrependidos, cheios de lições sobre a importância da família, união e moral da história. Em Hasta La Vista o cineasta belga Geoffrey Enthoven tomou um caminho diferente. Não criou um bordel qualquer, mas um bordel idealizado para atender clientes com necessidades especiais. Reunidos numa van, três amigos portadores de deficiência driblam os pais na Bélgica e seguem em direção à terra dos prazeres – longe da bolha de (in) segurança e cuidados especiais. Philip é tetraplégico, Lars tem um tumor que compromete o movimento das pernas e Jozef é cego.

No princípio, o diretor parece forçar um estranhamento ao colocar um garoto tetraplégico falando sobre sexo. É como se o espectador tendesse a ver algo deslocado: ele será o primeiro a defender a dignidade do portador da doença, mas teria dificuldade em associá-lo a um ato físico de padrões definidos de estética e integridade.

É essa barreira que o diretor tenta quebrar a marretada. Tudo o que seus personagens não querem é ser motivo de pena. Não querem lugares específicos e adequados para sua suposta condição. Querem, na verdade, mas não só.

Pelas limitações, os personagens precisam de mais atenção do que outros jovens da idade, mas as vocações juvenis estão todas lá: o desejo de independência, os testes de limites (inclusive do que pode ou não ser dito sem ofender), a insolência adolescente, as oscilações de humor, a excitação pelo novo, o medo da rejeição, a bebedeira para criar coragem, a vontade de conquistar e ser conquistado. Mas sobretudo o desejo de não deixar a vida passar sem deixas lastros do que tem de melhor. E eles também têm o direito de se perder em direção a elas.

O caminho é árduo e envolve um rompimento brusco. Os personagens do filme não parecem dispostos a aceitar um mundo só de comida levada à boa com a ajuda dos pais-babás. Querem comida, claro, mas também diversão, arte, vinho e mulheres. Para isso, é preciso assumir riscos e limites, e virar o mundo de ponta cabeça para dar outro significado às ideias de acessibilidade e inclusão – hoje obrigatórias em qualquer lugar sério.

Não fossem estes detalhes, o filme poderia facilmente ser enquadrado na etiqueta roadie movie, em que a estrada é nada mais que uma metáfora do caminho da auto-descoberta. Há ecos ali de Y Tu Mama También, do mexicano Alfonso Curarón, On The Road, clássico beatnik levado às telas por Walter Salles (ainda sem estreia no Brasil) e Pequena Miss Sunshine, de Jonathan Dayton. Em todos estes filmes há um lugar a ser alcançado e um caminho sem volta ao que funcionava antes.

Mas no filme Enthoven há ao menos um elemento novo: a apreensão dos pais encravada na história adolescente. Atentos e carinhosos, são eles a grande fonte de angústia ao ver os filhos chegarem à idade de sair de casa. É um estado de vigilância permanente de quem tenta dar ao filho uma vida normal mesmo sob os riscos de proteger demais, subestimar demais e inspirar coragem de menos. É comovente a forma com que os adultos observam os filhos, cientes de que podem perdê-los para o mundo – e sabendo que o mundo, da porta de casa para fora, foge dessa vigilância permanente.

É como se fossem pais duas vezes. Diante a apreensão, lembrei de uma cena arrebatadora do filme Ray, sobre o cantor Ray Charles: quando a mãe observa o esforço do filho, já completamente cego, para capturar um grilo na cozinha de casa. Em silêncio, sofre toda angústia de uma mãe ao ver o filho esbarrar às escuras em quinas e materiais cortantes, mas permanece em silêncio sem interferir na cena. Para fazer com que o filho acredite ser capaz de se virar por ele mesmo, sem mendigar ajuda, ela acabava de abdicar, em parte, do papel de mãe – e esse talvez seja o exercício mais alto de altruísmo que alguém poderia alcançar.

A estrada de Hasta La Vista é um pouco esse caminho sem volta: pais e filhos abdicando de papéis pré-definidos para atingir, cada um por si, uma vida inesgotável.  É um mundo imprevisível e incerto, mas que pode ser penetrado sem amarras além das inevitáveis. Para todo o resto existe a cumplicidade e apoio de quem menos se espera.

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