Cultura

Bob Dylan, o aedo moderno

Alvo de críticas, o prêmio concedido ao músico é justificado pela Academia Sueca a partir da tradição dos poetas-cantadores gregos

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Em geral bem recebido por músicos e fãs, o prêmio Nobel de Literatura entregue ao compositor Bob Dylan nesta quinta-feira 13 causou certo incômodo entre romancistas e escritores “de ofício”.”Se Dylan pode ganhar o Nobel de Literatura, então acho que Stephen King deveria ser eleito para o Hall da Fama do Rock and Roll”, ironizou o autor norte-americano Jason Pinter em seu perfil no Twitter. “Esse é o Nobel mais sem graça desde que Barack Obama foi premiado por não ser o George W. Bush”, atacou o romancista britânico-indiano Hari Kunzru.

Não é a primeira vez, e provavelmente não será a última, que Bob Dylan se envolve em uma polêmica relacionada a tradições culturais. Ao deixar de lado o violão de aço para empunhar uma guitarra elétrica em meados dos anos 1960, Dylan passou a conviver com vaias e incomodou Joan Baez, Peter Seeger e outros nomes do folk ao se apresentar acompanhado de um conjunto de blues elétrico.

À época, havia nos circuitos intelectuais uma enorme resistência a instrumentos elétricos e o rock, visto por muitos como uma manifestação adolescente sem conteúdo. No Brasil, Elis Regina liderou a criação da “Frente Única da MPB” e organizou uma passeata contra o imperialismo cultural norte-americano, simbolizado na guitarra elétrica.

Se Caetano Veloso e Gilberto Gil sofriam preconceito por abraçar o instrumento no início do movimento Tropicalista, Dylan desafiou da mesma maneira os gostos da intelligentsia universitária e pagou um preço alto por isso. Em uma turnê no Reino Unido em 1966, chegou a ser chamado de “Judas” por um fã de seu repertório tradicional. 

O incômodo de escritores de ofício com o prêmio não é de todo injustificável. Grandes autores norte-americanos como Thomas Pynchon e Phillip Roth não foram laureados pela Academia Sueca. Contudo, a ironia de Pinter ao comparar o prêmio de Dylan a uma nomeação do escritor Stephen King para o Hall da Fama do Rock demonstra certo desapreço à própria origem da tradição literária ocidental.

Ao explicar a premiação de Dylan, Sara Danius, secretária da Academia Sueca, comparou o compositor aos poetas William Blake e Arthur Rimbaud e celebrou a importância do músico não apenas por sua contribuição à grande tradição cultural, mas também à pequena tradição, termo utilizado para definir manifestações artísticas de origem popular, caso do folk e do blues do Delta do Mississipi.

Em uma interessante comparação, a secretária lembrou a tradição dos poetas gregos. “Eles escreveram textos poéticos para serem apresentados em público, e com Dylan é a mesma coisa. Ainda lemos Homero e Safo, e gostamos até hoje.”

As obras de Homero Ilíada e Odisseia prestam tributo não apenas à cultura oral, mas musical. Em Ofício de Homero, o historiador francês Jean Pierre Vernant busca compreender os textos homéricos a partir da tradição dos aedos, poetas-cantadores que declamavam seus versos para o público acompanhados da fórminx, uma versão rudimentar da cítara na Grécia Antiga.

Em uma passagem de seu livro, Vernant destaca a centralidade do canto na cultura grega. “Esses poderes do canto, para se tornarem legítimos e efetivos, não podiam ser vistos como uma capacidade banal, acessível a qualquer um dos mortais. É preciso investir os poetas de um valor específico para que o canto possa se manifestar diante deles com a autenticidade e sacralidade que lhe são próprias.”

Tratar Dylan apenas como músico pop, cantor folk ou roqueiro e excluí-lo do hall dos poetas é rejeitar as bases da tradição literária ocidental, seja ela acadêmica ou popular. Na canção The Ballad of a Thin Man, Dylan, sempre arguto, já mostrava seu incômodo com o nariz empinado de seus contemporâneos. “Você já passou por todos os livros de Scott Fitzgerald, você é um bom leitor, isso é bem sabido.”

Curiosamente, Fitzgerald jamais levou o prêmio que Dylan agora possui.  

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