Cultura

Entre cobras e lagartos

A repórter Ana Ferraz relembra histórias ouvidas durante a visita à casa do compositor e zoólogo Paulo Vanzolini, em São Paulo

Vanzolini e Adorinan Barbosa, o "amigo de muitas cachacinhas" que hoje ele "visita" no Mercadão. Foto: Gustavo Lourenção
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Quem entra no sobrado do Cambuci, em São Paulo, onde Paulo Vanzolini mora, dá de cara com uma decoração, digamos, bastante pessoal.

 

Na parede, um tatu enquadrado, quer dizer, uma pintura de um tatu emoldurada. No aparador, uma cobra de madeira, boca pronta para o bote.

Ao lado, uma cobrinha quase insignificante se comparada à vizinha, mas com a vantagem de ser verdadeira. Foi taxidermizada – está imobilizada num processo de plastificação.

Na mesinha do centro, mais uma, bonita até, enroladinha. Tudo faz sentido, já que Vanzolini, antes de compositor de mão cheia, é zoólogo. Cientista, portanto, além de grande contador de causos, boa parte autobiográficos.

São 88 anos bem vividos. Com sabedoria. O autor de Ronda, campeã de pedidos nos karaokês paulistanos, não raro como Honda, não se deixa iludir com rapapés.

Não é vaidoso. Acha burrice.

Boêmio do tempo em que a cidade era um ovo, como ele mesmo compara, ainda frequenta a cervejinha dos botecos de bairro, especialmente do Ajuriti, no Cambuci.

Nessa longa jornada boêmia, jura que nunca presenciou nenhuma situação com potencial para inspirar uma música. A inspiração, como já se sabe, tirava da cabeça.

Matutava um tema e pronto, lá vinha um combo, letra e melodia. Claro que demandava esforço, daí o motivo de ter parado de compor há anos. Bicho dá bem menos trabalho. Mesmo que sejam cobras e lagartos, sua especialidade, aliás. Uma aproximação astuta, um vidro de formol e lá está o pobre rastejante paralisado para sempre, pronto para servir à ciência – uma função nobre, fique claro.

Em sua poltrona favorita, ao lado do cabideiro onde descansam seus chapéus de ir pro mato, Vanzolini vai desfiando memórias, quase inconfidências, que revela com expressão marota. Como quando perdeu o grande amigo Adoniran Barbosa, companheiro da “branquinha”, e a viúva cismou que queria subir ao altar novamente. Com ele. Não era amor. Ela se apaixonou por casar com Vanzolini.

Mas ele já usava aliança de ouro na mão esquerda e era pai de cinco filhos. O jeito foi driblar os arroubos da viúva. Muita conversa foi desfiada até que a enamorada finalmente desistiu.

Ateu por profissão e convicção, era católico, mas foi estudar ciência, foi cria de d. Paulo Evaristo Arns, que admira até hoje. O então arcebispo de São Paulo protegia Nelson Gonçalves. Quando tinha informação de que a polícia daria uma incerta no apartamento do cantor, ligava na hora. Nelson, aturdido, corria a jogar no vaso sanitário todo e qualquer substância em pó que houvesse no banheiro. Uma correria danada.

Em meio à conversa animada, de repente Vanzolini fixa o olhar num horizonte imaginário e cantarola: “Quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bexiga pra ver, vai no Bexiga pra ver”. Geraldo Filme é o autor, ótima pessoa e ótimo sambista, garante. Tomava conta dos bailes do Paulistano da Glória, a mítica gafieira. Diante da pergunta “você nunca compôs com ele?”, a resposta vem afiada: “Eu nunca compus com ninguém, compuseram comigo”.

Quem entra no sobrado do Cambuci, em São Paulo, onde Paulo Vanzolini mora, dá de cara com uma decoração, digamos, bastante pessoal.

 

Na parede, um tatu enquadrado, quer dizer, uma pintura de um tatu emoldurada. No aparador, uma cobra de madeira, boca pronta para o bote.

Ao lado, uma cobrinha quase insignificante se comparada à vizinha, mas com a vantagem de ser verdadeira. Foi taxidermizada – está imobilizada num processo de plastificação.

Na mesinha do centro, mais uma, bonita até, enroladinha. Tudo faz sentido, já que Vanzolini, antes de compositor de mão cheia, é zoólogo. Cientista, portanto, além de grande contador de causos, boa parte autobiográficos.

São 88 anos bem vividos. Com sabedoria. O autor de Ronda, campeã de pedidos nos karaokês paulistanos, não raro como Honda, não se deixa iludir com rapapés.

Não é vaidoso. Acha burrice.

Boêmio do tempo em que a cidade era um ovo, como ele mesmo compara, ainda frequenta a cervejinha dos botecos de bairro, especialmente do Ajuriti, no Cambuci.

Nessa longa jornada boêmia, jura que nunca presenciou nenhuma situação com potencial para inspirar uma música. A inspiração, como já se sabe, tirava da cabeça.

Matutava um tema e pronto, lá vinha um combo, letra e melodia. Claro que demandava esforço, daí o motivo de ter parado de compor há anos. Bicho dá bem menos trabalho. Mesmo que sejam cobras e lagartos, sua especialidade, aliás. Uma aproximação astuta, um vidro de formol e lá está o pobre rastejante paralisado para sempre, pronto para servir à ciência – uma função nobre, fique claro.

Em sua poltrona favorita, ao lado do cabideiro onde descansam seus chapéus de ir pro mato, Vanzolini vai desfiando memórias, quase inconfidências, que revela com expressão marota. Como quando perdeu o grande amigo Adoniran Barbosa, companheiro da “branquinha”, e a viúva cismou que queria subir ao altar novamente. Com ele. Não era amor. Ela se apaixonou por casar com Vanzolini.

Mas ele já usava aliança de ouro na mão esquerda e era pai de cinco filhos. O jeito foi driblar os arroubos da viúva. Muita conversa foi desfiada até que a enamorada finalmente desistiu.

Ateu por profissão e convicção, era católico, mas foi estudar ciência, foi cria de d. Paulo Evaristo Arns, que admira até hoje. O então arcebispo de São Paulo protegia Nelson Gonçalves. Quando tinha informação de que a polícia daria uma incerta no apartamento do cantor, ligava na hora. Nelson, aturdido, corria a jogar no vaso sanitário todo e qualquer substância em pó que houvesse no banheiro. Uma correria danada.

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