Cultura

Ficar feliz era mais simples

Quando era servida no meio da semana, a torta de liquidificador da minha infância me enchia de alegria

Durante a semana, as refeições em minha casa tinham a alegria de um urso polar perdido no Sertão da Paraíba
Apoie Siga-nos no

Ontem para o jantar decidi fazer uma torta de liquidificador.

As receitas são muitas, mas nenhuma chega a apresentar significativas variações. Uma torta líquida é praticamente uma panqueca gigante que vai ao forno. E entre a primeira e a segunda, a diferença básica está na quantidade de óleo: na torta é bem maior e,  o fermento, que a panqueca dispensa.

Leite, ovos, óleo, fermento, farinha, sal.

Algumas massas podem levar queijo ralado. Eu gosto do sabor que o orégano misturado a ela pode dar. Parcimônia é sempre uma boa palavra a ser lembrada na hora de “ter ideias”. Em uma das muitas receitas, por exemplo, alguém adicionava cebola à massa. Não soou bem. A minha tentou ser a mais singela. Além do pouco orégano e também pouco parmesão, nada.

Nunca contabilizo com precisão a farinha. Bato os líquidos e vou adicionando até chegar ao ponto. Unto a forma, espalho a primeira camada e o recheio vai sobre. Aqui sim cabe uma cebola picada. Não foi o meu caso. Queijo de minas branco. O amarelo ou a muçarela vão derreter rapidamente e ficarão a soltar gordura. Tomates frescos em cubinhos e presunto de verdade. O de verdade é aquele tirado da coxa do suíno. O outro, o prensado, chega  a ser uma alternativa para quem for cruzar o deserto, tal a quantidade de água que ele reúne.

Tudo espalhadinho, cobri com o restante da massa e levei ao forno, 175 graus, durante 45 minutos e ela cresceu, ficou lindona e cheirosa. Não falei, mas coloquei na massa um tiquinho de bicarbonato. Ajuda a massa a ficar mais leve.

E fomos a ela, eu e minha filha.

O assunto foi parar na minha infância, para variar. Minha filha tem sido a fiel depositária de muitas de minhas histórias e ouviu mais essa que não chega a ser uma história. Lembrei e disse que minha mãe costumava fazer uma torta de liquidificador que eu achava uma verdadeira delícia. Sabemos todos que os sabores da infância raramente são superados. É evidente que podem vir a ser caso a mãe fosse um desastre absoluto na cozinha.

Não era o caso da minha e de muitas de minha geração e de gerações anteriores. É bem conhecido o momento em que as mães deixam de ir para a cozinha e vão ao mercado de trabalho para ajudar no orçamento e muitas vezes para não terem de recorrer aos antidepressivos. A partir desse momento a memória afetivo-gastronômica deixa de existir. Pois eu adorava essa torta e tenho ainda, 45 anos depois, a imagem dela chegando à mesa.

Minha mãe gostava de colocar os tomates em rodelas sobre ela. Ficavam bonitos, tostados. O recheio não era muito diferente do que eu fiz. Mas o que fazia toda a diferença era o significado da torta. Torta no meio da semana tinha um sabor de festa.

Já falei sobre a tensão que uma sopa de mandioquinha provoca em mim. Nunca mais consegui apreciar nada que envolva esse tubérculo. Minha mãe jurava que não, mas eu jurava que ela estava presente em quatro dos cinco jantares da semana.

E se não fosse a “maldita”, era alguma outra sopa e eu, assim como centenas de milhões de crianças do planeta, não gostava de sopa. Sopa é uma comida séria. Sopa se come em silêncio, fazendo barulho na medida do aceitável, ou somos repreendidos, com olhares ou mesmo bronca. Ela é quente. Ela exige atenção para servir. Atenção para transportar e se cai faz uma sujeira danada. E se cai em você pode te queimar. Sopa é o fim do caminho. Quando em sua vida você assume que, à noite é “só uma sopinha”, eu diria que seu tempo neste planeta está se esgotando. Ainda que não seja verdade, acredite que é. Você perdeu a razão de viver e de ser.

Por isso, a torta líquida me deixava tão feliz. Tinha cara de festa. Durante os dias da semana as refeições em minha casa tinham a alegria de um urso polar perdido no Sertão da Paraíba. Mas tínhamos a torta de liquidificador ocasionalmente. Se proposital ou não, o fato de não fazer parte do cardápio semanal me enchia de alegria toda vez que aparecia.

