Cultura

Humor sem fim

Chico Anysio prepara especial de fim de ano, advoga o risco para o pobre e lança contos amargos contra uma elite de “doutores”

Chico Anysio prepara especial de fim de ano, advoga o riso para o pobre e lança contos amargos contra uma elite de "doutores". Por Rosane Pavam. Foto: Dario de Dominicis
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Após 112 dias internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, o humorista Chico Anysio morreu às 14h52 desta sexta-feira 23. Ele tinha 80 anos e deixa oito filhos de outros casamentos e a atual esposa Malga di Paula.

O estado de saúde de Anysio piorou de forma rápida durante a semana e na segunda-feira 19 ele passou a respirar com a ajuda de aparelhos em período integral. O humorista também teve complicações renais e precisou fazer uma sessão de hemodiálise.

O humorista foi internado em novembro último com uma infecção urinária. Recebeu alta no Natal, mas voltou ao hospital no dia seguinte devido a uma hemorragia digestiva.

Veja abaixo um perfil do humorista feito por Rosane Pavam, editora de Cultura de CartaCapital, que conversou com Anysio no final de 2010.

*Matéria incialmente publicada em 03 de novembro de 2010.

O rei da comédia Chico Anysio raramente reage a uma piada. Desde a infância, na qual via os jogadores celebrarem o bicho em lugar da vitória no futebol, jamais comemora um gol. Malgrado o azedume ocasional, pessoal, contra os infortúnios do Brasil e seus empregadores, Chico, aos 79 anos, tem nas mãos o cânone do humor brasileiro. Há seis décadas ele escreve livros, narra, dubla, comenta esportes, faz roteiros, compõe canções. Também pinta paisagens, raramente seres humanos, fato curioso para quem construiu 209 tipos cômicos cuja fisionomia está presente na lembrança de todos, mesmo dos jovens.

Por tantos motivos, ir até ele naquela sexta-feira 22, quando um acidente torna o tráfego complicado até a Barra da Tijuca, onde mora não na cobertura, mas em um amplo sétimo andar, pode inquietar. Quem procura por Chico Anysio imagina conhecê-lo, mas o humorista não necessariamente divide com o jornalista uma saca de sal. Sua fama de mau, ou será de crítico (e, no Brasil, as características erroneamente se misturam), é um entrave. Neste caso, contudo, o entrevistador tem um trunfo. Encontrará o humorista naquele Rio de Janeiro ainda feliz, no qual as cariocas caminham em idade vestidas de roupão cor-de-rosa, rumo à praia, quando não há sol. A aceitação está no ar.

Chego cinco minutos antes das dez horas matinais marcadas para a conversa, mas Chico ainda não acordou. É uma tensão inesperada, já que ele mesmo pedira para falar nesse horário. À tarde, gravaria mais um episódio do especial Chico e Seus Amigos, a ser levado ao ar pela TV Globo no dia 28 de dezembro, trazendo sua representação para 20 personagens, “os mais famosos ou os mais gostados” entre os que criou. Depois de meia hora de espera, adentro o apartamento onde o artista mora há pouco mais de um ano.

Ele não aparece de cara para conversar. A empregada, Marta, reitera que o patrão acordou tarde. Dá tempo para verificar que, sobre as paredes brancas da sala ampla, há as telas de cores fortes assinadas pelo artista e, no chão, belos móveis de madeira aparentemente feitos sob encomenda. É enorme sua tela de tevê. Alguns minutos mais e o comediante chega. Usa roupa esportiva de malha e os cabelos parecem tingidos.

O artista anda com dificuldade e está atônito. Aparentemente a esposa passara mal e ele a acudira até as 5 horas daquela manhã. Chico senta no sofá, respira ofegante, quer assoar o nariz, olha fixo para a jornalista, sem exatamente responder a ela. Chama por Marta, que não lhe ouve, clama por ela uma vez mais, voltando-se para trás. Decido buscá-la na cozinha. A empregada corre até o patrão.

