Cultura

Com o fogo no coração

O jornalista Mário Magalhães biografa o impetuoso Carlos Marighella na esperança de vê-lo incluído nos livros de história

No início da ação. Marighela, em 1940, na prisão de Fernando de Noronha, um Brasil a conhecer
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Carlos marighella exercia a esperança à força. “O comunista deve ser um coração de fogo e uma cabeça de gelo”, escreveu em 1955, depois de lutar contra o Estado Novo e passar sete de seus 44 anos de vida preso, sob forte porrada ou até metido em banhos de mar. Fiel aos tamancos, mas fraco para a dança, adepto da paródia e forte para a ação, mesmo se ela se restringisse à limpeza da cozinha, o guerrilheiro de péssima mira parecia entender a lição de Che Guevara sobre a ternura. Em 1968, a meses de seu assassinato a tiros em uma emboscada paulistana, quando a ditadura brasileira teimava em jamais abrandar, ele fora o único a praticar com Rose Nogueira os exercícios respiratórios para um parto sem dor. O estudante de Engenharia que se veria alcunhado Inimigo Público Número Um dera à militante grávida um conselho enigmático como a vida: “Responda sempre com poesia”.

Fazedor de versos, Marighella penava com as respostas. Nos 57 anos em que viveu, procurou por elas nos livros e na esquerda centralista, embora parecesse encontrá-las mais facilmente no próprio corpo grande de mulato, filho sem a beleza óbvia dos que o originaram, a neta de escravos Maria Rita e o empreendedor Augusto, da Emilia-Romagna. Carlos, o Carrinho, era o querido das mulheres e da família. Seu pai lhe deu grande biblioteca. Carrinho não aprendeu com ele o ofício de mecânico, mas a coragem para o enfrentamento, além da capoeira. Que não levasse dos outros sem retrucar, mas que respeitasse os outros.

“Não foi um pensador, mas a ação para ele era quase um fetiche”, acredita o jornalista Mário Magalhães, 48 anos, nove deles mergulhado na vida do baiano para a composição do monumental Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 736 págs., R$ 56,50), a ser lançado na Livraria Cultura, em São Paulo, na segunda-feira 29. Quando fala a CartaCapital por telefone, desde o Rio de Janeiro, onde nasceu, o pai de três filhos não segura o excitamento em relação ao personagem. Sobre sua dificuldade em narrar a história, expõe só a de seu protagonista, com o qual deparara na juventude de militância trotskista e durante as pesquisas para Chatô, de Fernando Morais, realizadas em 1987 enquanto trabalhava em O Globo. “Marighella é um dos cinco brasileiros mais conhecidos do mundo, junto com Pelé”, crê, ele que cita o futebolista para também adjetivar seu introdutor na arte de biografar.

Ainda que do estilo de Fernando Morais esta obra tenha pouco, sua envergadura histórica permitiu a tiragem inicial de 12 mil exemplares. “Jamais pensei neste livro como uma hagiografia. E embora entendesse ser preciso lograr uma vida de tirar o fôlego, não abri mão das ideias a cercar o personagem.” Ex-repórter e ombudsman da Folha de S.Paulo, ele mantém na mesa de trabalho uma das epígrafes do livro, de François Truffaut: “Não esqueçamos jamais que as ideias são menos interessantes do que os seres humanos que as inventam, modificam, aperfeiçoam ou traem”. A segunda epígrafe é de J. W. Goe-the: “Ao princípio era a Ação”.

Agir norteou Magalhães nessa pesquisa. Ele entrevistou diretamente 256 fontes, compôs 2.580 notas e uma bibliografia de 600 volumes. O livro é grande por necessidade. O autor se prefere sintético na redação para surgir extensivo nos informes. Por isso não se pode chamar o texto de estrita biografia. É uma reportagem histórica que se abre a cada evento em torno de Marighella, revelando fatos e personagens essenciais, como o parceiro Joaquim Câmara Ferreira. Ou curiosos, como o pai e o tio de Fernando Henrique Cardoso, em luta pelo petróleo como monopólio estatal.

A obra não se pretende literária, porque Magalhães jamais se entende como escritor, antes um “catador de informação” e “um contador de histórias”. Haja então a revelar ao país que nunca mostrou Marighella na escola. O “santo ateu”, como o definiu Antonio Candido, surge ali em combate ao autoritarismo, indignado com ações terroristas que atingissem inocentes. Como não se trata de bajulação, saiba o leitor, por exemplo, que foi Marighella o responsável por expulsar do PCB Patrícia Galvão, a Pagu. O guerrilheiro que encantou Glauber Rocha e Jean-Luc Godard, tido como o Che das cidades por seu mundialmente traduzido Minimanual do Guerrilheiro Urbano, culpara Pagu pelas “atitudes escandalosas de degenerada sexual”, quando, em verdade, ela agira sob ordens partidárias.

