Cultura

A volta ao mundo até a esquina

O filme ‘360’, de Fernando Meirelles, mostra que nesta vida tudo é acaso e nada é aleatório; nada é determinante, e tudo pode ser decisivo

O personagem de Anthony Hopkins em '360' dá a sensação de que já o vimos em algum lugar. Fotos: Divulgação
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Meu avô passou os últimos 14 anos de sua vida num auto-exílio praticamente absoluto. Desde que minha vó morreu, em agosto de 1998, trancou-se em si mesmo na mesma e única casa do mesmo bairro da mesma cidade em que sempre viveu. Quando o visitava, percebia que pouco naquela casa havia mudado desde nossa infância: os móveis, a velha vitrola, os quadros do casamento dos filhos na parede, a coleção de chaveiros, o filtro de barro, as orações que se acumulavam e envelheciam num velho suporte de ferro. A rotina era um circulo perfeito: nenhum empregado dentro de casa, as funções domésticas diárias, as mesmas roupas, o mesmo chinelo, os mesmos programas da tevê no fim da tarde, a missa com o mesmo padre da mesma igreja no mesmo horário de todos os sábados. À saída, pegava o mesmo lanche, do mesmo sabor, no mesmo supermercado. E voltava para casa no mesmo horário.

Nos nossos encontros, quase sempre em nossos aniversários, se apresentava sempre com o mesmo rosto. Desejava sempre as mesmas felicidades. E depositava sempre em nossos bolsos uma nota de cinqüenta – no Natal, a nota vinha dentro de uma caixa de bombom, que sempre encaixava misteriosamente sem violar o lacre, e distribuía igualmente para cada um dos seus oito netos, alguns ainda crianças, outros já na casa dos 30.

Quando morreu, em junho deste ano, fui invadido por uma admiração até então inédita sobre a dignidade daquela espiral em que vivia. Me perguntava se, em algum momento da rotina de sempre, ele tivera a chance de furar a bolha e sair pela tangente, respirar outros ares, conhecer novas gentes, beber em outros cálices. Teria, em algum daqueles sábados, pelo menos a curiosidade de saber como era tomar uma rua diferente, em horário diferente, e seguir para uma igreja diferente? Com a idade, pensava (ainda sem entender), talvez ele tivesse percebido que, como diz certa música, existem de fato muitas portas diferentes para caminhos aparentemente muito diferentes; mas elas darão sempre nos mesmos lugares.

Porque a vida é um circulo, e não um gráfico, concluí na terça-feira 11, assim que deixei o cinema onde acabava de assistir 360, de Fernando Meirelles. Inspirado numa peça de Arthur Schnitzler, o filme acabava de me apresentar uma profusão de personagens aparentemente de forma aleatória em lugares diferentes, como Viena, Londres, Paris, Denver. Todos pareciam dispostos a provar que o mundo é um ovo, e não um Planeta (um mesmo ovo que coloca os atores ‘nossos’ Maria Flor e Juliano Cazarré  na mesma cena dos globais Jude Law, Rachel Weisz e Anthony Hopkins). Parecia um dejavu, uma versão possível sobre a globalização inspiradora de trabalhos como os de Alejandro González Iñarritu e os seus Amores Perros, Babel e 21 Gramas. Mas, longe da tensão pungente que precede tragédias universais, 360 mostra vidas ordinárias, encontros fortuitos, sortes e acasos a que qualquer um, em qualquer tempo e em qualquer lugar, parece exposto. Com um pouco de esforço, consegui ver ali muitos personagens com quem esbarro todos os dias. E vi ali a sorte minha, de meu avô e de tantos personagens de todos os dias. Explico. Logo na cena inicial, uma das personagens lança um questionamento que vai pautar a trama: “O sábio diz: ‘diante de uma bifurcação, escolha um caminho’. Mas qual?”.

