Cultura

Minha adorável barbearia

Ela não tinha nome mas era conhecida por todos do bairro

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Era um espaço pequeno, poucos metros quadrados, sem nenhum glamour. Ficava do lado esquerdo de quem subia a Rua Grão Mogol, rumo ao bairro do Sion, em Belo Horizonte. Não tinha nome, nem número na porta. Era conhecida como a barbearia do Zé e do Geraldo. Os dois eram irmãos e bem parecidos, só que o Zé era moreno e Geraldo, quase ruivo. 

A barbearia tinha azulejos brancos até a metade da parede e o chão era de ladrilhos trabalhados, verde e rosa, hoje muito valorizados em restaurantes da moda, aqui em São Paulo. Naquela época, eram ladrilhos comuns, que víamos nos alpendres e nas cozinhas das casas do bairro. 

Na parede, lá no alto, como se fosse um altar, Zé e Geraldo instalaram um rádio, desses grandes, bonitos, que estava sempre sintonizado na Rádio Itatiaia, nos programas de esporte.

Ao lado do rádio, um pôster do Brasil bicampeão no Chile, aquele time que tinha Djalma Santos, Vavá, Amarildo e Garrincha. Era um pôster de página dupla que veio na edição especial do Diário da Tarde e que os dois mandaram emoldurar. 

Era nessa barbearia que, desde menino, cortava o meu cabelo. Até os dez anos, era um corte que deixava apenas o topete, como o Ronaldinho naquela Copa de 2002 em que o Brasil foi penta, derrotando a Alemanha por 2 a 0.  

Quando cresci, quando troquei a calça curta pela calça comprida e o lápis pela caneta tinteiro, o corte passou a ser tipo Príncipe Danilo. Passava a máquina só na parte de baixo, deixando o cabelo solto na parte de cima. 

Ainda não havia máquina elétrica e as máquinas do Zé e do Geraldo eram manuais, daquelas que faziam nhec nhec nhec. Eu ficava ali quietinho enrolado naquele pano branco, só observando as coisas, enquanto cortava o meu cabelo.

Em cima da prateleira, bem debaixo do espelho, ficava uma bacia de ágata com água morna, a Água Velva, o perfume, o álcool que, de tempos em tempos, os dois passavam no pente e na tesoura. Tinha ainda o pincel, o creme de barbear, a navalha e um pequeno espelho que era usado toda vez que acabam de fazer um corte. 

Bem ao lado do espelho, havia um pequeno cartaz com o Amigo da Onça dizendo que fiado só amanhã. Havia também uma tabela indicando os preços: barba, cabelo, bigode e completo. 

Zé e Geraldo abriam a barbearia bem cedo, pouco depois das sete horas da manhã, e só fechavam quando o sol se punha e a noite caía. Todos os moradores do bairro cortavam o cabelo ali e os dois já sabiam de cor o gosto de cada freguês. 

– O de sempre? 

– O de sempre! 

Ali, conversava-se sobre tudo. Politica, morte, carestia, o progresso que estava chegando ao Sion, mas o assunto que dominava era o futebol. A conversa girava em torno do Atlético, do Cruzeiro e do América. Raramente alguém falava do Democrata e do Siderúrgica. Quando o assunto era futebol carioca, todos eram Flamengo. 

Em cima de uma mesinha, ficavam as revistas Manchete e O Cruzeiro, estropiadas de tanto manuseio. 

A Manchete trazia reportagens de Brasília com umas fotos lindas da nova capital sendo construída. Tinha crônicas de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongueti. Todo mês de fevereiro, o Clovis Bornai aparecia fantasiado na capa e quando chegava o concurso de misses, lá estavam elas enfileiradas, usando maiôs Catalina. 

A O Cruzeiro trazia reportagens de David Nasser e Jean Manson, crônicas de Rachel de Queiroz, o Pif Paf do Millôr e, na última página, o Amigo da Onça. 

Foi nessa barbearia que passei minha juventude inteira cortando o cabelo. Quando fui aprovado no vestibular da Faculdade de Filosofia, foi lá que o Geraldo acabou de raspar minha cabeça, depois que os veteranos meteram a tesoura e tinta no meu cabelo, durante o trote. 

Só deixei de frequentar a barbearia quando fui embora do País. Acho que o Zé e o Geraldo nunca souberam que passei seis anos sem cortar o cabelo, promessa que fiz de só tosar aquela juba no dia em que a ditadura militar acabasse no Brasil. 

Um dia voltei para o Brasil e quando subi a Grão Mogol, tive uma certa dificuldade em localizar a minha adorável barbearia, naquele bairro tão mudado. Mas acabei achando. A porta de ferro estava baixada e havia apenas uma pequena placa de Aluga-se.

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