Chico só desejava um lenço de papel e um pequeno depósito para o lixo, aparatos que, aliviada, Marta lhe traz. Ele os coloca sobre o sofá e assoa o nariz. Repetirá o ato muitas outras vezes. Sofre de enfisema e a dificuldade respiratória tira-lhe 60% da capacidade do pulmão. Porque não pode andar tranquilo por mais de 50 metros, Chico se locomove em cadeira de rodas nos aeroportos, frequentados assiduamente rumo a shows pelo País, e nos assoalhos da Globo, onde se dirige duas ou três vezes por semana para gravar o programa Zorra Total. O artista, que há pouco permaneceu dois meses hospitalizado por conta de um gânglio benigno no intestino e de uma pneumonia adquirida no ambiente hospitalar, atribui o prejuízo à sua saúde ao uso do cigarro. Fumar é a única coisa de que se declara arrependido.

Será possível mudar a entrevista para outro horário, sugiro, mas ele não quer. Diz a palavra “não” como, em outras ocasiões, repetirá “é!” em substituição a frases inteiras. Todo o raciocínio lhe ocorre, mas ele se expressa com lentidão. Um olhar ou uma risada evocam a agilidade antiga, e a entrevista se faz nos interstícios. Neles, procuro por Chico Anysio e facilmente o encontro.

O primeiro objetivo da conversa é o ótimo livro de contos que escreveu e lança agora, Fazedores de Histórias, pela editora Prumo. Não é o primeiro de Chico, nem, espera-se, seja o último, já que, dentro do que ele considera uma série, este será o primeiro de três ou quatro volumes. Ele escreve à noite, e bem, desde os tempos em que suas obras dos anos 70, como O Batizado da Vaca, vendiam 400 mil exemplares de uma tacada. Hoje as tiragens nem atingem 1% disso.

“Não, doutor. Eu não me meto a aparentar o que não sou. Muitas vezes tive chance, tive a oportunidade de comer ali na sala, dijunto do meu patrão e excelentíssima família”, diz seu protagonista no conto Alambique, ele que ao fim mija na propriedade líquida do patrão. Seus contos trazem a mesma voz reescrita. É a voz do oprimido, que pode ser a do operário tanto quanto a da prostituta que, por vingança, gosta do que faz, e faz de graça. Os protagonistas se revoltam contra a elite e são tristes. “É um livro no qual você não vai dar gargalhadas.”


Chico aponta a melhor qualidade em seu compasso. “São contos ritmados, você percebeu? Dá mais trabalho. Levei dois meses. Não reescrevi nem reli. Fiz tudo no ‘foi, fica’.” Difícil acreditar nele, tamanha a unidade que a sucessão de textos alcança. São contos com um belo nocaute ao fim, mas Chico prefere a palavra “pênalti” em seu lugar. Escrever não é problema para ele. Tudo em sua mente auditiva caminha bem. No livro, escarnece do rico para elevar o pobre. “Eu defendo o que posso essa patota. Porque sou o advogado deles.

Advogado de defesa”, acredita. “Pior que ser pobre no Brasil é ser pobre e negro. Quando faço um rico, faço para ele ser ridículo, para ele perder. Às vezes, refaço meia página porque perdi a chance de dar um pitaco ali. Nem todo mundo entende.”

Seu humor, que qualifica como social, é feito desde o rádio. Mas o primeiro sonho foi o futebol. Ele, que torce para o Vasco, jogava pelo Fluminense na adolescência. Um dia, despiu os pés para uma partida na grama, mas, ao chegar ao campo, soube que teria de jogar calçado, porque a partida seria sobre terra batida. Correu para pegar a chuteira. Seus irmãos saíam para fazer testes de locução e ele decidiu ir junto. O mundo ganhou um humorista porque ele se esqueceu de levar o tênis, como diz.

No rádio, começou como galã de novelas. Depois que souberam de suas imitações, lançou-se aos shows de calouro. Ganhou todos e foi contratado para escrever. Suas três sugestões iniciais viraram três programas. O cearense Chico diz que o humor televisivo, no Brasil, foi no começo simples transcrição das transmissões radiofônicas. Com sua experiência de escrita, já grande, e a qualidade de voz, já inimitável, encarnou na tevê os tipos do rádio e se descobriu ator inteiro.

“Rádio e televisão são muito próximos”, ele considera. “É muito difícil escrever para o rádio. No teatro nós podemos ser os mesmos, é a plateia que muda.” Na tevê, ele diz, o humor é difícil “demais, demais, demais”. Não há o grande público, no máximo uma pessoa que chega com mais duas e não serve como audiência. “O humor pede uma plateia grande. Uma resposta para cada piada. Precisa ter uma gargalhada aqui, um sorriso ali. E o cinema é a arte do diretor. O diretor é quem sabe o que faz.”

