Cultura

A menina e a vaca

Uma pequena história que aconteceu no pós-guerra

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Jackson Pollock jogava tintas pretas e marrons em telas gigantes em Nova York, provocando surpresa aos olhos dos críticos e fazendo uma pequena revolução nas artes plásticas.

Na mesma Nova York, o compositor húngaro Béla Bártok, autor do Microcosmos, morria de leucemia aos 64 anos. Mas o mundo estava com uma ideia fixa, só falava em guerra, no final da Segunda Grande Guerra Mundial.

Visto assim do alto, o Japão era fumaça e cinza. A bomba de Hiroshima ainda matava mais de cem pessoas por dia, enquanto aqui no Brasil vivia-se uma certa penúria e o medo estava permanentemente no ar, no rosto de cada um. Guerra era guerra.

Foi nesse clima que a menina nasceu. A menina era a minha irmã mais velha, a primeira de uma turma de cinco. O susto com Ângela Maria veio logo nos primeiros dias de vida dela, quando recusou o peito da minha mãe e começou a emagrecer a olhos vistos.

Meus pais correram com ela ao consultório do Doutor Navantino Alves, que a examinou dos pés à cabeça. Tirou a febre, olhou a garganta, os ouvidos, os olhos, segurou-a pelas mãozinhas e pesou. Minha mãe contou a ele que ela não aceitava o peito e quando experimentou dar mamadeira com leite de vaca, a reação foi a mesma, de ânsia e vômito.

Doutor Navantino Alves foi até a estante, buscou um grosso compêndio de pediatria, folheou várias páginas e chegou à conclusão que não havia um só remédio em toda a medicina que curasse a minha irmã daquela repulsa ao leite.

– Só tem uma solução para esse caso!

Doutor Navantino Alves olhou para o meu pai, para a minha mãe e disse:

– A pequena só pode tomar leite de uma única vaca, da mesma vaca sempre.

Ele explicou que, dessa maneira, ela não corria risco de ver, no seu estômago, bactérias de leites de vacas diferentes se digladiando e que ela se acostumaria com o mesmo leite.

Meu pai teve um estalo imediato. Lembrou da Escola Média de Agricultura da cidade de Florestal, encostada em Belo Horizonte, onde haviam muitas vacas e ele conhecia os diretores.

No mesmo dia, ele pegou um jipinho verde musgo movido a gasogênio porque gasolina não havia naquele setembro de 1945 e lá se foi pela estrada a fora rumo a Florestal.

Depois de muita conversa, conseguiu que um funcionário se ocupasse de tirar e separar, toda manhã, um balde de leite da mesma vaca pra sua primogênita.

Todo santo dia o meu pai pegava o caminho da Escola Média e ia buscar o tal leite da mesma vaca. A estrada era boa parte de terra e ele vinha balançando de lá até a minha casa. Quando chegava, minha mãe já estava com a chaleira preparada para ferver o leite antes que ele azedasse.

Como um milagre da medicina ou do Doutor Navantino Alves, minha irmã foi se adaptando ao mesmo leite e nunca mais teve ânsia ou vômito, apenas umas pequenas regurgitadas, próprias dos bebês.

Os dias foram passando e ela foi ficando cada vez mais risonha, mais gordinha, mais bonitinha com seus olhos verdes que todo mundo arreparava.

Durou quase um ano inteiro, essa maratona do meu pai ir da minha casa até Florestal buscar o leite da Mimosa. Só acabou quando minha mãe começou a preparar papinhas pra minha irmã – já com dois dentinhos – feitas com mandioquinha, cenoura, chuchu, batata e beterraba. Além de maçã raspada e banana amassada.

Sempre que contava essa história, o meu pai dizia que de tanto ele ir a Florestal, acabou pegando brucelose, uma doença que só dá em gado. Brincava que chegou a mugir um dia, mugir como a Mimosa, aquela vaca que dava o leite pra pequena Ângela Maria.

Meu pai gostava de contar e aumentar histórias. Dizia também que, doente de brucelose, foi ao médico e o doutor disse que seu caso só poderia ser tratado com um veterinário.

Minha mãe retrucava, dizendo que a história do leite de uma vaca só era verdadeira, mas que essa história de brucelose e mugido era conversa fiada do meu pai, que sempre floreava as histórias.

Fico aqui imaginando se isso acontecesse no mundo em que vivemos hoje. Olho São Paulo pela janela do meu escritório e fico pensando com os meus botões, onde eu iria arranjar uma vaca nessa metrópole de vinte e cinco milhões de pessoas, nessa selva de pedras, no meio desse amontoado de automóveis e caminhões.

 

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