Cultura

E Paris criou o design

Historiadora mostra como a invenção do sofá abriu caminho para uma revolução no conforto

Descontração. Joan DeJean, autora de O Século do Conforto, devoção à cultura francesa.
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Um dos símbolos máximos da arquitetura francesa, Versalhes é um palácio de superlativos: centenas de quartos, milhares de janelas, dezenas de lareiras, quilômetros de jardins esplendorosos. A opulência visível, entretanto, escondeu por um bom tempo o que só seus moradores sabiam. A residência oficial da família real foi por anos o mais desconfortável palácio da Europa. A morada construída pelo Rei Sol, Luís XIV, inicialmente não dispunha de salas de banho privativas, banheiros ou encanamento. Não havia aquecimento adequado e nenhum móvel onde repousar de modo realmente confortável. A mais grandiosa e opulenta residência de todos os tempos era também a menos habitável.

A depender da iniciativa do rei, a Versalhes bastava irradiar grandeza e magnificência. A marquesa de Montespan discordava. Amante com status de quem frequentou o palácio por quase 25 anos, ela deu oito filhos a Luís XIV e lhe abriu as portas de um conceito que começava a tomar conta de Paris, o conforto. “Ela desempenhou um papel crucial no âmbito da moda e da decoração de interiores. Montespan introduziu as pessoas à ideia de que o melhor estilo está na simplicidade. A marquesa também mostrou às mulheres que a moda podia ser glamourosa e confortável ao mesmo tempo”, conta a CartaCapital a historiadora norte-americana Joan DeJean, autora de O Século do Conforto (Civilização Brasileira, 416 págs., R$ 62,90).

O que a pesquisadora define como Século do Conforto compreende de 1670 a 1765. Praticamente tudo o que hoje compõe uma casa foi desenvolvido nessa fase de efervescência e encantamento com as próprias descobertas, amplamente registradas em cartas, diá­rios, jornais e revistas. Um objeto tão prosaico quanto um sofá, a ocupar o centro das atenções numa sala, até então jamais tivera sua função delineada como tal. Os gigantescos cômodos palacianos continham poucos móveis. A maioria das peças estava ali como símbolo de status dos proprietários, que as dispunham nas primeiras salas, para admiração dos visitantes. À medida que se avançava palácio adentro, diminuía o mobiliário. Poucos móveis eram de fato destinados ao uso cotidiano, quase nenhum reservado ao relaxamento.

“Os lugares para se sentar eram feitos de madeira nua e dura, com, no máximo ,uma almofada removível ou uma fina capa de tecido ou tapeçaria para acolchoar”, conta a autora, especialista em cultura francesa dos séculos XVII e XVIII e professora na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. “O design moderno de móveis começou com o sofá. Antes dele, quando queriam conversar as pessoas se sentavam em camas ou dispunham grandes colchões no chão.”

Atenta aos novos tempos, Montespan informalmente decretou o fim da ostentação e o início do reinado da comodidade. A Corte estava enfastiada das toscas cadeiras de encosto alto, reto e rijo, sem apoio para a região lombar, com acolchoamento aquém do requerido. “O sofá surge entre 1685 e 1710, capta o espírito de uma nova era e abre caminho para uma revolução no design.” Por volta de 1760, todos os tipos de assento hoje existentes haviam sido criados. André Jacob Roubo, o primeiro grande teórico do design de móveis, declarou em 1769 que tamanha onda criativa tinha como motivação um só objetivo, o conforto.

Em 1708, o duque d’Antin, filho da marquesa com o Rei Sol, pediu ao pai que fizesse um banheiro num cômodo separado no palácio de Marly, um anexo de Versalhes situado a 27 quilômetros de Paris. Construtor entusiasmado, o soberano ainda não tinha sido convencido das vantagens das novas tendências. Dessa forma, anotou à margem do pedido: “Ideia imprestável. Vasos sanitários são inúteis e custarão mais do que você pensa”.

Com ideias bem mais arejadas que as do soberano, Montespan deu vazão à sua fúria reformatória no imenso terreno de Versalhes. Mandou erguer o Trianon de Porcelaine, palácio onde exerceu seu inconteste poder de mando: nada de tetos com afrescos rebuscados, tudo branco. Cores claras nos cômodos, pisos de madeira, estofados em todos os lugares, tecidos estampados a adornar paredes. “O Trianon é considerado a origem do gosto moderno para decoração”, afirma Joan.

Sucessor do Rei Sol, Luís XV teve desde cedo preocupações com o conforto. Em 1728 mandou quebrar espessas paredes e instalar encanamentos para os primeiros banheiros do palácio. Adepto da informalidade, decidiu que tinha direito a uma vida colateral à oficial. “Luís XV criou um universo paralelo em Versalhes, com uma segunda sala de jantar e tudo o mais.” Ali, o rei se despia da formalidade e podia viver a fantasia de um cidadão comum, livre dos protocolos reais.

Foi outra vez pelas mãos de uma mulher que as novidades adentraram as portas de Versalhes. Jeanne Antoinette Poisson d’Étiolles, a linda e loura marquesa de Pompadour, amante de ­Luís XV, teve apoio do soberano para dar vazão a seus anseios por modernidade. Adepta de banhos frequentes, determinou a construção de uma suntuosa e inigualável sala destinada às abluções. “Juntos, Pompadour e o rei trouxeram Versalhes para a época moderna”, pontua a historiadora.

A esta altura, os franceses haviam percebido o quanto a arquitetura de interiores podia influenciar o modo de viver. Nas últimas décadas do século XVII, ansiava-se por ambientes mais limpos, refinados e capazes de garantir privacidade. O banho, o uso do vaso sanitário, o flerte, o sexo, nada mais era praticado na frente de todos. Banheiros, sanitários, quartos para dormir, móveis bem estofados eram um convite à intimidade.

 

 

Era o fim de cenas constrangedoras, até então corriqueiras. Como a visão de damas que após um farto jantar deixavam a mesa às pressas e descerimoniosamente se aliviavam nos corredores do palácio. Cronistas da época contam que anos após a Revolução e o fim da Corte os belos corredores dourados ainda se mostravam impregnados pelo bodum real.

O novo modo de viver não passou ao largo da sensibilidade dos artistas. Pinturas e gravuras começam a mostrar homens e mulheres em sua nova linguagem corporal. As pernas ganham liberdade e podem ser cruzadas ou esticadas na frente da poltrona ou do sofá. Libertas dos vestidos espartilhados que não permitiam sequer uma dobra no rígido tecido, signo de poder e influência, as mulheres se exibem mais lânguidas e descontraídas.

Novas tramas, como o algodão importado da Índia, caem no gosto parisiense. Leve, macio e com estampas exóticas, substitui com vantagens os tecidos duros e pesados. Sedas frescas entram em cena e as mulheres celebram o novo corpo liberto. “O grande luxo passa a ser o conforto”, diz a escritora. Numa época em que as mulheres passavam boa parte da vida grávidas, um dos motivos a levar as francesas a insistir no fim dos sufocantes espartilhos era a gestação. Os vestidos praticamente costurados ao corpo dificultavam a respiração, oprimiam o ventre e os seios. “O corpete era a essência da indumentária: uma obra-prima da arte da costura, intrincado e repleto de barbatanas.” Quando passam a adotar os modelos soltos e esvoaçantes, a permitir amplitude de movimentos, os mais conservadores as chamam de inconsequentes.

Nenhum comentário abalava a poderosa Pompadour. “Dez de seus 78 vestidos franceses eram de perse (algodão feito na Índia), quatro de musselina. Ela possuía seis trajes informais de algodão pintado, uma quantidade ousada se levarmos em conta sua posição pública”, escreve Joan.

Nada que se equipare ao guarda-roupa de uma das favoritas do monarca anterior, Luís XIV, Louise-Françoise de Bourbon, filha da marquesa de Montespan e conhecida na Corte como Madame la Duchesse. “Trinta e sete de seus 39 robes de chambre eram feitos do tecido proibido (algodão), com estampas que variavam de florais em tons de violeta a motivos de uvas e videiras (certamente uma encomenda especial para o mercado francês), além de listras em preto e branco e uma mistura multicolorida de árvores, frutas e folhas sobre fundo branco”, escreve a historiadora.

A filha de Luís XIV e Montespan também herdou dos pais o gosto pela decoração de interiores. “Bem jovem ela demonstrava interesse por design. Mais tarde, construiu uma das maiores casas de Paris, cujos mobiliário e decoração, em especial todas as salas brancas, se tornaram famosos. Hoje, a antiga residência é o Palácio Bourbon, sede do Senado francês”, conta a especialista.

Em meados do século XVIII, a Encyclopédie, monumento tanto à filosofia iluminista quanto às realizações nas ciências, artes e ofícios, definiu o luxo em termos impensáveis um ­século antes, destaca Joan: “O uso que se faz da riqueza para tornar a vida mais prazerosa”. A França definitivamente havia escancarado as portas de um mundo devotado à conveniência e à privacidade e incorporado aos dicionários uma nova palavra: commodité.

Um dos símbolos máximos da arquitetura francesa, Versalhes é um palácio de superlativos: centenas de quartos, milhares de janelas, dezenas de lareiras, quilômetros de jardins esplendorosos. A opulência visível, entretanto, escondeu por um bom tempo o que só seus moradores sabiam. A residência oficial da família real foi por anos o mais desconfortável palácio da Europa. A morada construída pelo Rei Sol, Luís XIV, inicialmente não dispunha de salas de banho privativas, banheiros ou encanamento. Não havia aquecimento adequado e nenhum móvel onde repousar de modo realmente confortável. A mais grandiosa e opulenta residência de todos os tempos era também a menos habitável.

A depender da iniciativa do rei, a Versalhes bastava irradiar grandeza e magnificência. A marquesa de Montespan discordava. Amante com status de quem frequentou o palácio por quase 25 anos, ela deu oito filhos a Luís XIV e lhe abriu as portas de um conceito que começava a tomar conta de Paris, o conforto. “Ela desempenhou um papel crucial no âmbito da moda e da decoração de interiores. Montespan introduziu as pessoas à ideia de que o melhor estilo está na simplicidade. A marquesa também mostrou às mulheres que a moda podia ser glamourosa e confortável ao mesmo tempo”, conta a CartaCapital a historiadora norte-americana Joan DeJean, autora de O Século do Conforto (Civilização Brasileira, 416 págs., R$ 62,90).

O que a pesquisadora define como Século do Conforto compreende de 1670 a 1765. Praticamente tudo o que hoje compõe uma casa foi desenvolvido nessa fase de efervescência e encantamento com as próprias descobertas, amplamente registradas em cartas, diá­rios, jornais e revistas. Um objeto tão prosaico quanto um sofá, a ocupar o centro das atenções numa sala, até então jamais tivera sua função delineada como tal. Os gigantescos cômodos palacianos continham poucos móveis. A maioria das peças estava ali como símbolo de status dos proprietários, que as dispunham nas primeiras salas, para admiração dos visitantes. À medida que se avançava palácio adentro, diminuía o mobiliário. Poucos móveis eram de fato destinados ao uso cotidiano, quase nenhum reservado ao relaxamento.

“Os lugares para se sentar eram feitos de madeira nua e dura, com, no máximo ,uma almofada removível ou uma fina capa de tecido ou tapeçaria para acolchoar”, conta a autora, especialista em cultura francesa dos séculos XVII e XVIII e professora na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. “O design moderno de móveis começou com o sofá. Antes dele, quando queriam conversar as pessoas se sentavam em camas ou dispunham grandes colchões no chão.”

Atenta aos novos tempos, Montespan informalmente decretou o fim da ostentação e o início do reinado da comodidade. A Corte estava enfastiada das toscas cadeiras de encosto alto, reto e rijo, sem apoio para a região lombar, com acolchoamento aquém do requerido. “O sofá surge entre 1685 e 1710, capta o espírito de uma nova era e abre caminho para uma revolução no design.” Por volta de 1760, todos os tipos de assento hoje existentes haviam sido criados. André Jacob Roubo, o primeiro grande teórico do design de móveis, declarou em 1769 que tamanha onda criativa tinha como motivação um só objetivo, o conforto.

Em 1708, o duque d’Antin, filho da marquesa com o Rei Sol, pediu ao pai que fizesse um banheiro num cômodo separado no palácio de Marly, um anexo de Versalhes situado a 27 quilômetros de Paris. Construtor entusiasmado, o soberano ainda não tinha sido convencido das vantagens das novas tendências. Dessa forma, anotou à margem do pedido: “Ideia imprestável. Vasos sanitários são inúteis e custarão mais do que você pensa”.

Com ideias bem mais arejadas que as do soberano, Montespan deu vazão à sua fúria reformatória no imenso terreno de Versalhes. Mandou erguer o Trianon de Porcelaine, palácio onde exerceu seu inconteste poder de mando: nada de tetos com afrescos rebuscados, tudo branco. Cores claras nos cômodos, pisos de madeira, estofados em todos os lugares, tecidos estampados a adornar paredes. “O Trianon é considerado a origem do gosto moderno para decoração”, afirma Joan.

Sucessor do Rei Sol, Luís XV teve desde cedo preocupações com o conforto. Em 1728 mandou quebrar espessas paredes e instalar encanamentos para os primeiros banheiros do palácio. Adepto da informalidade, decidiu que tinha direito a uma vida colateral à oficial. “Luís XV criou um universo paralelo em Versalhes, com uma segunda sala de jantar e tudo o mais.” Ali, o rei se despia da formalidade e podia viver a fantasia de um cidadão comum, livre dos protocolos reais.

Foi outra vez pelas mãos de uma mulher que as novidades adentraram as portas de Versalhes. Jeanne Antoinette Poisson d’Étiolles, a linda e loura marquesa de Pompadour, amante de ­Luís XV, teve apoio do soberano para dar vazão a seus anseios por modernidade. Adepta de banhos frequentes, determinou a construção de uma suntuosa e inigualável sala destinada às abluções. “Juntos, Pompadour e o rei trouxeram Versalhes para a época moderna”, pontua a historiadora.

A esta altura, os franceses haviam percebido o quanto a arquitetura de interiores podia influenciar o modo de viver. Nas últimas décadas do século XVII, ansiava-se por ambientes mais limpos, refinados e capazes de garantir privacidade. O banho, o uso do vaso sanitário, o flerte, o sexo, nada mais era praticado na frente de todos. Banheiros, sanitários, quartos para dormir, móveis bem estofados eram um convite à intimidade.

 

 

Era o fim de cenas constrangedoras, até então corriqueiras. Como a visão de damas que após um farto jantar deixavam a mesa às pressas e descerimoniosamente se aliviavam nos corredores do palácio. Cronistas da época contam que anos após a Revolução e o fim da Corte os belos corredores dourados ainda se mostravam impregnados pelo bodum real.

O novo modo de viver não passou ao largo da sensibilidade dos artistas. Pinturas e gravuras começam a mostrar homens e mulheres em sua nova linguagem corporal. As pernas ganham liberdade e podem ser cruzadas ou esticadas na frente da poltrona ou do sofá. Libertas dos vestidos espartilhados que não permitiam sequer uma dobra no rígido tecido, signo de poder e influência, as mulheres se exibem mais lânguidas e descontraídas.

Novas tramas, como o algodão importado da Índia, caem no gosto parisiense. Leve, macio e com estampas exóticas, substitui com vantagens os tecidos duros e pesados. Sedas frescas entram em cena e as mulheres celebram o novo corpo liberto. “O grande luxo passa a ser o conforto”, diz a escritora. Numa época em que as mulheres passavam boa parte da vida grávidas, um dos motivos a levar as francesas a insistir no fim dos sufocantes espartilhos era a gestação. Os vestidos praticamente costurados ao corpo dificultavam a respiração, oprimiam o ventre e os seios. “O corpete era a essência da indumentária: uma obra-prima da arte da costura, intrincado e repleto de barbatanas.” Quando passam a adotar os modelos soltos e esvoaçantes, a permitir amplitude de movimentos, os mais conservadores as chamam de inconsequentes.

Nenhum comentário abalava a poderosa Pompadour. “Dez de seus 78 vestidos franceses eram de perse (algodão feito na Índia), quatro de musselina. Ela possuía seis trajes informais de algodão pintado, uma quantidade ousada se levarmos em conta sua posição pública”, escreve Joan.

Nada que se equipare ao guarda-roupa de uma das favoritas do monarca anterior, Luís XIV, Louise-Françoise de Bourbon, filha da marquesa de Montespan e conhecida na Corte como Madame la Duchesse. “Trinta e sete de seus 39 robes de chambre eram feitos do tecido proibido (algodão), com estampas que variavam de florais em tons de violeta a motivos de uvas e videiras (certamente uma encomenda especial para o mercado francês), além de listras em preto e branco e uma mistura multicolorida de árvores, frutas e folhas sobre fundo branco”, escreve a historiadora.

A filha de Luís XIV e Montespan também herdou dos pais o gosto pela decoração de interiores. “Bem jovem ela demonstrava interesse por design. Mais tarde, construiu uma das maiores casas de Paris, cujos mobiliário e decoração, em especial todas as salas brancas, se tornaram famosos. Hoje, a antiga residência é o Palácio Bourbon, sede do Senado francês”, conta a especialista.

Em meados do século XVIII, a Encyclopédie, monumento tanto à filosofia iluminista quanto às realizações nas ciências, artes e ofícios, definiu o luxo em termos impensáveis um ­século antes, destaca Joan: “O uso que se faz da riqueza para tornar a vida mais prazerosa”. A França definitivamente havia escancarado as portas de um mundo devotado à conveniência e à privacidade e incorporado aos dicionários uma nova palavra: commodité.

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