Cultura

Heróis de energéticos

As divagações do geógrafo, explorador, aventureiro, escritor, tradutor, soldado, espadachim, linguista, poeta, etnologista, diplomata e espião Robert Burton

Blog de Richard Burton, um esporte radical para um escritor aventureiro
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Um paraquedista sobe até a estratosfera, mais precisamente a 39 mil metros da Terra, e de lá salta de uma cápsula. Na queda, supera a velocidade do som. Na chamada Mega Rampa, skatistas partem de uma altura de 30 metros e atingem a marca de 80 km/h. Wing Walk é um esporte com mais de 200 praticantes no mundo. A prática consiste em caminhar, e às vezes até plantar bananeira, na asa de um avião em movimento. Helicópteros levam surfistas até o meio do oceano com a finalidade de encontrar e surfar ondas de até 30 metros de altura.

E tudo nos chega aos olhos através de câmeras de alta definição fixadas em pranchas, para-lamas e capacetes. Acompanhamos essas aventuras no YouTube, experimentando a visão do praticante, na segurança da cadeira giratória do escritório, se o chefe não nos flagrar vendo, é claro.

Essa turma que gosta de flertar com o desastre usa, para registrar momentos radicais, uma camerazinha chamada Go Pro. Na verdade, seu nome inteiro é Go Pro Hero. O slogan do aparato fotográfico é bem emblemático desta nova era: “Be a hero”, seja um herói. É isso: os heróis de hoje não são desbravadores de culturas ou de lugares inóspitos ou ditos incivilizados. São aventureiros que vão na fronteira do limite humano, movidos a adrenalina e milhões de views.

Durante o século XIX, coloquei muitas vezes minha vida em risco. Fui à cidade sagrada de Meca, proibida a não muçulmanos, disfarçado de afegão. Também fui o primeiro homem branco a sair com vida da cidade de Harar, antiga capital da Somália. Explorei o coração da África em busca da nascente do Nilo. Traduzi para o inglês, arriscando ser preso, vários manuais eróticos orientais, entre eles o Kama Sutra (uma espécie de 50 Tons de Cinza para adultos). Enfim, perto de minha vida real, a vida ficcional de Indiana Jones é bastante pacata.

Hoje seria praticamente impossível surgir um novo Richard Burton. Não por falta de destemidos, mas pela ausência de contexto. Não há mais lugares desconhecidos no planeta. Estão todos lá disponíveis para ser visitados e escrutinados no Google Earth. Claro que muitas culturas seguem ainda pouco conhecidas. Mas elas não fascinam mais as multidões, no máximo atraem meia dúzia de espectadores de um canal a cabo. Atualmente, é possível visitar até países que estão sob regimes mais fechados. Há agências de turismo que vendem pacotes de viagem até para a Coreia do Norte.

Falo tudo isso sem saudade e intenção de me autopromover. Uma boa parte de minhas aventuras foi financiada pela Coroa inglesa. Os famosos aventureiros de agora são bancados por fabricantes de energéticos. Sinceramente, prefiro bem mais os patrocinadores atuais. Os antigos queriam impor a cultura imperial à força e trabalhavam pelo monopólio comercial. Talvez os de agora queiram o mesmo, mas pelo menos os cliques para ver seus vídeos são optativos.

 

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Um paraquedista sobe até a estratosfera, mais precisamente a 39 mil metros da Terra, e de lá salta de uma cápsula. Na queda, supera a velocidade do som. Na chamada Mega Rampa, skatistas partem de uma altura de 30 metros e atingem a marca de 80 km/h. Wing Walk é um esporte com mais de 200 praticantes no mundo. A prática consiste em caminhar, e às vezes até plantar bananeira, na asa de um avião em movimento. Helicópteros levam surfistas até o meio do oceano com a finalidade de encontrar e surfar ondas de até 30 metros de altura.

E tudo nos chega aos olhos através de câmeras de alta definição fixadas em pranchas, para-lamas e capacetes. Acompanhamos essas aventuras no YouTube, experimentando a visão do praticante, na segurança da cadeira giratória do escritório, se o chefe não nos flagrar vendo, é claro.

Essa turma que gosta de flertar com o desastre usa, para registrar momentos radicais, uma camerazinha chamada Go Pro. Na verdade, seu nome inteiro é Go Pro Hero. O slogan do aparato fotográfico é bem emblemático desta nova era: “Be a hero”, seja um herói. É isso: os heróis de hoje não são desbravadores de culturas ou de lugares inóspitos ou ditos incivilizados. São aventureiros que vão na fronteira do limite humano, movidos a adrenalina e milhões de views.

Durante o século XIX, coloquei muitas vezes minha vida em risco. Fui à cidade sagrada de Meca, proibida a não muçulmanos, disfarçado de afegão. Também fui o primeiro homem branco a sair com vida da cidade de Harar, antiga capital da Somália. Explorei o coração da África em busca da nascente do Nilo. Traduzi para o inglês, arriscando ser preso, vários manuais eróticos orientais, entre eles o Kama Sutra (uma espécie de 50 Tons de Cinza para adultos). Enfim, perto de minha vida real, a vida ficcional de Indiana Jones é bastante pacata.

Hoje seria praticamente impossível surgir um novo Richard Burton. Não por falta de destemidos, mas pela ausência de contexto. Não há mais lugares desconhecidos no planeta. Estão todos lá disponíveis para ser visitados e escrutinados no Google Earth. Claro que muitas culturas seguem ainda pouco conhecidas. Mas elas não fascinam mais as multidões, no máximo atraem meia dúzia de espectadores de um canal a cabo. Atualmente, é possível visitar até países que estão sob regimes mais fechados. Há agências de turismo que vendem pacotes de viagem até para a Coreia do Norte.

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