Cultura

Guardados do sótão

A história do crítico de música erudita que escreveu sobre o concerto que não aconteceu. Por Menalton Braff

A história do crítico de música erudita que escreveu sobre o concerto que não aconteceu. Foto: Galeria de Sam Howzit/Flickr
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Por Menalton Braff

 

Saí do teatro emocionado e pensando em escrever alguma coisa sobre a execução da nona do Beethoven. Sou assim: se me emociono as palavras começam a circular nas veias aquecidas. Cheguei a estudar piano até certa fase da adolescência, mas não me sinto competente para emitir juízos a respeito do desempenho de uma orquestra sinfônica. Era impossível resistir ao apelo das palavras que se amontoavam dentro da cabeça e pediam passagem. Por isso, quer dizer, pela opção que fiz pelo outro teclado, este aqui, não passo daqueles conceitos bem genéricos que qualquer amante da música erudita consegue emitir.

Carregado por esses pensamentos fui parar ao lado do Aldo Obino. Não, você não deve conhecer o Aldo Obino. Mesmo em sua terra ele, como pessoa, não deve ter muitas memórias onde se abrigue. Hoje ele é nome de centro cultural, é nome de sala de jornal, mas no meu tempo de jovem, em Porto Alegre, Aldo Obino era o crítico de música erudita mais badalado da cidade. Era nossa referência. E escrevia no Correio do Povo, naquela época o principal jornal do estado. Dizem que entendia muito e escrevia bem. E nós não perdíamos nada do que ele escrevesse.

Certa ocasião, venderam-se ingressos para o concerto de Yara Bernetti, pianista de São Paulo e uma das melhores executantes de J. S. Bach a que tenho assistido. Nunca assisti à execução de uma fuga como a dela. Nosso grupo de fanáticos pelo Bach, que não era pequeno, aguardou a noite de sábado com ansiedade. Os jornais deram a biografia da pianista, a opinião de críticos nacionais e estrangeiros sobre ela, enfim, seu concerto era o que se podia chamar de imperdível.

O Aldo Obino estava com viagem marcada para o interior do estado, cumprindo compromisso familiar, e não seria por causa de um concerto que ele deixaria de cumprir com seus compromissos. Mas não podia permitir, por outro lado, que o evento passasse sem sua crítica. Posições são mantidas assim, sem deixar espaços vazios. Conhecedor da Yara, como ele era, e, além disso, do programa, preparou o texto até com detalhes sobre a “memorável noitada de arte que tivemos” e “o brilho da execução”, deixou-o com um parente. O jornal já deixara o espaço medido e reservado.

Na sexta-feira à tarde, o crítico viajou, para voltar apenas no meio da semana seguinte. No domingo de manhã, entretanto, lá estava, no Correio do Povo, o texto do Obino. E foi uma gargalhada monumental: meia hora antes do concerto, com o saguão lotado de ternos e longos, havia sido anunciada a hospitalização da pianista ou estava desabando um temporal sobre a cidade ou a energia elétrica tinha sofrido uma pane, não me lembro mais. Alguma coisa, entretanto, que provocara o cancelamento do concerto.

E como a vida é um aprendizado que nunca termina, principalmente as falhas nos ensinam, sobretudo quando são dos outros, me pus a pensar: quantas vezes já não devo ter publicado opinião sobre concerto cancelado!

Por Menalton Braff

 

Saí do teatro emocionado e pensando em escrever alguma coisa sobre a execução da nona do Beethoven. Sou assim: se me emociono as palavras começam a circular nas veias aquecidas. Cheguei a estudar piano até certa fase da adolescência, mas não me sinto competente para emitir juízos a respeito do desempenho de uma orquestra sinfônica. Era impossível resistir ao apelo das palavras que se amontoavam dentro da cabeça e pediam passagem. Por isso, quer dizer, pela opção que fiz pelo outro teclado, este aqui, não passo daqueles conceitos bem genéricos que qualquer amante da música erudita consegue emitir.

Carregado por esses pensamentos fui parar ao lado do Aldo Obino. Não, você não deve conhecer o Aldo Obino. Mesmo em sua terra ele, como pessoa, não deve ter muitas memórias onde se abrigue. Hoje ele é nome de centro cultural, é nome de sala de jornal, mas no meu tempo de jovem, em Porto Alegre, Aldo Obino era o crítico de música erudita mais badalado da cidade. Era nossa referência. E escrevia no Correio do Povo, naquela época o principal jornal do estado. Dizem que entendia muito e escrevia bem. E nós não perdíamos nada do que ele escrevesse.

Certa ocasião, venderam-se ingressos para o concerto de Yara Bernetti, pianista de São Paulo e uma das melhores executantes de J. S. Bach a que tenho assistido. Nunca assisti à execução de uma fuga como a dela. Nosso grupo de fanáticos pelo Bach, que não era pequeno, aguardou a noite de sábado com ansiedade. Os jornais deram a biografia da pianista, a opinião de críticos nacionais e estrangeiros sobre ela, enfim, seu concerto era o que se podia chamar de imperdível.

O Aldo Obino estava com viagem marcada para o interior do estado, cumprindo compromisso familiar, e não seria por causa de um concerto que ele deixaria de cumprir com seus compromissos. Mas não podia permitir, por outro lado, que o evento passasse sem sua crítica. Posições são mantidas assim, sem deixar espaços vazios. Conhecedor da Yara, como ele era, e, além disso, do programa, preparou o texto até com detalhes sobre a “memorável noitada de arte que tivemos” e “o brilho da execução”, deixou-o com um parente. O jornal já deixara o espaço medido e reservado.

Na sexta-feira à tarde, o crítico viajou, para voltar apenas no meio da semana seguinte. No domingo de manhã, entretanto, lá estava, no Correio do Povo, o texto do Obino. E foi uma gargalhada monumental: meia hora antes do concerto, com o saguão lotado de ternos e longos, havia sido anunciada a hospitalização da pianista ou estava desabando um temporal sobre a cidade ou a energia elétrica tinha sofrido uma pane, não me lembro mais. Alguma coisa, entretanto, que provocara o cancelamento do concerto.

E como a vida é um aprendizado que nunca termina, principalmente as falhas nos ensinam, sobretudo quando são dos outros, me pus a pensar: quantas vezes já não devo ter publicado opinião sobre concerto cancelado!

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