Cultura

Camila Garófalo: “As mulheres ainda são muito subestimadas na música”

Uma das idealizadoras do Festival Sêla, cantora e compositora paulista cria aliança de mulheres contra o machismo no meio musical

'Quando falo que sou compositora, os homens duvidam', critica Camila Garófalo, uma das organizadoras do Sêla
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Uma aliança entre mulheres no meio musical – é assim que a cantora e compositora Camila Garófalo, 27 anos, define o Sêla. A congregação feminina começou com compartilhamento de experiências, passou pela produção de um clipe e despontou no festival Sêla, realizado de 1 a 5 de fevereiro na capital paulistana.

O festival reúne uma dezena de shows, dj sets e rodas de conversa, todos eles protagonizados e produzidos por mulheres. Entre as principais atrações, estão a cantora Tiê, As Bahias e a Cozinha Mineira, Tássia Reis e Luana Hansen. 

Além da compositora, a Sêla reúne colaboradoras como as publicitárias Laíza Negrão e Fernanda Malaco, as produtoras culturais Marina Coelho e Cris Rangel, a jornalista Flora Miguel, a produtora musical Érica e a designer Fernanda Martinez. 

A ideia, conta Camila, era tirar a mulher do pedestal de musa e mostrar que elas também são instrumentistas, compositoras, iluminadoras e técnicas de som. “Somos subestimadas e questionadas a todo momento”, critica a compositora, que abrirá o show da banda As Bahias e a Cozinha Mineira no sábado 4. 

CartaCapital Como você definiria a Sêla? A ideia é ser um selo musical?

Camila Garófalo: Temos essa pretensão, mas ainda não temos a estrutura. Estamos nos colocando como uma aliança entre mulheres da música. O festival é apenas uma das ações coletivas que queremos realizar ao longo do ano.

CC: Você conta que a Sêla começou com o seu clipe, Camarim. Pode explicar melhor como aconteceu?

CG: Na verdade foi um movimento que se formou naturalmente. Eu sempre fui muito rodeada por mulheres. Quando eu mudei para São Paulo e assumi a carreira artística, comecei a perceber que, naturalmente, as mulheres da música se aproximavam de mim. Ou queriam saber como vender um show, como emplacar numa revista etc. Comecei a dar essa consultoria amiga, pois sou comunicadora de formação. Elas começaram a se aproximar em todos os âmbitos, até para compartilhar opressões no meio musical.

Daí convidei as meninas para participarem do meu clipe Camarim, cinco cantoras do mercado independente: Nina Oliveira, Luisa Lian, Tika, a Laia e a Lara e os Ultraleves. Como o clipe teve uma boa repercussão, percebi que essa demanda existia. E também comecei a questionar se a mulher sempre compete com mulher. Será mesmo?

Este é o primeiro festival que produzo, mas estávamos certas na ideia de que as mulheres, juntas, se fortalecem. Tanto é verdade que o evento está muito bem frequentado. Os ingressos estão vendendo bem, a mídia nos procurou muito. Não imaginava que seria esse barulho todo.

CC: Em um meio musical ainda tão machista, você, além de formar bandas e tocar frequentemente com outras mulheres, optou por organizar um festival só com elas. Qual é a importância desse gesto?

CG: A mulher, na música, é muito colocada como diva, linda, musa. Parece que esse é o único lugar possível para nós no meio musical. As cantoras sempre são muito sexualizadas e a gente se esquece da importância que é ter mulheres instrumentistas, por exemplo.

Isso começou a me incomodar. Eu sustentava um discurso e só tinha homens na banda. Eu tenho hoje uma baterista mulher, a Nath Calan, que provou que mulher toca muito, ela é melhor que todos os bateristas que já passaram pela minha banda. Outro exemplo é a Anna Tréa, ela toca demais.

A importância de estarmos juntas é de reforçar que temos também outros lugares na música. Nós também tocamos instrumentos, tocam os bastidores, organizam a iluminação, as técnicas de som, as mulheres são capazes de atuar em todas as áreas da música. A importância de levar isso pra frente é, além de atribuir o protagonismo da música para a mulher, é provar todos esses outros talentos delas na música.

CC: De que maneira o machismo se expressa no meio musical? Você pode contar alguns casos?

