Cultura

Meu caro obsceno

Misto de Campos Machado e Reginaldo Rossi, Wando fez sucesso rimando qualquer palavra terminada em “ão” com coração. A fórmula era certeira

O cantor Wando, que rimava “louca” com “boca”, “não” com “chão”. Foto: Divulgação
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Mal a primeira lágrima havia rolado e já tinha apresentador na televisão perguntando ao convidado (do Parangolé) numa mesa-redonda-futebol-debate montada às pressas: “Qual a importância do Wando para a música popular brasileira?”.

Pouco depois, um dos apresentadores, olhos marejados, lembrava da matéria, feita por ele em 2007: a reportagem tinha link ao vivo (na época, claro) numa feira livre com Wando, óculos escuros e…caixas de morangos. Antes das 10h, não se falava em outra coisa na internet. Brazil trends número 1: #RipWando. Número 2: Fogo e Paixão.

Na semana passada, quando chegou a notícia de que o estado de saúde do cantor era delicado, já tinha foto-montagem para correntes de oração na internet: a famosa capa de disco (LP mesmo) do sujeito vestido de branco, rosto à la ursinho Teddy, segurando uma maçã. Ao lado, uma vela de sete dias, uma imagem de São Jorge e uma calcinha, vermelhíssima, pendurada. A foto veio compartilhada com a mensagem: “Tamos contigo, seu Obsceno”.

Na quarta-feira 8, homenagens não faltaram ao cantor antes e depois de sua derradeira viagem, aos 66 anos. Estava internado num hospital em Nova Lima, em Minas Gerais.

Um extraterrestre de férias no Brasil que ligasse a televisão do hotel e se deparasse com uma imagem de arquivo do Wando cantando “meu iaiá, meu ioiô” naquele Sabadão do Gugu era capaz de se perguntar, ao ver a profusão de suspiros imediatos: “Como?”

Alguém nascido depois da Copa de 90 e aprendeu que brega mesmo era rock de Brasília feito dez anos antes entraria em parafuso.

Não por menos. Fisicamente, Wando era um misto de Campos Machado (o deputado estadual biônico do PTB de São Paulo) e Reginaldo Rossi (o amigo do garçom de orelhas biônicas à mesa do bar). Era o protótipo do que o brasileiro foi um dia e agora tem vergonha de lembrar: o machão de camisa desabotoada, as muitas correntes à mostra, a barriga de cerveja ao fim do expediente. E que, para fazer sucesso, rimava “louca” com “boca”, “osso com pescoço, “não” com “chão” (e de reprente qualquer outra palavra em “ão” cabia na rima com “coração”).

Ainda assim, foi durante anos (e tudo indica que continuará sendo) a salvação de festas de todo tipo, aí incluindo as de casamento. Quando aquele drum’n bossa em inglês não era capaz de colocar nem a noiva pra dançar, vinha o DJ com aquele “você é luz”. Era fatal: até a prima fresca ia para a pista com os sapatinhos na mão, o chinelo descartável nos pés, os óculos lilás balançando junto com as anteninhas de vinil à la Chapolin. Na sequência vinha YMCA, mas aí é outra história.

E o extraterrestre, assim como o torcedor que viu Raí mas não viu Sócrates, seguiria se perguntando: por quê?

Porque o artista, caro extraterrestre, é antes de tudo um personagem. E Wando fez multidão vestindo um personagem, não muitos (contraditórios, que cantam a paz e destroem camarins), mas um.

Não houve nem haverá coletânea de sucessos românticos que não tenha “Moça”, aquela música em que, já às portas do século 21, alguém jurava: “Moça eu sei que já não é pura, teu passado é tão forte pode até machucar”.

E as moças, as puras e impuras, dobravam as mangas do tempo e jogavam os sentimentos no chão (algumas, as calcinhas para o palco). Em tempos de “ai se eu te pego”, o refrão seria algo maldito, proibido para menores. Mas Wando era parte de um folclore que deixava a lenda e subia aos palcos.

E o extraterrestre, parnasiano convicto, arrancaria os cabelos, se os tivesse, de vergonha alheia. Porque nada pode ser mais direto do que dizer: “Tem mulheres que só mostram os joelhos e logo o corpo dá sinal”. Ou: “Eu tô atolado de amor até o pescoço, sentindo no osso essa sensação. Tô fraco, dopado, demente, tô burro, tô bobo”.

(Mais direto, só desenhando, mas aí sim seria proibido para menores).

Para o artista, vergonha alheia é quase um alter ego. Alguns rejeitam o sucesso, dizem ter evoluído com o tempo, somem com o popular do repertório. Outros se abraçam nele até o fim. Wando o abraçou. Sabia, do início ao fim, que nada seria mais brega do que “falar ao coração”. E a fórmula era, e é, infalível (até o tio resmungão, que se negou a dançar na pista no casamento da sobrinha, balançou os pezinhos, vexado, com “Fogo e Paixão”).

Até que um dia, o coração, justo ele, deixou de bater. E o extraterrestre, já PhD em música popular (e agora sem ver sentido na pergunta do apresentador da tevê), já ligou para casa para avisar: “me espere amanhã, levo o meu coração pronto pra te entregar”.

Em vez de lembranças de algum cenário paradisíaco, o visitante levará na bagagem, além do coração, um Campari, os morangos, a vitrola e um LP – daquele que cantou tudo o que ele queria saber e jamais teve coragem de perguntar (nem de cantar).

Mal a primeira lágrima havia rolado e já tinha apresentador na televisão perguntando ao convidado (do Parangolé) numa mesa-redonda-futebol-debate montada às pressas: “Qual a importância do Wando para a música popular brasileira?”.

Pouco depois, um dos apresentadores, olhos marejados, lembrava da matéria, feita por ele em 2007: a reportagem tinha link ao vivo (na época, claro) numa feira livre com Wando, óculos escuros e…caixas de morangos. Antes das 10h, não se falava em outra coisa na internet. Brazil trends número 1: #RipWando. Número 2: Fogo e Paixão.

Na semana passada, quando chegou a notícia de que o estado de saúde do cantor era delicado, já tinha foto-montagem para correntes de oração na internet: a famosa capa de disco (LP mesmo) do sujeito vestido de branco, rosto à la ursinho Teddy, segurando uma maçã. Ao lado, uma vela de sete dias, uma imagem de São Jorge e uma calcinha, vermelhíssima, pendurada. A foto veio compartilhada com a mensagem: “Tamos contigo, seu Obsceno”.

Na quarta-feira 8, homenagens não faltaram ao cantor antes e depois de sua derradeira viagem, aos 66 anos. Estava internado num hospital em Nova Lima, em Minas Gerais.

Um extraterrestre de férias no Brasil que ligasse a televisão do hotel e se deparasse com uma imagem de arquivo do Wando cantando “meu iaiá, meu ioiô” naquele Sabadão do Gugu era capaz de se perguntar, ao ver a profusão de suspiros imediatos: “Como?”

Alguém nascido depois da Copa de 90 e aprendeu que brega mesmo era rock de Brasília feito dez anos antes entraria em parafuso.

Não por menos. Fisicamente, Wando era um misto de Campos Machado (o deputado estadual biônico do PTB de São Paulo) e Reginaldo Rossi (o amigo do garçom de orelhas biônicas à mesa do bar). Era o protótipo do que o brasileiro foi um dia e agora tem vergonha de lembrar: o machão de camisa desabotoada, as muitas correntes à mostra, a barriga de cerveja ao fim do expediente. E que, para fazer sucesso, rimava “louca” com “boca”, “osso com pescoço, “não” com “chão” (e de reprente qualquer outra palavra em “ão” cabia na rima com “coração”).

Ainda assim, foi durante anos (e tudo indica que continuará sendo) a salvação de festas de todo tipo, aí incluindo as de casamento. Quando aquele drum’n bossa em inglês não era capaz de colocar nem a noiva pra dançar, vinha o DJ com aquele “você é luz”. Era fatal: até a prima fresca ia para a pista com os sapatinhos na mão, o chinelo descartável nos pés, os óculos lilás balançando junto com as anteninhas de vinil à la Chapolin. Na sequência vinha YMCA, mas aí é outra história.

E o extraterrestre, assim como o torcedor que viu Raí mas não viu Sócrates, seguiria se perguntando: por quê?

Porque o artista, caro extraterrestre, é antes de tudo um personagem. E Wando fez multidão vestindo um personagem, não muitos (contraditórios, que cantam a paz e destroem camarins), mas um.

Não houve nem haverá coletânea de sucessos românticos que não tenha “Moça”, aquela música em que, já às portas do século 21, alguém jurava: “Moça eu sei que já não é pura, teu passado é tão forte pode até machucar”.

E as moças, as puras e impuras, dobravam as mangas do tempo e jogavam os sentimentos no chão (algumas, as calcinhas para o palco). Em tempos de “ai se eu te pego”, o refrão seria algo maldito, proibido para menores. Mas Wando era parte de um folclore que deixava a lenda e subia aos palcos.

E o extraterrestre, parnasiano convicto, arrancaria os cabelos, se os tivesse, de vergonha alheia. Porque nada pode ser mais direto do que dizer: “Tem mulheres que só mostram os joelhos e logo o corpo dá sinal”. Ou: “Eu tô atolado de amor até o pescoço, sentindo no osso essa sensação. Tô fraco, dopado, demente, tô burro, tô bobo”.

(Mais direto, só desenhando, mas aí sim seria proibido para menores).

Para o artista, vergonha alheia é quase um alter ego. Alguns rejeitam o sucesso, dizem ter evoluído com o tempo, somem com o popular do repertório. Outros se abraçam nele até o fim. Wando o abraçou. Sabia, do início ao fim, que nada seria mais brega do que “falar ao coração”. E a fórmula era, e é, infalível (até o tio resmungão, que se negou a dançar na pista no casamento da sobrinha, balançou os pezinhos, vexado, com “Fogo e Paixão”).

Até que um dia, o coração, justo ele, deixou de bater. E o extraterrestre, já PhD em música popular (e agora sem ver sentido na pergunta do apresentador da tevê), já ligou para casa para avisar: “me espere amanhã, levo o meu coração pronto pra te entregar”.

Em vez de lembranças de algum cenário paradisíaco, o visitante levará na bagagem, além do coração, um Campari, os morangos, a vitrola e um LP – daquele que cantou tudo o que ele queria saber e jamais teve coragem de perguntar (nem de cantar).

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