Eis o PCB a receber dinheiro de Adhemar de Barros e, entre outras narrativas em paralelo, a do primeiro desaparecido da luta armada, Virgílio Gomes da Silva, trucidado pela polícia a quem se declarou patriota e brasileiro. O personagem é redimido depois de ter sido tratado por Bruno Barreto com o vilão Jonas em O Que É Isso, Companheiro? A mulher do militante, integrante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Ilda, foi torturada. Três de seus filhos, um deles com 4 meses, levados a um juizado. Vlademir, com 8 anos, e Virgilinho, de 6, furtavam leite na geladeira para dar à caçula Isabel, e dormiam no chão, amarrados uns aos outros e abraçados ao berço pela roupa, para não se dispersarem. Todos salvos, hoje Virgilinho é geógrafo da Petrobras, tendo se formado em Cuba. E Ilda, após as fotos do marido morto obtidas por Magalhães, insistiu na investigação sobre o paradeiro do corpo.

Todo o heroísmo que há nos insuspeitos descobertos por Magalhães, como Jacques Breyton, um resistente na França para quem a prisão de Klaus Barbie era mais amena do que as brasileiras da época, é negado neste livro ao Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes. Restou-lhe a Coluna. De resto, diz Magalhães, contestou Getúlio Vargas apenas quando este promovia reformas importantes, a dois dias da morte. Garantiu aos soviéticos ter aparato para fazer a revolução nos anos 1960. Passou escondido por 1964. Acumulou cadernetas que, descobertas, levaram à prisão de militantes. Do livro, o personagem sai machucado pelo burocratismo e pelo culto à personalidade.

E é também um outro Brasil o presente nesse texto, o horror pleno patrocinado pelo golpe, erroneamente lembrado como “revolução” por alguns contemporâneos. Nesse Brasil sem democracia figurava o legista Harry Shibata, que “batizou” o corpo de Marighella, quando ele fora nascido de mãe católica fervorosa e convertido na vida adulta a filho de Oxóssi, como o livro revela, sem o conhecimento da segunda mulher, Clara Charf. Sondado para uma versão cinematográfica, Magalhães diz não ter recebido propostas. No Brasil, seu Marighella ideal seria Lázaro Ramos. Entre Wesley Snipes e Denzel Washington, brinca preferir Snipes. São muitos os personagens irresistíveis no livro, como o companheiro de ALN Marquito ou o comunista Diógenes Arruda Câmara. Magalhães não pensa agora em se embrenhar neles. Mas não estranharia se seu livro levasse a muitos outros.

Carlos marighella exercia a esperança à força. “O comunista deve ser um coração de fogo e uma cabeça de gelo”, escreveu em 1955, depois de lutar contra o Estado Novo e passar sete de seus 44 anos de vida preso, sob forte porrada ou até metido em banhos de mar. Fiel aos tamancos, mas fraco para a dança, adepto da paródia e forte para a ação, mesmo se ela se restringisse à limpeza da cozinha, o guerrilheiro de péssima mira parecia entender a lição de Che Guevara sobre a ternura. Em 1968, a meses de seu assassinato a tiros em uma emboscada paulistana, quando a ditadura brasileira teimava em jamais abrandar, ele fora o único a praticar com Rose Nogueira os exercícios respiratórios para um parto sem dor. O estudante de Engenharia que se veria alcunhado Inimigo Público Número Um dera à militante grávida um conselho enigmático como a vida: “Responda sempre com poesia”.

Fazedor de versos, Marighella penava com as respostas. Nos 57 anos em que viveu, procurou por elas nos livros e na esquerda centralista, embora parecesse encontrá-las mais facilmente no próprio corpo grande de mulato, filho sem a beleza óbvia dos que o originaram, a neta de escravos Maria Rita e o empreendedor Augusto, da Emilia-Romagna. Carlos, o Carrinho, era o querido das mulheres e da família. Seu pai lhe deu grande biblioteca. Carrinho não aprendeu com ele o ofício de mecânico, mas a coragem para o enfrentamento, além da capoeira. Que não levasse dos outros sem retrucar, mas que respeitasse os outros.

“Não foi um pensador, mas a ação para ele era quase um fetiche”, acredita o jornalista Mário Magalhães, 48 anos, nove deles mergulhado na vida do baiano para a composição do monumental Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 736 págs., R$ 56,50), a ser lançado na Livraria Cultura, em São Paulo, na segunda-feira 29. Quando fala a CartaCapital por telefone, desde o Rio de Janeiro, onde nasceu, o pai de três filhos não segura o excitamento em relação ao personagem. Sobre sua dificuldade em narrar a história, expõe só a de seu protagonista, com o qual deparara na juventude de militância trotskista e durante as pesquisas para Chatô, de Fernando Morais, realizadas em 1987 enquanto trabalhava em O Globo. “Marighella é um dos cinco brasileiros mais conhecidos do mundo, junto com Pelé”, crê, ele que cita o futebolista para também adjetivar seu introdutor na arte de biografar.