Não por coincidência, o filme mostra aos poucos que tudo é acaso e nada é aleatório; nada é determinante, e tudo pode ser decisivo. Na segundo década dos anos 2000, aparentemente tão distantes da juventude de meu avô, cada esquina parece não uma bifurcação, mas uma rotatória em forma de medusa. Cada cacho parece apontar setas para todos os lados. Num mesmo dia é possível acordar no interior paulista, dormir num hotel em Phoenix e contatar pessoas de todos os tipos de todos os lugares numa velocidade a fazer rir qualquer projeção de futuro desenhada um século atrás. O pano de fundo é outro, mas o circulo não. E se há um exercício universal de pensamento é o de imaginar o que seria do mundo, o nosso e o da nossa volta, se não fosse o detalhe – os EUA teriam entrado na Segunda Guerra se não fosse Pearl Harbor? Teria a humanidade se convertido se Cristo tivesse deixado o Pai de lado para fugir e morrer em paz? Quando foi que tudo mudou ou deixou de mudar? Teria tudo mudado de qualquer jeito?

O detalhe é a pedra no caminho que, intacta, deixa o caminho em segundo plano. A pedra não é nunca uma pedra em si: é uma pedra envolta numa somatória, um acúmulo de experiências, traumas, desejos, mágoas e velhas obsessões que impede a sua transposição ou não. É, portanto, só o pretexto – e iguais a ela existem muitas, seja na macro ou nas micro-histórias.

No filme de Mirelles, essa tensão parece diluída. Não que o detalhe seja apenas um acessório; ele apenas não é único. A escolha está tomada antes de seu anúncio; errar ou não é só questão de oportunidade: as chances estão paradas em algum lugar, e nosso ritmo cíclico nos leva a topar com elas a todo instante, a cada volta. Todos ali têm ao menos uma chance de rever uma decisão ou vocação que seja: a garota ambiciosa que vê na prostituição a chance de dar um salto na vida; os amantes que colocam em risco a religião, o casamento, a profissão ou o sonho; o criminoso que tem a chance reincidir no crime; o pai que segue sempre os mesmos caminhos em busca da filha desaparecida, e topa com versões dela a todo instante (porque é pai, e não o deixa de ser diante de uma ausência).

Em todas as histórias há uma repetição multiplicada de pequenos erros e acertos aparentemente fadados a dar nos mesmos lugares, como nos contos de Dalton Trevisan, que leva as mesmas Marias e mesmos Joãos aos mesmos vícios, sejam eles violões ou mocinhos, cuidadosos ou não.

Porque somos imutáveis? Nem de longe. Da mesma forma em que as chances se repetem conforme roda o mundo, os personagens têm diante do espectador ao menos uma chance de se mostrar diferentes do que foram apresentados na primeira volta. A proximidade da câmera é a mesma, o que muda são os olhos. O cafajeste dentro de casa pode ser um sujeito extraordinário dentro do carro; mudou ele ou mudou o espectador?

Não há personagem ali que não enxergue brechas para furar a fresta de uma bolha e sair pela tangente. Todos parecem fatigados das mesmas rotinas, das mesmas escolhas, das mesmas pessoas que se esgotam, e se cansam. Mal sabem que, se tudo fosse diferente, tudo seria exatamente igual – talvez com outras cores, outros idiomas, outros sorrisos. Mas igual. O que atrai nas novas personagens que se apresentam é exatamente o que atraía nos velhos parceiros agora envoltos por camadas de tempo, cansaço e convivência. Somos um e somos muitos, parece dizer a câmera, e tudo depende do ponto por onde se olha.

Esse deslocamento de câmera me fez pensar em meu vô numa posição diferente: uma câmera voltada a mim, que também me repito numa velha espiral dos mesmos assuntos. Só os lugares (e os sonhos) mudaram entre a minha geração e a dele. Na era da razão, a palavra de ordem é sempre “evoluir”, como se as gerações seguintes tivessem a missão de terminar um gráfico sempre ascendente. Por isso não entendemos as crises, as guerras, as ondas moralizantes, a estupidez, tão muitas e tão as mesmas de tempos remotos.

“Só não mudei o lado da calçada porque não quis”, diria o meu vô, mãos nos meus ombros, ao fim do filme. As bifurcações são muitas, explicaria ele, mas o circulo é o mesmo. E só um olhar atento pode deduzir o quanto falta de coragem ou covardia, loucura ou lucidez, para mudar ou seguir no mesmo lugar. Porque, estivesse onde estivesse, nada seria diferente. A não ser os olhos.

 

Meu avô passou os últimos 14 anos de sua vida num auto-exílio praticamente absoluto. Desde que minha vó morreu, em agosto de 1998, trancou-se em si mesmo na mesma e única casa do mesmo bairro da mesma cidade em que sempre viveu. Quando o visitava, percebia que pouco naquela casa havia mudado desde nossa infância: os móveis, a velha vitrola, os quadros do casamento dos filhos na parede, a coleção de chaveiros, o filtro de barro, as orações que se acumulavam e envelheciam num velho suporte de ferro. A rotina era um circulo perfeito: nenhum empregado dentro de casa, as funções domésticas diárias, as mesmas roupas, o mesmo chinelo, os mesmos programas da tevê no fim da tarde, a missa com o mesmo padre da mesma igreja no mesmo horário de todos os sábados. À saída, pegava o mesmo lanche, do mesmo sabor, no mesmo supermercado. E voltava para casa no mesmo horário.

Nos nossos encontros, quase sempre em nossos aniversários, se apresentava sempre com o mesmo rosto. Desejava sempre as mesmas felicidades. E depositava sempre em nossos bolsos uma nota de cinqüenta – no Natal, a nota vinha dentro de uma caixa de bombom, que sempre encaixava misteriosamente sem violar o lacre, e distribuía igualmente para cada um dos seus oito netos, alguns ainda crianças, outros já na casa dos 30.

Quando morreu, em junho deste ano, fui invadido por uma admiração até então inédita sobre a dignidade daquela espiral em que vivia. Me perguntava se, em algum momento da rotina de sempre, ele tivera a chance de furar a bolha e sair pela tangente, respirar outros ares, conhecer novas gentes, beber em outros cálices. Teria, em algum daqueles sábados, pelo menos a curiosidade de saber como era tomar uma rua diferente, em horário diferente, e seguir para uma igreja diferente? Com a idade, pensava (ainda sem entender), talvez ele tivesse percebido que, como diz certa música, existem de fato muitas portas diferentes para caminhos aparentemente muito diferentes; mas elas darão sempre nos mesmos lugares.

Porque a vida é um circulo, e não um gráfico, concluí na terça-feira 11, assim que deixei o cinema onde acabava de assistir 360, de Fernando Meirelles. Inspirado numa peça de Arthur Schnitzler, o filme acabava de me apresentar uma profusão de personagens aparentemente de forma aleatória em lugares diferentes, como Viena, Londres, Paris, Denver. Todos pareciam dispostos a provar que o mundo é um ovo, e não um Planeta (um mesmo ovo que coloca os atores ‘nossos’ Maria Flor e Juliano Cazarré  na mesma cena dos globais Jude Law, Rachel Weisz e Anthony Hopkins). Parecia um dejavu, uma versão possível sobre a globalização inspiradora de trabalhos como os de Alejandro González Iñarritu e os seus Amores Perros, Babel e 21 Gramas. Mas, longe da tensão pungente que precede tragédias universais, 360 mostra vidas ordinárias, encontros fortuitos, sortes e acasos a que qualquer um, em qualquer tempo e em qualquer lugar, parece exposto. Com um pouco de esforço, consegui ver ali muitos personagens com quem esbarro todos os dias. E vi ali a sorte minha, de meu avô e de tantos personagens de todos os dias. Explico. Logo na cena inicial, uma das personagens lança um questionamento que vai pautar a trama: “O sábio diz: ‘diante de uma bifurcação, escolha um caminho’. Mas qual?”.

Não por coincidência, o filme mostra aos poucos que tudo é acaso e nada é aleatório; nada é determinante, e tudo pode ser decisivo. Na segundo década dos anos 2000, aparentemente tão distantes da juventude de meu avô, cada esquina parece não uma bifurcação, mas uma rotatória em forma de medusa. Cada cacho parece apontar setas para todos os lados. Num mesmo dia é possível acordar no interior paulista, dormir num hotel em Phoenix e contatar pessoas de todos os tipos de todos os lugares numa velocidade a fazer rir qualquer projeção de futuro desenhada um século atrás. O pano de fundo é outro, mas o circulo não. E se há um exercício universal de pensamento é o de imaginar o que seria do mundo, o nosso e o da nossa volta, se não fosse o detalhe – os EUA teriam entrado na Segunda Guerra se não fosse Pearl Harbor? Teria a humanidade se convertido se Cristo tivesse deixado o Pai de lado para fugir e morrer em paz? Quando foi que tudo mudou ou deixou de mudar? Teria tudo mudado de qualquer jeito?

O detalhe é a pedra no caminho que, intacta, deixa o caminho em segundo plano. A pedra não é nunca uma pedra em si: é uma pedra envolta numa somatória, um acúmulo de experiências, traumas, desejos, mágoas e velhas obsessões que impede a sua transposição ou não. É, portanto, só o pretexto – e iguais a ela existem muitas, seja na macro ou nas micro-histórias.

No filme de Mirelles, essa tensão parece diluída. Não que o detalhe seja apenas um acessório; ele apenas não é único. A escolha está tomada antes de seu anúncio; errar ou não é só questão de oportunidade: as chances estão paradas em algum lugar, e nosso ritmo cíclico nos leva a topar com elas a todo instante, a cada volta. Todos ali têm ao menos uma chance de rever uma decisão ou vocação que seja: a garota ambiciosa que vê na prostituição a chance de dar um salto na vida; os amantes que colocam em risco a religião, o casamento, a profissão ou o sonho; o criminoso que tem a chance reincidir no crime; o pai que segue sempre os mesmos caminhos em busca da filha desaparecida, e topa com versões dela a todo instante (porque é pai, e não o deixa de ser diante de uma ausência).

Em todas as histórias há uma repetição multiplicada de pequenos erros e acertos aparentemente fadados a dar nos mesmos lugares, como nos contos de Dalton Trevisan, que leva as mesmas Marias e mesmos Joãos aos mesmos vícios, sejam eles violões ou mocinhos, cuidadosos ou não.

Porque somos imutáveis? Nem de longe. Da mesma forma em que as chances se repetem conforme roda o mundo, os personagens têm diante do espectador ao menos uma chance de se mostrar diferentes do que foram apresentados na primeira volta. A proximidade da câmera é a mesma, o que muda são os olhos. O cafajeste dentro de casa pode ser um sujeito extraordinário dentro do carro; mudou ele ou mudou o espectador?

Não há personagem ali que não enxergue brechas para furar a fresta de uma bolha e sair pela tangente. Todos parecem fatigados das mesmas rotinas, das mesmas escolhas, das mesmas pessoas que se esgotam, e se cansam. Mal sabem que, se tudo fosse diferente, tudo seria exatamente igual – talvez com outras cores, outros idiomas, outros sorrisos. Mas igual. O que atrai nas novas personagens que se apresentam é exatamente o que atraía nos velhos parceiros agora envoltos por camadas de tempo, cansaço e convivência. Somos um e somos muitos, parece dizer a câmera, e tudo depende do ponto por onde se olha.

Esse deslocamento de câmera me fez pensar em meu vô numa posição diferente: uma câmera voltada a mim, que também me repito numa velha espiral dos mesmos assuntos. Só os lugares (e os sonhos) mudaram entre a minha geração e a dele. Na era da razão, a palavra de ordem é sempre “evoluir”, como se as gerações seguintes tivessem a missão de terminar um gráfico sempre ascendente. Por isso não entendemos as crises, as guerras, as ondas moralizantes, a estupidez, tão muitas e tão as mesmas de tempos remotos.

“Só não mudei o lado da calçada porque não quis”, diria o meu vô, mãos nos meus ombros, ao fim do filme. As bifurcações são muitas, explicaria ele, mas o circulo é o mesmo. E só um olhar atento pode deduzir o quanto falta de coragem ou covardia, loucura ou lucidez, para mudar ou seguir no mesmo lugar. Porque, estivesse onde estivesse, nada seria diferente. A não ser os olhos.

 

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