O artista aplica uma frase de Bernard Shaw sobre o ato de escrever a fazer humor no Brasil. “Ou é fácil ou é impossível.” Chico mudou, nunca critica o humorismo atual. E não participa mais da tevê como escritor, só atua. Para não melindrar os autores, jamais reescreve os textos, apenas põe uns cacos sobre as linhas. O exército de autores televisivos surgiu, a seu ver, depois que o diretor Carlos Manga, na Excelsior, tirou do intérprete-escritor o poder de conceber as próprias falas. Quando acabou o programa semanal de Chico na tevê, somente um tipo de humor parece ter vingado no Brasil, aquele que comenta a celebridade, não a vida. Enquanto Chico Anysio observava a existência cotidiana e real desde os tempos da stand-up comedy.

Sim, foram ele e o amigo humorista Zé Vasconcellos os responsáveis por trazer a “comédia em pé” ao Brasil. Chico contava sua história de cara limpa, diante da câmera ou do teatro cheio. Não havia gancho para a piada, e uma palavra levava naturalmente a outra. Exemplo. Um dia seria lançado o primeiro foguete brasileiro. Na hora do lançamento, o astronauta era barrado pelo porteiro do foguete. Cadê o documento?

Chico não trabalhava sobre hipóteses, mas sobre a realidade. Era a vida do brasileiro comum o que ele via, entremeada de burocracia, e não a existência do célebre, expressa com a ajuda de recursos gráficos como os que há nos atuais Pânico na TV ou CQC. Foi o humor de verdade, contado no Fantástico, que trouxe um personagem como Azambuja à vida. Era o meliante carioca das ruas, para o qual, pela primeira vez, Chico decidira promover uma consultoria de imagem. “Peguei seis fotos minhas grandes e as dei a seis cartunistas amigos para que fizessem, a partir delas, a cara do Azambuja. Depois eu mostrei para a Globo inteira: qual desses aqui é ele? Noventa por cento apontaram para o mesmo desenho. O Azambuja ficou daquele modo porque foi o mais votado.”

Às vezes, o personagem tarda a pegar, como o Tavares. “Demorei oito programas. No início eu o fiz fiscal de obras, depois vendedor de enciclopédias. Até que o fiz bêbado casado com mulher feia e rica, e aí deu certo.” Alberto Roberto nasceu de uma sátira ao galã Hélio Souto. Ele nega que tenha sido construí­do para demolir a farsa televisiva. Para Chico, era apenas uma brincadeira pra cima de um ator bonitão. Como, no caso de Lidu, uma sátira ao coronel.

O que mais o satisfaz, ele diz, é servir de escada e fazer o outro brilhar. O sucesso do professor Raimundo, o maior de sua carreira, talvez se explique por esse prazer. “Fui escada de gente importante à beça. Mussum, Costinha, Zacarias, Ari Leite. Eu me preparo para isso. No futebol eu jogava de meia-esquerda. Fiz quatro gols na vida, mas dei mais de 200 para os outros. A mim agradava mais dar o passe para o gol do que fazer um.”

Chico diz que ri para dentro. Em um prefácio raro, dos anos 70, para o livro Alegre História do Humor Brasileiro, de Jota Rui, ele ensinou: “O humor acusa, satiriza, descobre, desmoraliza, critica, eleva, deforma, informa, destrói, constrói, imortaliza, enterra, acaricia, açoita. E sendo ele o irmão mais próximo da poesia, faz com que os humoristas tenham o direito de uma carteira de poeta e dá aos poetas um diploma de humorista. Sendo assim, ele tem a dimensão da poesia, embora não lhe seja dada importância idêntica.”

O humorista ouve, surpreso, as palavras que um dia escreveu. “Eu quero esse texto, você dá para mim?” E diz gostar de duas definições para o humor. A primeira é de Leon Eliachar: “Humor é aquilo que faz cócegas no cérebro”. E outra, aparentemente dele próprio: “O engraçado de hoje é o que ontem foi triste”. Em acréscimo, diz que o humor faz tudo isso que ele menciona no prefácio, e que às vezes pode até ser engraçado. “Não se pode trabalhar a frase ou a cena visando à graça. Tem de visar à crítica, à sátira. O humor vai ser engraçado onde puder.”

Ao final da entrevista, ele me dá um abraço e começa a espirrar. “Sempre oito vezes”, ainda comenta. Chico Anysio autografa na página anterior àquela onde está a dedicatória a Malga, dona de sua vida, como diz, para o tanto de vida que lhe restar. É um autor que não perde tempo com enigmas. Nasceu comediante, assim morrerá.

Após 112 dias internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, o humorista Chico Anysio morreu às 14h52 desta sexta-feira 23. Ele tinha 80 anos e deixa oito filhos de outros casamentos e a atual esposa Malga di Paula.

O estado de saúde de Anysio piorou de forma rápida durante a semana e na segunda-feira 19 ele passou a respirar com a ajuda de aparelhos em período integral. O humorista também teve complicações renais e precisou fazer uma sessão de hemodiálise.

O humorista foi internado em novembro último com uma infecção urinária. Recebeu alta no Natal, mas voltou ao hospital no dia seguinte devido a uma hemorragia digestiva.

Veja abaixo um perfil do humorista feito por Rosane Pavam, editora de Cultura de CartaCapital, que conversou com Anysio no final de 2010.

*Matéria incialmente publicada em 03 de novembro de 2010.

O rei da comédia Chico Anysio raramente reage a uma piada. Desde a infância, na qual via os jogadores celebrarem o bicho em lugar da vitória no futebol, jamais comemora um gol. Malgrado o azedume ocasional, pessoal, contra os infortúnios do Brasil e seus empregadores, Chico, aos 79 anos, tem nas mãos o cânone do humor brasileiro. Há seis décadas ele escreve livros, narra, dubla, comenta esportes, faz roteiros, compõe canções. Também pinta paisagens, raramente seres humanos, fato curioso para quem construiu 209 tipos cômicos cuja fisionomia está presente na lembrança de todos, mesmo dos jovens.

Por tantos motivos, ir até ele naquela sexta-feira 22, quando um acidente torna o tráfego complicado até a Barra da Tijuca, onde mora não na cobertura, mas em um amplo sétimo andar, pode inquietar. Quem procura por Chico Anysio imagina conhecê-lo, mas o humorista não necessariamente divide com o jornalista uma saca de sal. Sua fama de mau, ou será de crítico (e, no Brasil, as características erroneamente se misturam), é um entrave. Neste caso, contudo, o entrevistador tem um trunfo. Encontrará o humorista naquele Rio de Janeiro ainda feliz, no qual as cariocas caminham em idade vestidas de roupão cor-de-rosa, rumo à praia, quando não há sol. A aceitação está no ar.

Chego cinco minutos antes das dez horas matinais marcadas para a conversa, mas Chico ainda não acordou. É uma tensão inesperada, já que ele mesmo pedira para falar nesse horário. À tarde, gravaria mais um episódio do especial Chico e Seus Amigos, a ser levado ao ar pela TV Globo no dia 28 de dezembro, trazendo sua representação para 20 personagens, “os mais famosos ou os mais gostados” entre os que criou. Depois de meia hora de espera, adentro o apartamento onde o artista mora há pouco mais de um ano.

Ele não aparece de cara para conversar. A empregada, Marta, reitera que o patrão acordou tarde. Dá tempo para verificar que, sobre as paredes brancas da sala ampla, há as telas de cores fortes assinadas pelo artista e, no chão, belos móveis de madeira aparentemente feitos sob encomenda. É enorme sua tela de tevê. Alguns minutos mais e o comediante chega. Usa roupa esportiva de malha e os cabelos parecem tingidos.

O artista anda com dificuldade e está atônito. Aparentemente a esposa passara mal e ele a acudira até as 5 horas daquela manhã. Chico senta no sofá, respira ofegante, quer assoar o nariz, olha fixo para a jornalista, sem exatamente responder a ela. Chama por Marta, que não lhe ouve, clama por ela uma vez mais, voltando-se para trás. Decido buscá-la na cozinha. A empregada corre até o patrão.

Chico só desejava um lenço de papel e um pequeno depósito para o lixo, aparatos que, aliviada, Marta lhe traz. Ele os coloca sobre o sofá e assoa o nariz. Repetirá o ato muitas outras vezes. Sofre de enfisema e a dificuldade respiratória tira-lhe 60% da capacidade do pulmão. Porque não pode andar tranquilo por mais de 50 metros, Chico se locomove em cadeira de rodas nos aeroportos, frequentados assiduamente rumo a shows pelo País, e nos assoalhos da Globo, onde se dirige duas ou três vezes por semana para gravar o programa Zorra Total. O artista, que há pouco permaneceu dois meses hospitalizado por conta de um gânglio benigno no intestino e de uma pneumonia adquirida no ambiente hospitalar, atribui o prejuízo à sua saúde ao uso do cigarro. Fumar é a única coisa de que se declara arrependido.

Será possível mudar a entrevista para outro horário, sugiro, mas ele não quer. Diz a palavra “não” como, em outras ocasiões, repetirá “é!” em substituição a frases inteiras. Todo o raciocínio lhe ocorre, mas ele se expressa com lentidão. Um olhar ou uma risada evocam a agilidade antiga, e a entrevista se faz nos interstícios. Neles, procuro por Chico Anysio e facilmente o encontro.

O primeiro objetivo da conversa é o ótimo livro de contos que escreveu e lança agora, Fazedores de Histórias, pela editora Prumo. Não é o primeiro de Chico, nem, espera-se, seja o último, já que, dentro do que ele considera uma série, este será o primeiro de três ou quatro volumes. Ele escreve à noite, e bem, desde os tempos em que suas obras dos anos 70, como O Batizado da Vaca, vendiam 400 mil exemplares de uma tacada. Hoje as tiragens nem atingem 1% disso.

“Não, doutor. Eu não me meto a aparentar o que não sou. Muitas vezes tive chance, tive a oportunidade de comer ali na sala, dijunto do meu patrão e excelentíssima família”, diz seu protagonista no conto Alambique, ele que ao fim mija na propriedade líquida do patrão. Seus contos trazem a mesma voz reescrita. É a voz do oprimido, que pode ser a do operário tanto quanto a da prostituta que, por vingança, gosta do que faz, e faz de graça. Os protagonistas se revoltam contra a elite e são tristes. “É um livro no qual você não vai dar gargalhadas.”


Chico aponta a melhor qualidade em seu compasso. “São contos ritmados, você percebeu? Dá mais trabalho. Levei dois meses. Não reescrevi nem reli. Fiz tudo no ‘foi, fica’.” Difícil acreditar nele, tamanha a unidade que a sucessão de textos alcança. São contos com um belo nocaute ao fim, mas Chico prefere a palavra “pênalti” em seu lugar. Escrever não é problema para ele. Tudo em sua mente auditiva caminha bem. No livro, escarnece do rico para elevar o pobre. “Eu defendo o que posso essa patota. Porque sou o advogado deles.

Advogado de defesa”, acredita. “Pior que ser pobre no Brasil é ser pobre e negro. Quando faço um rico, faço para ele ser ridículo, para ele perder. Às vezes, refaço meia página porque perdi a chance de dar um pitaco ali. Nem todo mundo entende.”

Seu humor, que qualifica como social, é feito desde o rádio. Mas o primeiro sonho foi o futebol. Ele, que torce para o Vasco, jogava pelo Fluminense na adolescência. Um dia, despiu os pés para uma partida na grama, mas, ao chegar ao campo, soube que teria de jogar calçado, porque a partida seria sobre terra batida. Correu para pegar a chuteira. Seus irmãos saíam para fazer testes de locução e ele decidiu ir junto. O mundo ganhou um humorista porque ele se esqueceu de levar o tênis, como diz.

No rádio, começou como galã de novelas. Depois que souberam de suas imitações, lançou-se aos shows de calouro. Ganhou todos e foi contratado para escrever. Suas três sugestões iniciais viraram três programas. O cearense Chico diz que o humor televisivo, no Brasil, foi no começo simples transcrição das transmissões radiofônicas. Com sua experiência de escrita, já grande, e a qualidade de voz, já inimitável, encarnou na tevê os tipos do rádio e se descobriu ator inteiro.

“Rádio e televisão são muito próximos”, ele considera. “É muito difícil escrever para o rádio. No teatro nós podemos ser os mesmos, é a plateia que muda.” Na tevê, ele diz, o humor é difícil “demais, demais, demais”. Não há o grande público, no máximo uma pessoa que chega com mais duas e não serve como audiência. “O humor pede uma plateia grande. Uma resposta para cada piada. Precisa ter uma gargalhada aqui, um sorriso ali. E o cinema é a arte do diretor. O diretor é quem sabe o que faz.”

O artista aplica uma frase de Bernard Shaw sobre o ato de escrever a fazer humor no Brasil. “Ou é fácil ou é impossível.” Chico mudou, nunca critica o humorismo atual. E não participa mais da tevê como escritor, só atua. Para não melindrar os autores, jamais reescreve os textos, apenas põe uns cacos sobre as linhas. O exército de autores televisivos surgiu, a seu ver, depois que o diretor Carlos Manga, na Excelsior, tirou do intérprete-escritor o poder de conceber as próprias falas. Quando acabou o programa semanal de Chico na tevê, somente um tipo de humor parece ter vingado no Brasil, aquele que comenta a celebridade, não a vida. Enquanto Chico Anysio observava a existência cotidiana e real desde os tempos da stand-up comedy.

Sim, foram ele e o amigo humorista Zé Vasconcellos os responsáveis por trazer a “comédia em pé” ao Brasil. Chico contava sua história de cara limpa, diante da câmera ou do teatro cheio. Não havia gancho para a piada, e uma palavra levava naturalmente a outra. Exemplo. Um dia seria lançado o primeiro foguete brasileiro. Na hora do lançamento, o astronauta era barrado pelo porteiro do foguete. Cadê o documento?

Chico não trabalhava sobre hipóteses, mas sobre a realidade. Era a vida do brasileiro comum o que ele via, entremeada de burocracia, e não a existência do célebre, expressa com a ajuda de recursos gráficos como os que há nos atuais Pânico na TV ou CQC. Foi o humor de verdade, contado no Fantástico, que trouxe um personagem como Azambuja à vida. Era o meliante carioca das ruas, para o qual, pela primeira vez, Chico decidira promover uma consultoria de imagem. “Peguei seis fotos minhas grandes e as dei a seis cartunistas amigos para que fizessem, a partir delas, a cara do Azambuja. Depois eu mostrei para a Globo inteira: qual desses aqui é ele? Noventa por cento apontaram para o mesmo desenho. O Azambuja ficou daquele modo porque foi o mais votado.”

Às vezes, o personagem tarda a pegar, como o Tavares. “Demorei oito programas. No início eu o fiz fiscal de obras, depois vendedor de enciclopédias. Até que o fiz bêbado casado com mulher feia e rica, e aí deu certo.” Alberto Roberto nasceu de uma sátira ao galã Hélio Souto. Ele nega que tenha sido construí­do para demolir a farsa televisiva. Para Chico, era apenas uma brincadeira pra cima de um ator bonitão. Como, no caso de Lidu, uma sátira ao coronel.

O que mais o satisfaz, ele diz, é servir de escada e fazer o outro brilhar. O sucesso do professor Raimundo, o maior de sua carreira, talvez se explique por esse prazer. “Fui escada de gente importante à beça. Mussum, Costinha, Zacarias, Ari Leite. Eu me preparo para isso. No futebol eu jogava de meia-esquerda. Fiz quatro gols na vida, mas dei mais de 200 para os outros. A mim agradava mais dar o passe para o gol do que fazer um.”

Chico diz que ri para dentro. Em um prefácio raro, dos anos 70, para o livro Alegre História do Humor Brasileiro, de Jota Rui, ele ensinou: “O humor acusa, satiriza, descobre, desmoraliza, critica, eleva, deforma, informa, destrói, constrói, imortaliza, enterra, acaricia, açoita. E sendo ele o irmão mais próximo da poesia, faz com que os humoristas tenham o direito de uma carteira de poeta e dá aos poetas um diploma de humorista. Sendo assim, ele tem a dimensão da poesia, embora não lhe seja dada importância idêntica.”

O humorista ouve, surpreso, as palavras que um dia escreveu. “Eu quero esse texto, você dá para mim?” E diz gostar de duas definições para o humor. A primeira é de Leon Eliachar: “Humor é aquilo que faz cócegas no cérebro”. E outra, aparentemente dele próprio: “O engraçado de hoje é o que ontem foi triste”. Em acréscimo, diz que o humor faz tudo isso que ele menciona no prefácio, e que às vezes pode até ser engraçado. “Não se pode trabalhar a frase ou a cena visando à graça. Tem de visar à crítica, à sátira. O humor vai ser engraçado onde puder.”

Ao final da entrevista, ele me dá um abraço e começa a espirrar. “Sempre oito vezes”, ainda comenta. Chico Anysio autografa na página anterior àquela onde está a dedicatória a Malga, dona de sua vida, como diz, para o tanto de vida que lhe restar. É um autor que não perde tempo com enigmas. Nasceu comediante, assim morrerá.

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