Ainda que do estilo de Fernando Morais esta obra tenha pouco, sua envergadura histórica permitiu a tiragem inicial de 12 mil exemplares. “Jamais pensei neste livro como uma hagiografia. E embora entendesse ser preciso lograr uma vida de tirar o fôlego, não abri mão das ideias a cercar o personagem.” Ex-repórter e ombudsman da Folha de S.Paulo, ele mantém na mesa de trabalho uma das epígrafes do livro, de François Truffaut: “Não esqueçamos jamais que as ideias são menos interessantes do que os seres humanos que as inventam, modificam, aperfeiçoam ou traem”. A segunda epígrafe é de J. W. Goe-the: “Ao princípio era a Ação”.

Agir norteou Magalhães nessa pesquisa. Ele entrevistou diretamente 256 fontes, compôs 2.580 notas e uma bibliografia de 600 volumes. O livro é grande por necessidade. O autor se prefere sintético na redação para surgir extensivo nos informes. Por isso não se pode chamar o texto de estrita biografia. É uma reportagem histórica que se abre a cada evento em torno de Marighella, revelando fatos e personagens essenciais, como o parceiro Joaquim Câmara Ferreira. Ou curiosos, como o pai e o tio de Fernando Henrique Cardoso, em luta pelo petróleo como monopólio estatal.

A obra não se pretende literária, porque Magalhães jamais se entende como escritor, antes um “catador de informação” e “um contador de histórias”. Haja então a revelar ao país que nunca mostrou Marighella na escola. O “santo ateu”, como o definiu Antonio Candido, surge ali em combate ao autoritarismo, indignado com ações terroristas que atingissem inocentes. Como não se trata de bajulação, saiba o leitor, por exemplo, que foi Marighella o responsável por expulsar do PCB Patrícia Galvão, a Pagu. O guerrilheiro que encantou Glauber Rocha e Jean-Luc Godard, tido como o Che das cidades por seu mundialmente traduzido Minimanual do Guerrilheiro Urbano, culpara Pagu pelas “atitudes escandalosas de degenerada sexual”, quando, em verdade, ela agira sob ordens partidárias.

Eis o PCB a receber dinheiro de Adhemar de Barros e, entre outras narrativas em paralelo, a do primeiro desaparecido da luta armada, Virgílio Gomes da Silva, trucidado pela polícia a quem se declarou patriota e brasileiro. O personagem é redimido depois de ter sido tratado por Bruno Barreto com o vilão Jonas em O Que É Isso, Companheiro? A mulher do militante, integrante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Ilda, foi torturada. Três de seus filhos, um deles com 4 meses, levados a um juizado. Vlademir, com 8 anos, e Virgilinho, de 6, furtavam leite na geladeira para dar à caçula Isabel, e dormiam no chão, amarrados uns aos outros e abraçados ao berço pela roupa, para não se dispersarem. Todos salvos, hoje Virgilinho é geógrafo da Petrobras, tendo se formado em Cuba. E Ilda, após as fotos do marido morto obtidas por Magalhães, insistiu na investigação sobre o paradeiro do corpo.

Todo o heroísmo que há nos insuspeitos descobertos por Magalhães, como Jacques Breyton, um resistente na França para quem a prisão de Klaus Barbie era mais amena do que as brasileiras da época, é negado neste livro ao Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes. Restou-lhe a Coluna. De resto, diz Magalhães, contestou Getúlio Vargas apenas quando este promovia reformas importantes, a dois dias da morte. Garantiu aos soviéticos ter aparato para fazer a revolução nos anos 1960. Passou escondido por 1964. Acumulou cadernetas que, descobertas, levaram à prisão de militantes. Do livro, o personagem sai machucado pelo burocratismo e pelo culto à personalidade.

E é também um outro Brasil o presente nesse texto, o horror pleno patrocinado pelo golpe, erroneamente lembrado como “revolução” por alguns contemporâneos. Nesse Brasil sem democracia figurava o legista Harry Shibata, que “batizou” o corpo de Marighella, quando ele fora nascido de mãe católica fervorosa e convertido na vida adulta a filho de Oxóssi, como o livro revela, sem o conhecimento da segunda mulher, Clara Charf. Sondado para uma versão cinematográfica, Magalhães diz não ter recebido propostas. No Brasil, seu Marighella ideal seria Lázaro Ramos. Entre Wesley Snipes e Denzel Washington, brinca preferir Snipes. São muitos os personagens irresistíveis no livro, como o companheiro de ALN Marquito ou o comunista Diógenes Arruda Câmara. Magalhães não pensa agora em se embrenhar neles. Mas não estranharia se seu livro levasse a muitos outros.

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