Cultura
Apagou-se a chama: Leonard Cohen morre aos 82 anos
Assim como David Bowie, o compositor canadense despede-se em 2016 com um álbum-testamento que dá sentido à sua discografia e trajetória
Lançado há menos de um mês, o álbum do poeta e compositor canadense Leonard Cohen, You want it darker, é o segundo testamento musical legado por artistas atemporais em 2016.
David Bowie se foi dez dias após o início deste ano, deixando para trás Blackstar, lançado 48 horas antes de sua morte. A faixa Lazarus, carro-chefe do disco, trazia mensagens que se esclareceram em um curto espaço de tempo, como o verso de abertura “Look up here, I’m in heaven (Olhe aqui para cima, estou no paraíso)”.
Morto aos 82 anos na noite desta quinta-feira 10, Cohen sentenciou na canção que dá título ao novo álbum: “você(s) quer(em) mais escuridão, apagamos a chama”. É a despedida sem rodeios de um gênio desiludido, que anuncia seu incômodo com quem dá as cartas e se ergue como curandeiro em um mundo dividido.
Em sua última entrevista, para a revista The New Yorker, Cohen revelou que estava “pronto para morrer”. O adeus definitivo veio num momento obscuro, um dia após a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.
A polêmica em torno do nobel de literatura entregue a Bob Dylan, poeta ou apenas músico, é irrelevante no caso de Cohen. Dono de um refinamento métrico e um estilo que flutua entre os versos politizados de Bertolt Brecht e a liberdade romântica de Federico García Lorca, ele surgiu como escritor de ofício. Entre 1956 e 1966, lançou quatro coletâneas de poemas e dois romances.
Desde jovem, dominava o violão de aço, mas mudou para o nylon após algumas lições de um guitarrista de flamenco. A melodia logo tornou-se o canal predileto para seus versos. Foi de um poema que surgiu a belíssima Suzanne, gravada pela cantora norte-americana Judy Collins em 1966. No ano seguinte, Cohen lançaria seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, repleto de hinos como The Stranger Song, Sisters of Mercy e So Long, Marianne, essa última uma das três canções compostas para sua musa, a norueguesa Marianne Ihlen, antiga namorada que morreu de câncer.
Cohen flanava por temas e estilos com naturalidade. Era capaz de escrever versos simples, quase panfletários, como “há uma guerra entre ricos e pobres, há uma guerra entre homens e mulheres”, e construir alter egos complexos como “Field Commander Cohen”, um espião que aconselha Fidel Castro a deixar “campos e castelos” após a Revolução Cubana.
Em Leaving the Table, uma das faixas de seu último álbum, Cohen anuncia que está deixando a mesa e está fora do jogo, sem deixar de demonstrar certo pessimismo com o mundo que abandona. “Estamos gastando o tesouro que o amor não pode bancar”. Na última canção do disco, escreve sobre o desejo de um novo pacto: “estamos no limite”. São impressões maduras sobre a morte e a decadência, pinceladas com a elegância de seu estilo.
Ao longo da história da música popular, os fãs acostumaram-se a receber mensagens do além. Discos póstumos, como o recém-lançado álbum Sabotage, do rapper paulistano assassinado em 2003, podem ser o perfeito equilíbrio entre os últimos registros brutos de um artista e o esforço nostálgico de produtores e músicos em “recriar”, a partir da memória e da empatia, uma obra inacabada.
São discos que costumam surgir em resposta a mortes inesperadas, caso de Sketches For My Sweetheart the Drunk, lançado após o afogamento fatal do brilhante Jeff Buckley. O cantor norte-americano foi, por sinal, responsável por uma das mais inspiradas versões de Hallelujah, grande sucesso de Cohen.
Nos álbuns-testamentos de Bowie e Cohen, temos tempo para uma última despedida e para a impressão final dos artistas sobre o mundo em que vivemos. Em You want it darker, o canadense narra o apagar das luzes de forma melancólica, mas há espaço para uma última fagulha. O amor, seu tema eterno, é a garantia de que a chama continuará a arder em um mundo tomado pela escuridão.
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