Cultura

Mera coincidência

Tenho a impressão de que banalizamos tudo, que nada mais consegue provocar nossa indignação. Por Menalton Braff

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O hábito diário de ler jornais começava a me entorpecer o espírito crítico, tal a recorrência com que se encontram neles certas notícias. A leitura dos clássicos, então, não é apenas um périplo em busca do prazer, mas um antídoto para o torpor. E foi assim que cheguei ao Padre Antônio Vieira.

Sei que nem todos têm a obrigação de conhecer esse padre, ele é muito antigo. Tenho alguns amigos que o conhecem, como é o caso do José Pedro Antunes, professor do Departamento de Letras da UNESP de Araraquara, e do Deonísio da Silva, hoje vice-reitor da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Mas eles, é claro, têm a obrigação de conhecer. Para quem não conhece, deve-se alertar que esse padre, o Vieira, nasceu em Lisboa, em 1608, e foi criado em Salvador-BA. Depois de ter incomodado poderosos por cá e por lá, onde havia nascido, veio morrer no ano de 1697 na que ele considerava sua segunda pátria.

Vieira passou a vida arranjando problemas para si, ao denunciar do púlpito os vícios humanos. E eu posso estar enganado, aliás, acho que estou, mas o Padre Antônio Vieira, em um de seus sermões, ou é mera coincidência ou visava o Brasil do século XXI. Duvidam? Então vamos ler alguns trechos desse sermão.

Alexandre repreende um pirata que assim lhe responde: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? E o padre Vieira comenta: “…o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.”

E continua:

“O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; (…) Não só são ladrões, (…) os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades (…). Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros se furtam são enforcados; estes furtam e enforcam.”

Já dá para desconfiar de quem ele estava falando? Não?! Então vamos continuar.

“Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas (autoridades) e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos! Ditosa Grécia que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter roubado um carneiro; e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?”

Tenho a impressão de que banalizamos tudo, que nada mais consegue provocar nossa indignação. Esse caso de um secretário da educação que recebia porcentagem de tudo que sua secretaria comprava, se não virar pizza como quase tudo por cá, deve levar à cadeia algum “laranja”, um coitado qualquer que não conseguiu tornar-se um imperador. Vocês vão ver só: é um caso escandaloso? Claro que é. Mas os implicados são alexandres, e nós, pantagruelicamente, vamos engolir sem reclamar essa sujeira toda. Se nada acontecer, quem ou o quê, nesta nação, continuará merecendo algum crédito do povo?

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