Cultura

Eu celebro personagens detestáveis

Personagens errados têm o direito de existir – especialmente porque servem para nos mostrar o que de pior existe em nós

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Eu os acho detestáveis. Não concordo com suas escolhas, acho suas opiniões questionáveis. Muitas vezes morro de raiva deles, do que dizem, do que fazem. São difíceis de engolir. Mas às vezes é justamente isso que vai me fazer gostar de suas histórias.

The Office é um ótimo exemplo disso. Se você ainda não conhece, trata-se de um seriado de comédia ambientado numa firma que vende papéis, gerenciada por um dos personagens mais deliciosamente detestáveis da ficção.

Michael Scott, o chefe do escritório interpretado por Steve Carell, é aquele cara que venceu como profissional justamente por representar a falta de bom senso, de lógica e de profundidade contidas no mundo corporativo.

Ele se acha o melhor chefe do mundo, super inteligente e engraçado, e parece inconsciente do quão ridículo ele realmente é em suas falas e atitudes. O olhar dos funcionários, que ele parece nunca captar, revela para a câmera o absurdo e o constrangimento que é lidar com uma pessoa que não tem noção do quão egocêntrica, preconceituosa e pirada ela realmente é.

Michael Scott diz coisas racistas, machistas e babacas no geral, achando que está abafando, enquanto todo mundo se entreolha chocado e ofendido no escritório. O ridículo disso tudo é ele nunca perceber como isso o torna uma pessoa detestável, e não o chefe super legal que ele é na cabeça dele.

Em uma das reuniões absolutamente non sense da empresa, uma das funcionárias diz que Michael está sendo misógino e ele responde “obrigado”, como se ela estivesse fazendo um elogio. “Quis dizer que você está sendo machista”, ela tenta explicar, mas ele responde: “Não! Estou sendo misógino. Isso é uma loucura, não sou machista”. Ai, Michael.

Lembro de outro episódio em que ele, para provar que não era homofóbico, beijou na boca, à força, um funcionário gay. Quando você acha que ele não consegue ser mais errado, ele vai lá e te surpreende.

Foram tantos momentos absurdamente errados que a minha relação com esse personagem durante a série pode ser resumida em uma palavra: constrangimento.

Mas quando o personagem saiu do seriado, The Office não foi mais a mesma coisa. Senti saudades sinceras dele e das coisas horríveis que ele falava, apesar de em vários momentos aparecer fagulhas de um cara generoso e com alguma sensibilidade. Pessoas nunca são uma coisa só.

Californication foi outra série que adorei acompanhar especialmente pelos altos níveis de detestabilidade dos personagens. Hank, o protagonista, é interpretado por David “Fox Mulder” Duchovny, e parece baseado no escritor Bukowski; é um escritor porralouca que vive em Los Angeles e que se mete em altas confusões simplesmente porque ele é imaturo e irresponsável demais.

Sim, Hank é um babaca. O mais interessante é que ele sabe que é um babaca e ele até tenta não ser, mas fracassa redondamente todas as vezes. Ele tem uma filha adolescente e um relacionamento conturbado com Karen, a mãe da garota. Ele tenta ser um bom pai e um bom marido, mas ele faz burrada atrás de burrada.

Ver que ele se ferra justamente pelas escolhas idiotas que ele faz e por persistir nos seus erros dá até um sentimento gostoso de schadenfreude e, ao mesmo tempo, raiva por ele ser tão burro, teimoso e babaca. Eu queria esbofeteá-lo e perguntar “será que você nunca vai aprender, cara?”

Não faltam outras histórias cheias desses personagens que amamos odiar. Em House of Cards, é difícil torcer pelo inescrupuloso Frank Underwood, mas ainda que seus métodos de chegar ao poder nos causem repulsa e até aquela vontadezinha de vomitar, seguimos acompanhando apreensivos para ver onde isso vai dar.

Assim como foi com Walter White, do seriado Breaking Bad, uma pessoa horrível não só pelo tipo de criminoso que ele se tornou, mas por continuar usando a justificativa de que “faço isso pela família”, quando não passava do mais velho e puro egoísmo.

Hannah, personagem de Lena Dunham em Girls, e Piper Chapman, protagonista da série Orange is the new black, são exemplares do tipo de personagem que me causa o mais profundo constrangimento. Quando elas aparecem, sei que vão falar alguma besteira, fazer algo equivocado ou simplesmente ser as moças autocentradas e mesquinhas que são, enquanto acham que, na verdade, são as certinhas.

Em Os Oito Odiados, o mais recente filme de Tarantino, há um elenco inteiro desses personagens. O próprio título do filme evidencia o que talvez incomode em sua história: ali não há heróis, personagens para amarmos e torcermos. São todos odiáveis, construídos justamente para não elegermos favoritos.

O que é ótimo: considerando que num filme de Tarantino não vai faltar violência, fica mais fácil se divertir com a história quando você vê que não há ninguém ali que mereça final feliz, justamente porque você sabe que não vai terminar tudo bem.

Você representa tudo que eu odeio, mas te acho altamente divertido, por favor continue

Personagens errados, cheios de fraqueza, falhas, que fazem escolhas estúpidas e que, não raras vezes, possuem opiniões equivocadas e são absolutamente detestáveis não só têm o direito de existir na ficção como têm uma importante função.

Eles conseguem expor o que há de pior em nós, mostrar aquela área depois dos limites que a gente não gostaria de ir, e nos fazem refletir sobre como algumas atitudes são inaceitáveis, ridículas e ofensivas.

Sem eles, a ficção seria apenas propaganda, mostrando personagens corretos e ideais que sirvam de modelo aspiracional para o público.

Perderíamos as possibilidades que a ficção oferece de refletir, olhar uma questão por outra perspectiva, enxergar os diversos ângulos de um personagem, imaginar situações absurdas, ser confrontado por personagens que pensam e fazem escolhas diferentes de nós.

Não é compromisso da ficção dizer “seja bom”, “seja correto”, “seja perfeito”, mas de levantar questionamentos mais profundos, mesmo que precisem ser desconfortáveis e desconcertantes.

Com isso, a ficção joga com nossos sentimentos e ideias sobre o mundo e, no processo, a gente acaba tendo que repensar sobre nós mesmos.

Se há algum problema, não é no personagem detestável em si, mas em quem acha normal e aceitável as coisas que ele faz. Se a pessoa, tanto a que cria o personagem quanto a que o lê, não é capaz de perceber por que aquela atitude ou escolha de determinado personagem é reprovável, o personagem se torna superficial, apenas mais um reforço de um comportamento ou discurso questionável.

É preciso uma enorme consciência e sensibilidade para criar um personagem desses que consiga de fato levantar questionamentos, provocar incômodo e fazer a história ganhar profundidade.

E uma consciência ainda maior para ver o nosso pior refletido naquele personagem, como um lembrete da pessoa que a gente não quer ser – ou, a exemplo do Hank, ver o tipo de babaca que somos e não conseguimos deixar de ser.

 

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