Cultura

Dois anos sem o Cine Belas Artes: sim!, há o que comemorar

Espaço resistiu por dois anos porque parcela relevante da comunidade se mobilizou e o defendeu como parte da identidade da cidade

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Há dois anos, na noite de uma quinta-feira de março, com muita tristeza, assistimos à última sessão do Cine Belas Artes. Quando as luzes do projetor se apagaram e as da sala se acenderam pela última vez, se fez um silêncio profundo. À saída, em vez de corriqueiros comentários sobre o filme que acabávamos de ver, pairou um clima de velório. “Acabou!”, muitos disseram.

Apesar da luta que, nos meses anteriores, havia mobilizado milhares de pessoas contra o fechamento do Belas Artes, parecia se repetir a sina que tem marcado a cidade nas últimas décadas: o fechamento dos cinemas de rua, nesse caso, o mais importante deles. Parecia irreversível o desaparecimento de um lugar que já havia marcado a vida cotidiana de São Paulo, uma sala de arte que se manteve independente dos circuitos comerciais e que havia se transformado em uma referência urbana e cultural da cidade.

Seduzido por um aluguel milionário que, segundo se dizia, era oferecido por uma rede comercial, o proprietário do prédio não aceitou nem uma boa proposta de locação que tornasse possível manter o cinema aberto. “Não tem jeito!”, recomendava o senso comum. “É a força da grana que destrói coisas belas”. Paciência, diziam os céticos: a desenfreada valorização imobiliária chegou até aqui.

Por sorte, não existem apenas céticos; milagrosamente, no meio dessa selva de concreto, aparecem apaixonados que não se conformam em ver desaparecerem as últimas referências que conferem identidade aos lugares significativos da cidade. Reunidos no Movimento Pelo Cine Belas Artes (MBA), jovens e velhos frequentadores do cinema não cederam à lógica dominante e ergueram trincheiras contra o que parecia irreversível.

Esse grupo de militantes e ativistas urbanos e culturais, respaldados por mais de cem mil cidadãos que apoiam essa causa na internet e milhares que assinaram presencialmente o manifesto, buscou os conselhos de defesa do patrimônio cultural, para lhes mostrar a necessidade de preservar, do processo imobiliário, os espaços públicos de cultura que se tornaram referenciais para a cidade.

Com tenacidade e persistência, o MBA manteve a chama da esperança acesa por dois anos. O cinema está ali, fechado, triste, escuro, fazendo falta sempre que queremos ver um bom filme, mas alguma luz parece surgir no final do túnel. O Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) determinou o tombamento da fachada e registro de memória do cinema. Nenhuma obra ou alteração física pode ser feita sem a autorização do órgão. Espera-se que, com a nova administração da cidade, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio), que há dois anos abriu processo de tombamento do cinema, possa retomar o assunto, que recebeu parecer positivo da sua área técnica. O proprietário contabiliza os milhões que deixou de receber pela excessiva ganância.

Para além de sua importância como cinema, a reabertura do Cine Belas Artes é fundamental para a reabilitação da vida cultural e urbana da esquina das avenidas Consolação e Paulista, que caiu em decadência, sobretudo durante a noite, nos últimos anos. Em breve estará de volta o Bar Riviera, tradicional ponto de encontro que faz parte desse conjunto cultural. O que será dele sem o movimento efervescente gerado por um cinema como o antigo Belas Artes? Mais um restaurante com “valet” na porta? É disso que São Paulo precisa?

Não, a região necessita de um impulso capaz de potencializar sua ocupação. Com medidas simples de segurança e manutenção, a passagem subterrânea que liga o Belas Artes ao Riviera poderá ser rapidamente revitalizada, com a valorização dos sebos ali instalados. Um bom projeto urbano poderá conectar todos esses espaços com a Praça do Ciclista e outros espaços públicos do entorno.

Os cinemas de rua exercem um papel fundamental no repovoamento do espaço público, elemento estratégico da construção da cidade que queremos. Por essa razão, propus uma lei, aprovada em 2004, que garante incentivos fiscais aos cinemas de rua, que precisa ser estendida a outros equipamentos culturais de rua, em especial os teatros.

Outras medidas de proteção aos espaços culturais públicos não estatais, situados nas ruas, precisam ser instituídos, alargando o conceito das Zonas Especiais de Preservação Cultural (Zepec), dispositivo que garante a preservação de bens imóveis representativos de valor cultural e comunitário, criado pelo Plano Diretor Estratégico (PDE), que relatei na Câmara Municipal, em 2002. Sua revisão, que ocorrerá neste ano, é a grande oportunidade que temos para aprofundar essa proteção e evitar que outros espaços culturais significativos venham a desaparecer.

Mesmo fechado (provisoriamente, espero), o Belas Artes resistiu por dois anos porque parcela relevante da comunidade paulistana se mobilizou e o defendeu como parte da identidade da cidade. Sim, podemos comemorar: o Movimento Belas Artes vem mostrando que a cidadania cultural pode enfrentar “a força da grana”.

Nabil Bonduki, professor da FAU-USP, livre-docente em planejamento urbano, é vereador em São Paulo. Foi o relator da Lei do Plano Diretor Estratégico da cidade

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