CG: O próprio festival é um exemplo. Muita gente me pergunta: vocês fizeram sozinhas, ninguém ajudou? Mas tem diversos exemplos, a Labaq, cantora, fala que sempre que ela vai plugar a guitarra, algum cara pergunta se ela precisa de ajuda. Mas a gente tá ligada no que precisa fazer.

Eu passo por isso todo dia. Quando eu falo que sou compositora, por exemplo, os caras duvidam. Quando eu toco minha música, eles se espantam que ela é boa. Nós somos subestimadas e questionadas quanto a nossa capacidade o tempo todo.

Existe uma cultura na qual parece que as cantoras ficam reféns do produtor musical. Um exemplo claríssimo é o abuso de poder dos produtores para com as cantoras, produtores que se acham pais, maridos delas. Já chegaram para mim e disseram: não gosto que ela beba na noite, eles querem controlar tudo em relação às cantoras, como se elas fossem propriedade deles.

CC: Quando o cantor é homem o comportamento é o mesmo?

CG: É diferente. Um exemplo muito claro: uma mulher dá uma sugestão musical e o cara nem escuta direito. A gente precisa gritar para ser ouvida e, às vezes, nem quando fazemos isso conseguimos. Somos muito subestimadas, musicalmente, inclusive. A cantora sabe o que ela quer, mas muitas vezes ficamos reféns de homens que acham que sabem o que é melhor para a gente. Só que ninguém sabe melhor do que nós.

CC: Nos últimos anos, o feminismo tem sido mais difundido e discutido no Brasil. Desde 2013, tornaram-se frequentes marchas, grupos de discussões e outros movimentos protagonizados por mulheres. Na sua opinião, iniciativas como a Sêla fazem parte desse momento feminista?

CG: É um reflexo natural. Eu só posso falar sobre os assuntos que eu tenho autonomia. Não posso lutar pelo movimento negro ou trans, porque eu não sou trans e nem negra. Mas posso lutar pelo feminismo. Sou lésbica e posso lutar pelo LGBT. É um reflexo do que estamos vivendo.

Inclusive, a primeira presidenta mulher foi impedida de governar. Isso, pessoalmente, teve um impacto muito grande na minha vida. Porque parece que as coisas que conquistamos não estão garantidas, precisamos conquistá-las de novo, todos os dias, não só uma vez. Além de conquistar, é preciso manter.

CC: Quando o feminismo entrou na sua vida?

CG: Desde criança o feminismo atua na nossa cabeça, mas não temos essa noção. A minha mãe queria me colocar vestido e eu não gostava e batia de frente, questionava. Já começou aí. Mesmo não sendo consciente, a contestação de não querer se enquadrar já é uma militância. Mas só começou a realmente ficar claro, pensar “isso é feminismo”, essa é a arma de combate contra esse preconceito, não é muito antigo, Acho que de uns três anos para cá comecei a entender que existia um movimento e ele tinha nome.

CC: Líder da banda Bikini Kill, a Kathleen Hannah costumava chamar todas as mulheres para a frente do palco. No início dos anos 90 isso era uma coisa revolucionária. As mulheres hoje tem mais espaço no palco e na plateia?

CG: Eu acho que, se elas tem mais espaço, é porque nós estamos brigando por ele. Muitas vezes tem espaço, mas só são aceitas como divas, quando são sexualizadas. É claro que estamos melhor do que ontem, mas ainda estamos muito longe de chegar onde queremos. Estamos muito distantes do mundo ideal, com igualdade.

A Sêla não quer excluir os homens, por exemplo. Muitos me perguntam o que podem fazer para ajudar o movimento feminista e eu digo: fica quieto, é tão simples. Eles têm poder de voz e decisão em todas as causas. Por que precisam fazer parte de todos? Eles não suportam não ter um poder de voz, querem dar sempre a última palavra.

Nós aceitamos homens. O festival não está sendo produzido por homens, mas vários parceiros estão ajudando, apoiando, só que estão à margem, esse é o lugar deles nesse movimento. Eles precisam conceder o nosso protagonismo. É a maior arma que eles têm para lutar do nosso lado.

 Festival Sêla – Dias 3, 4 e 5 de fevereiro no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, às 19h. Ingressos a R$15

Sexta (3)
Tássia Reis, com show de abertura de LaBaq + Marina Melo + Mel Duarte

Sábado (4)
As Bahias e a Cozinha Mineira, com show de abertura de Sara não tem nome + Camila Garófalo

Domingo (5)
Tiê, com show de abertura de Natália Matos + Sandyalê

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