Comer com alegria. Eu volto a falar sobre isso.

Ontem para o jantar decidi fazer uma torta de liquidificador.

As receitas são muitas, mas nenhuma chega a apresentar significativas variações. Uma torta líquida é praticamente uma panqueca gigante que vai ao forno. E entre a primeira e a segunda, a diferença básica está na quantidade de óleo: na torta é bem maior e,  o fermento, que a panqueca dispensa.

Leite, ovos, óleo, fermento, farinha, sal.

Algumas massas podem levar queijo ralado. Eu gosto do sabor que o orégano misturado a ela pode dar. Parcimônia é sempre uma boa palavra a ser lembrada na hora de “ter ideias”. Em uma das muitas receitas, por exemplo, alguém adicionava cebola à massa. Não soou bem. A minha tentou ser a mais singela. Além do pouco orégano e também pouco parmesão, nada.

Nunca contabilizo com precisão a farinha. Bato os líquidos e vou adicionando até chegar ao ponto. Unto a forma, espalho a primeira camada e o recheio vai sobre. Aqui sim cabe uma cebola picada. Não foi o meu caso. Queijo de minas branco. O amarelo ou a muçarela vão derreter rapidamente e ficarão a soltar gordura. Tomates frescos em cubinhos e presunto de verdade. O de verdade é aquele tirado da coxa do suíno. O outro, o prensado, chega  a ser uma alternativa para quem for cruzar o deserto, tal a quantidade de água que ele reúne.

Tudo espalhadinho, cobri com o restante da massa e levei ao forno, 175 graus, durante 45 minutos e ela cresceu, ficou lindona e cheirosa. Não falei, mas coloquei na massa um tiquinho de bicarbonato. Ajuda a massa a ficar mais leve.

E fomos a ela, eu e minha filha.

O assunto foi parar na minha infância, para variar. Minha filha tem sido a fiel depositária de muitas de minhas histórias e ouviu mais essa que não chega a ser uma história. Lembrei e disse que minha mãe costumava fazer uma torta de liquidificador que eu achava uma verdadeira delícia. Sabemos todos que os sabores da infância raramente são superados. É evidente que podem vir a ser caso a mãe fosse um desastre absoluto na cozinha.

Não era o caso da minha e de muitas de minha geração e de gerações anteriores. É bem conhecido o momento em que as mães deixam de ir para a cozinha e vão ao mercado de trabalho para ajudar no orçamento e muitas vezes para não terem de recorrer aos antidepressivos. A partir desse momento a memória afetivo-gastronômica deixa de existir. Pois eu adorava essa torta e tenho ainda, 45 anos depois, a imagem dela chegando à mesa.

Minha mãe gostava de colocar os tomates em rodelas sobre ela. Ficavam bonitos, tostados. O recheio não era muito diferente do que eu fiz. Mas o que fazia toda a diferença era o significado da torta. Torta no meio da semana tinha um sabor de festa.

Já falei sobre a tensão que uma sopa de mandioquinha provoca em mim. Nunca mais consegui apreciar nada que envolva esse tubérculo. Minha mãe jurava que não, mas eu jurava que ela estava presente em quatro dos cinco jantares da semana.

E se não fosse a “maldita”, era alguma outra sopa e eu, assim como centenas de milhões de crianças do planeta, não gostava de sopa. Sopa é uma comida séria. Sopa se come em silêncio, fazendo barulho na medida do aceitável, ou somos repreendidos, com olhares ou mesmo bronca. Ela é quente. Ela exige atenção para servir. Atenção para transportar e se cai faz uma sujeira danada. E se cai em você pode te queimar. Sopa é o fim do caminho. Quando em sua vida você assume que, à noite é “só uma sopinha”, eu diria que seu tempo neste planeta está se esgotando. Ainda que não seja verdade, acredite que é. Você perdeu a razão de viver e de ser.

Por isso, a torta líquida me deixava tão feliz. Tinha cara de festa. Durante os dias da semana as refeições em minha casa tinham a alegria de um urso polar perdido no Sertão da Paraíba. Mas tínhamos a torta de liquidificador ocasionalmente. Se proposital ou não, o fato de não fazer parte do cardápio semanal me enchia de alegria toda vez que aparecia.

Comer com alegria. Eu volto a falar sobre isso.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar