Cultura

A música das baleias

Grandes compositores contemporâneos cantam os gigantes do mar. Talvez valesse ouvi-los em Punta Delgada

Golfo Nuevo. Esta cauda de baleia posou para fora d'água opr uma hora exata. Foto: Oliviero Pluviano
Apoie Siga-nos no

Por Oliviero Pluviano

Tenho alguma experiência com baleias. Avistei-as a bordo de um veleiro nos canais ao redor de Santa Lúcia, no Caribe, ao sobrevoar com um pequeno Cessna grupos de cachalotes na costa de Kaikoura, na Nova Zelândia, e orcas quase tocaram meu barco a caminho de Saint Kilda, a lendária ilha perdida a noroeste da Escócia. Esta cauda de baleia (na foto) ficou levantada e imóvel por quase uma hora, quando, de carro, após percorrer quilômetros de estradas de terra interrompidas por numerosas porteiras, cheguei ao litoral do Golfo de San José, a imensa baía deserta do outro lado do povoado de Golfo Nuevo, na Península de Valdés.

Esse promontório, que abre as portas da Patagônia argentina, é excepcional pela biodiversidade de espécies que abriga, principalmente no começo de novembro, quando para lá são atraídos elefantes e leões-marinhos, focas, pinguins e uma infinidade de baleias-francas, que nesses meses se reproduzem nas águas relativamente quentes e tranquilas das duas enseadas. Tudo aqui dista 70 quilômetros de algum lugar, como Puerto Pirámides (o terminal dos rápidos barcos que cuidam de nos levar até as baleias), da artéria principal que une Bahía Blanca a Trelew, ou até a fantástica pousada de Punta Delgada, um farol erguido no alto de um penhasco sobre o oceano Atlântico. Ali se tem a impressão de nunca conseguir chegar até o mar, percorrendo a perigosa estrada de cascalho (rípio) a pôr em risco mesmo os motoristas mais experientes. Setenta quilômetros adiante, seguindo para Punta Norte, é possível degustar um delicioso cordeiro patagônico na Estancia La Elvira diante da Caleta Valdés, o único lugar no mundo onde é possível assistir ao espetáculo aterrorizante e ao mesmo tempo hipnótico promovido pelas orcas, as baleias-assassinas, que se atiram à praia para atacar os filhotes de leão-marinho, sua presa favorita. O CD Marinai, Profeti e Balene (Marinheiros, Profetas e Baleias) canta histórias de cetáceos e, segundo alguns, é o mais belo da música italiana mais recente. Foi composto e interpretado por Vinicio Capossela, de origem italiana como muitos aqui no Brasil, nascido há 47 anos em Hannover, na Alemanha, de pais originários da região de Nápoles.

“Uma obra de uma beleza épica e inalcançável’’, um de seus fãs define esse álbum duplo que é um verdadeiro poema musicado, com histórias tiradas do Moby Dick de Melville, com cantos de sereias, polvos apaixonados e ciclopes bêbados. Ouçam no YouTube Il Grande Leviatano, com seus coros enfeitiçados que lembram a música sacra. Ou L’Oceano Ollalà, que combina sonoridades gaélicas com ritmos despreocupados de tarantela. Mas, sinceramente, compartilho a opinião de David Byrne, vocalista da banda Talking Heads, guru da música de vanguarda, de que o melhor LP italiano (ou até “mundial”) dos últimos 50 anos continua sendo Creuza de Ma (1984), Beco de Mar em genovês, o dialeto intraduzível em que são escritas muitas letras, de Fabrizio De Andrè.

Às baleias de Capossela prefiro o Vox Balaenae, do compositor americano de música contemporânea George Crumb, hoje com 82 anos, que reproduz os envolventes sons subaquáticos dos grandes mamíferos marinhos com flautas irreconhecíveis e emite gritos de gaivotas com o violoncelo. Aqui no Brasil baleias são sinônimo do arquipélago de Abrolhos, no litoral da Bahia, que, de junho a novembro, abriga as baleias-jubarte. Mas poucos sabem que em Cabedelo, na prática o porto paraibano de João Pessoa, funcionou ininterruptamente, de 1911 a 1985, a sede da empresa baleeira japonesa Companhia de Pesca Norte do Brasil (Copesbra), responsável pelo massacre de 10 mil baleias-minke só nos seus últimos 20 anos de atividade. Quase como um sinal de luto pela matança desses gigantes inofensivos, toca-se há 20 anos o Bolero de Ravel na praia vizinha de Jacaré, onde o músico José Jurandy, em um barco balançado pelo Rio Paraíba, cala com o seu saxofone a multidão que diariamente assiste a esse show incomum no pôr do sol, vermelho como a água manchada do sangue de milharess de baleias.

Por Oliviero Pluviano

Tenho alguma experiência com baleias. Avistei-as a bordo de um veleiro nos canais ao redor de Santa Lúcia, no Caribe, ao sobrevoar com um pequeno Cessna grupos de cachalotes na costa de Kaikoura, na Nova Zelândia, e orcas quase tocaram meu barco a caminho de Saint Kilda, a lendária ilha perdida a noroeste da Escócia. Esta cauda de baleia (na foto) ficou levantada e imóvel por quase uma hora, quando, de carro, após percorrer quilômetros de estradas de terra interrompidas por numerosas porteiras, cheguei ao litoral do Golfo de San José, a imensa baía deserta do outro lado do povoado de Golfo Nuevo, na Península de Valdés.

Esse promontório, que abre as portas da Patagônia argentina, é excepcional pela biodiversidade de espécies que abriga, principalmente no começo de novembro, quando para lá são atraídos elefantes e leões-marinhos, focas, pinguins e uma infinidade de baleias-francas, que nesses meses se reproduzem nas águas relativamente quentes e tranquilas das duas enseadas. Tudo aqui dista 70 quilômetros de algum lugar, como Puerto Pirámides (o terminal dos rápidos barcos que cuidam de nos levar até as baleias), da artéria principal que une Bahía Blanca a Trelew, ou até a fantástica pousada de Punta Delgada, um farol erguido no alto de um penhasco sobre o oceano Atlântico. Ali se tem a impressão de nunca conseguir chegar até o mar, percorrendo a perigosa estrada de cascalho (rípio) a pôr em risco mesmo os motoristas mais experientes. Setenta quilômetros adiante, seguindo para Punta Norte, é possível degustar um delicioso cordeiro patagônico na Estancia La Elvira diante da Caleta Valdés, o único lugar no mundo onde é possível assistir ao espetáculo aterrorizante e ao mesmo tempo hipnótico promovido pelas orcas, as baleias-assassinas, que se atiram à praia para atacar os filhotes de leão-marinho, sua presa favorita. O CD Marinai, Profeti e Balene (Marinheiros, Profetas e Baleias) canta histórias de cetáceos e, segundo alguns, é o mais belo da música italiana mais recente. Foi composto e interpretado por Vinicio Capossela, de origem italiana como muitos aqui no Brasil, nascido há 47 anos em Hannover, na Alemanha, de pais originários da região de Nápoles.

“Uma obra de uma beleza épica e inalcançável’’, um de seus fãs define esse álbum duplo que é um verdadeiro poema musicado, com histórias tiradas do Moby Dick de Melville, com cantos de sereias, polvos apaixonados e ciclopes bêbados. Ouçam no YouTube Il Grande Leviatano, com seus coros enfeitiçados que lembram a música sacra. Ou L’Oceano Ollalà, que combina sonoridades gaélicas com ritmos despreocupados de tarantela. Mas, sinceramente, compartilho a opinião de David Byrne, vocalista da banda Talking Heads, guru da música de vanguarda, de que o melhor LP italiano (ou até “mundial”) dos últimos 50 anos continua sendo Creuza de Ma (1984), Beco de Mar em genovês, o dialeto intraduzível em que são escritas muitas letras, de Fabrizio De Andrè.

Às baleias de Capossela prefiro o Vox Balaenae, do compositor americano de música contemporânea George Crumb, hoje com 82 anos, que reproduz os envolventes sons subaquáticos dos grandes mamíferos marinhos com flautas irreconhecíveis e emite gritos de gaivotas com o violoncelo. Aqui no Brasil baleias são sinônimo do arquipélago de Abrolhos, no litoral da Bahia, que, de junho a novembro, abriga as baleias-jubarte. Mas poucos sabem que em Cabedelo, na prática o porto paraibano de João Pessoa, funcionou ininterruptamente, de 1911 a 1985, a sede da empresa baleeira japonesa Companhia de Pesca Norte do Brasil (Copesbra), responsável pelo massacre de 10 mil baleias-minke só nos seus últimos 20 anos de atividade. Quase como um sinal de luto pela matança desses gigantes inofensivos, toca-se há 20 anos o Bolero de Ravel na praia vizinha de Jacaré, onde o músico José Jurandy, em um barco balançado pelo Rio Paraíba, cala com o seu saxofone a multidão que diariamente assiste a esse show incomum no pôr do sol, vermelho como a água manchada do sangue de milharess de baleias.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo