Cultura

A Maria Bethânia dos pampas

Há 30 anos, o gaúcho Antônio Falcão incorpora a cantora baiana

A Doce Bárbara. O atual show, um monólogo, mistura poesia, música e imitações não só de Bethânia. Foto: Arquivo Pessoal
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Por Maurício Macedo

Quase 3 mil quilômetros separam o Rio Grande do Sul e a Bahia. Distância superada facilmente quando Antônio Carlos Falcão entra em cena de vestido longo e cabelos compridos e rebeldes.Por mais da metade de seus 57 anos, o gaúcho tem assumido uma personalidade baiana. Nas noites dos pampas, Falcão vira Maria Bethânia. Devoto da filha mais famosa de Dona Canô, ele percebeu cedo as semelhanças no timbre de voz ao ouvir e cantar canções interpretadas pela musa. Imitar o gestual não foi difícil.

A primeira aparição pública, há mais de três décadas, deu-se no tradicional Bar Ocidente, ponto de encontro da juventude de Porto Alegre. Convidado por um grupo de dança, cantou Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi. A Abelha Rainha do Rio Grande conquistou o músico Nei Lisboa, que o convidou para interpretar Bethânia em shows pelo interior do estado. “Nei praticamente imortalizou meu personagem”, diz Falcão.

Da convivência restou a amizade e a admiração mútua. “Estive no palco com o Antônio Carlos um sem-número de vezes. Tive o prazer de contracenar ou admirá-lo na pele de muitos personagens, todos genialmente interpretados e hilariantes”, revela o músico, que lembra as aparições da Bethânia gaúcha de maneira peculiar. “Com ela, sempre e desde a primeira vez, algo de estranho e um tanto indefinível me acontece. Simplesmente não aceito que seja o Falcão. Posso tê-lo visto se preparando para o show, vestir-se, maquiar-se, ensaiar o texto. Não adianta. Quando aquela mulher sobe ao palco, é ela e mais ninguém que está ali. Não poucas vezes me assustei ao vê-la entrar em cena, tanto pela preocupação de receber bem convidada tão ilustre quanto por me perguntar por onde andaria o Falcão, que não aparecera.”

A transformação do artista já confundiu muita gente. Certa feita, em Alegrete, cidade famosa por preservar as tradições gaúchas, um gaudério de bombacha e tudo, enganado pela semelhança, permanecia boquiaberto, colado ao palco, de olhos vidrados. O resto da plateia, diante de tamanha devoção, começou a gritar: “sobe, sobe”. O gauchão “macho, tchê” estufou o peito e atendeu aos clamores. Prostrado diante do objeto de desejo, ouviu outro pedido dos espectadores: “Beija! Beija!”

“Ele me tascou um beijão daqueles na boca”, recorda Falcão. Para não despertar a ira do “gauchão de Alegrete”, que poderia estar armado, a Maria Bethânia gaúcha fugiu do palco antes que a farsa fosse revelada.

Para Nei Lisboa, o figurino, a peruca, a ribalta e a verve afiada podem até produzir um transformismo, mas só o canto, a interpretação, o encanto e o respeito pela personagem produzem magia. “Respeito, como todo o resto, que nunca faltou ao Falcão.”

Após tantos anos na estrada surgiu o monólogo musical A Doce Bárbara. A Bethânia de Falcão é uma gaúcha nascida em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Para pontuar as diferenças, a segunda canção executada pela banda (com violão, guitarra, baixo e bateria) vem do folclore platino, pois o artista nasceu em São Borja, divisa com a Argentina. Que dulce encanto tienen / Tus recuerdos Mercedita/Aromada, florecida/Amor mio de una vez são os versos iniciais de Mercedita, composição da década de 1940, do argentino Ramón Sixto Ríos.

A Maria Bethânia do monólogo deixou o Sul ainda criança para morar na baiana Santo Amaro da Purificação. “Meus pais e meu irmão Caetano foram montados num burrico. Eu fiz todo o trajeto a pé. Mamãe dizia: ‘Vamos adiante que a fé move montanhas’. E eu respondia, baixinho: ‘Mas deixa calo nos pés’”, narra Falcão, arrancando gargalhadas do público. E emenda: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada…”, dando início a Fé Cega, Faca Amolada, um dos sucessos do mineiro Milton Nascimento.

Ao pisar na Bahia e ver alguém bebericando água de coco de canudinho, vem à mente da Bethânia inventada a imagem da avó Bibiana, referência à obra O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, a tomar chimarrão. A fruta representa a cuia e o canudo, a bomba usada para sorver o mate. “Às vezes, a diferença não é tudo. Do chimarrão pro coco é só um canudo.”

Assim como a cantora original, que intercala música e poesia em seus shows, a personagem de Falcão segue o mesmo caminho. O óbvio tem a nudez que irrita, e eu não posso mudar a imagem, seu moço. Sou o que sou, magro, minguado e pouco. Em vez de chorar gordura, faço brilhar o osso, é um dos poemas de Celso Gut­freind recitado pelo artista.

A Bethânia gaúcha vai tentar a vida no Rio de Janeiro, onde encontra outro ícone da Música Popular Brasileira. Depois de cantar Baioque, revive a parceria com Chico Buarque, que lhe dá um Bom Conselho. É quando Falcão demonstra versatilidade e ataca com uma imitação impecável do cantor carioca.

Como se fosse dois em um, ainda apresenta um “dueto” na canção Tatuagem. Cada estrofe é interpretada em um estilo diferente, entre as vozes de Chico e Bethânia. Quero ficar no teu corpo / Feito tatuagem / Que é pra te dar coragem / Pra seguir viagem / Quando a noite vem / E também pra me perpetuar em tua escrava / