Cultura

Essas pessoas na sala de jantar…

‘Tropicália’ faz o espectador sair do cinema com uma pergunta na cabeça: como, depois de tudo isso, conseguimos ficar tão covardes?

Cartaz do filme "Tropicália"
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As portas se abriram e uma luz incômoda invadiu a sala. Os créditos se esgotavam na tela e ainda assim demorou um bom tempo para alguém finalmente tomar a iniciativa de se levantar, colocar o pé fora da sessão e retomar a rotina. Como? Nos últimos 82 minutos, assistíamos à exposição de um Brasil que conhecíamos pelos livros, pelos relatos, por flashes, músicas e memórias. Um Brasil que, após Tropicália, filme de Marcelo Machado, parecia ganhar um rosto menos disforme.

Imagens raras, músicas um tanto esquecidas, relatos antigos e atuais se uniam para contar a história de um movimento que ainda hoje é difícil definir – mesmo em 82 minutos. Já o era à época, a se observar a declaração de Glauber Rocha, cabelos despenteados e camisa desabotoada, que reclamava estar de saco cheio “desse papo de Tropicalismo”. A dica estava dada: passados 45 anos, para que repetir a mesma pergunta que vem sendo feita e, em certa medida, respondida nos muitos livros e documentários surgidos desde que o movimento eclodiu nos já distantes anos 60?

Pois foi mais ou menos isso o que fez o diretor Marcelo Machado ao colocar na boca dos artistas daquele tempo uma pretensa explicação num pretenso resumo de ópera. Se a ideia foi mesmo essa, a convergência de um período único, uma síntese possível de um País possível, é de toda forma bem conduzida do início ao fim pela junção de análises ainda frescas da época com falas históricas de personagens como Helio Oiticica, José Celso Martinez Correa, Rogério Duarte, Rogério Duprat e o próprio Glauber Rocha.

Porque as influências eram muitas e vinham de todos os lados: da Bahia, do Recife, da bossa nova, de Roberto Carlos, do cinema novo, das artes plásticas, do teatro e de Oswald de Andrade. Essa convergência é revisitada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rita Lee, os irmãos Arnaldo Batista e Sergio Dias dos dias de hoje. São os mesmos olhos sobre os mesmos fatos? Definitivamente não. Tanto que alguma coisa parecia travar os espectadores à saída do cinema. Possivelmente um pensamento em comum: “a pergunta não é mais ‘o que foi o tropicalismo’, mas sim ‘o que é o tropicalismo’”.

A espera por uma ponte para além dos artistas e sua compreensão do período talvez explicasse a postura inerte dos espectadores daquela sala ao fim do documentário. Como se ainda esperássemos uma continuação, uma prorrogação sobre um tempo que hoje parece disperso ou sem efeito fora dos palcos. Em outras palavras: como, depois de tudo isso, conseguimos ficar tão covardes, reacionários e conformados?

Em 82 minutos de filme foi possível entender e sentir um pouco mais aquele movimento de experimentação, um grito de liberdade, uma proposta de postura dilacerada por um período sombrio, de censura, de covardia, de incompreensão. Num dos pontos altos do filme, Tom Zé (dos dias de hoje) mostra o desenho (literalmente) daquele contexto. Como um modelo matemático numa prancheta, mostra na tela as variantes e variáveis do movimento e o localiza numa lógica perversa. Tudo para concluir mais ou menos assim: “a gente queria que a juventude pensasse. E numa ditadura é proibido pensar”.

Nada mais simbólico. É como se dissesse: “vou desenhar para vocês, os jovens de hoje. Porque vocês não estão entendendo nada”. Porque a ditadura conseguiu o que queria (grifo do autor). Em outra cena, durante um programa de tevê, os Mutantes são apresentados como uma resposta, uma reação à projeção de vida adulta desenhada antes que a juventude dos anos 60 nascesse. E entram no estúdio cantando Panis et Circenses. Pois 45 anos depois quem quiser plantar folhas de sonhos no jardim do solar vai esbarrar não mais com cassetetes. Não mais com a censura. Não mais com os atos institucionais. Mas com as mesmas, com as velhas pessoas da sala de jantar ocupadas em nascer e morrer.

No fim dos anos 60, quando tentavam dialogar sobre o que queriam com o movimento (talvez simplesmente pedir que as pessoas da sala de jantar se ocupassem com outros sonhos além de nascer e morrer), Caetano e Gil tomavam pedradas de todos os lados. Não só dos “velhotes inimigos que morreram ontem”. Mas de estudantes. De pessoas da mesma idade, em plena FAU-USP. Porque até mesmo os festivais, hoje lembrados como “exemplos de um tempo bom”, eram terrenos propícios ao maniqueísmo, da expressão de verdadeiras torcidas organizadas que tomavam posição conforme a cor da camisa. Algo como “se tem guitarra sou a favor (ou contra)”. E só. A superficialidade era tão inimiga quanto os cassetetes, e já descabelava Caetano desde o tempo em que gritava ao público: “Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos…”

Bingo. O desapontamento com a superficialidade daquelas reações diante do novo, e a perpetuação delas, é flagrante sobretudo na exposição de Gil. Porque, passado o momento mais tenso da história recente, o Brasil segue na mesma sala de jantar. Basta lembrar da nossa capacidade de mobilização: só saímos às ruas para reivindicar aumento salarial (portanto, quando dói no bolso). Ou quando queremos demonstrar nossa indignação com mecanismos que não compreendemos, como a corrupção (e saímos às ruas com narizes de palhaço, gritando meia dúzia de chavões, e voltando para casa a tempo de assistir a novela). Este Brasil de hoje, em que a juventude – desgraçadamente a maioria esmagadora da juventude – se diz vítima de “ditaduras gays” e se diz saudosa da sobriedade de um tempo que não viveu, fatalmente vaiaria da mesma forma se surgissem hoje os mesmos artistas a unir postura, comportamento, voz, violão, violino, guitarra e rebeldia para contrariar o coro dos contentes.

Aquele grito custou anos de exílio para Caetano e Gil. O País que os desprezava também os cuspia. Foi já naquele tempo sombrio que Caetano decretaria o fim do tropicalismo, durante uma apresentação num programa de tevê em Portugal. “Modéstia à parte, influenciamos muita gente nova. Mas não temos responsabilidade alguma sobre este movimento porque ele acabou”. Aonde foi dar essa influência? É essa ponte que o filme não ousa atravessar.

As portas se abriram e uma luz incômoda invadiu a sala. Os créditos se esgotavam na tela e ainda assim demorou um bom tempo para alguém finalmente tomar a iniciativa de se levantar, colocar o pé fora da sessão e retomar a rotina. Como? Nos últimos 82 minutos, assistíamos à exposição de um Brasil que conhecíamos pelos livros, pelos relatos, por flashes, músicas e memórias. Um Brasil que, após Tropicália, filme de Marcelo Machado, parecia ganhar um rosto menos disforme.

Imagens raras, músicas um tanto esquecidas, relatos antigos e atuais se uniam para contar a história de um movimento que ainda hoje é difícil definir – mesmo em 82 minutos. Já o era à época, a se observar a declaração de Glauber Rocha, cabelos despenteados e camisa desabotoada, que reclamava estar de saco cheio “desse papo de Tropicalismo”. A dica estava dada: passados 45 anos, para que repetir a mesma pergunta que vem sendo feita e, em certa medida, respondida nos muitos livros e documentários surgidos desde que o movimento eclodiu nos já distantes anos 60?

Pois foi mais ou menos isso o que fez o diretor Marcelo Machado ao colocar na boca dos artistas daquele tempo uma pretensa explicação num pretenso resumo de ópera. Se a ideia foi mesmo essa, a convergência de um período único, uma síntese possível de um País possível, é de toda forma bem conduzida do início ao fim pela junção de análises ainda frescas da época com falas históricas de personagens como Helio Oiticica, José Celso Martinez Correa, Rogério Duarte, Rogério Duprat e o próprio Glauber Rocha.

Porque as influências eram muitas e vinham de todos os lados: da Bahia, do Recife, da bossa nova, de Roberto Carlos, do cinema novo, das artes plásticas, do teatro e de Oswald de Andrade. Essa convergência é revisitada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rita Lee, os irmãos Arnaldo Batista e Sergio Dias dos dias de hoje. São os mesmos olhos sobre os mesmos fatos? Definitivamente não. Tanto que alguma coisa parecia travar os espectadores à saída do cinema. Possivelmente um pensamento em comum: “a pergunta não é mais ‘o que foi o tropicalismo’, mas sim ‘o que é o tropicalismo’”.

A espera por uma ponte para além dos artistas e sua compreensão do período talvez explicasse a postura inerte dos espectadores daquela sala ao fim do documentário. Como se ainda esperássemos uma continuação, uma prorrogação sobre um tempo que hoje parece disperso ou sem efeito fora dos palcos. Em outras palavras: como, depois de tudo isso, conseguimos ficar tão covardes, reacionários e conformados?

Em 82 minutos de filme foi possível entender e sentir um pouco mais aquele movimento de experimentação, um grito de liberdade, uma proposta de postura dilacerada por um período sombrio, de censura, de covardia, de incompreensão. Num dos pontos altos do filme, Tom Zé (dos dias de hoje) mostra o desenho (literalmente) daquele contexto. Como um modelo matemático numa prancheta, mostra na tela as variantes e variáveis do movimento e o localiza numa lógica perversa. Tudo para concluir mais ou menos assim: “a gente queria que a juventude pensasse. E numa ditadura é proibido pensar”.

Nada mais simbólico. É como se dissesse: “vou desenhar para vocês, os jovens de hoje. Porque vocês não estão entendendo nada”. Porque a ditadura conseguiu o que queria (grifo do autor). Em outra cena, durante um programa de tevê, os Mutantes são apresentados como uma resposta, uma reação à projeção de vida adulta desenhada antes que a juventude dos anos 60 nascesse. E entram no estúdio cantando Panis et Circenses. Pois 45 anos depois quem quiser plantar folhas de sonhos no jardim do solar vai esbarrar não mais com cassetetes. Não mais com a censura. Não mais com os atos institucionais. Mas com as mesmas, com as velhas pessoas da sala de jantar ocupadas em nascer e morrer.

No fim dos anos 60, quando tentavam dialogar sobre o que queriam com o movimento (talvez simplesmente pedir que as pessoas da sala de jantar se ocupassem com outros sonhos além de nascer e morrer), Caetano e Gil tomavam pedradas de todos os lados. Não só dos “velhotes inimigos que morreram ontem”. Mas de estudantes. De pessoas da mesma idade, em plena FAU-USP. Porque até mesmo os festivais, hoje lembrados como “exemplos de um tempo bom”, eram terrenos propícios ao maniqueísmo, da expressão de verdadeiras torcidas organizadas que tomavam posição conforme a cor da camisa. Algo como “se tem guitarra sou a favor (ou contra)”. E só. A superficialidade era tão inimiga quanto os cassetetes, e já descabelava Caetano desde o tempo em que gritava ao público: “Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos…”

Bingo. O desapontamento com a superficialidade daquelas reações diante do novo, e a perpetuação delas, é flagrante sobretudo na exposição de Gil. Porque, passado o momento mais tenso da história recente, o Brasil segue na mesma sala de jantar. Basta lembrar da nossa capacidade de mobilização: só saímos às ruas para reivindicar aumento salarial (portanto, quando dói no bolso). Ou quando queremos demonstrar nossa indignação com mecanismos que não compreendemos, como a corrupção (e saímos às ruas com narizes de palhaço, gritando meia dúzia de chavões, e voltando para casa a tempo de assistir a novela). Este Brasil de hoje, em que a juventude – desgraçadamente a maioria esmagadora da juventude – se diz vítima de “ditaduras gays” e se diz saudosa da sobriedade de um tempo que não viveu, fatalmente vaiaria da mesma forma se surgissem hoje os mesmos artistas a unir postura, comportamento, voz, violão, violino, guitarra e rebeldia para contrariar o coro dos contentes.

Aquele grito custou anos de exílio para Caetano e Gil. O País que os desprezava também os cuspia. Foi já naquele tempo sombrio que Caetano decretaria o fim do tropicalismo, durante uma apresentação num programa de tevê em Portugal. “Modéstia à parte, influenciamos muita gente nova. Mas não temos responsabilidade alguma sobre este movimento porque ele acabou”. Aonde foi dar essa influência? É essa ponte que o filme não ousa atravessar.

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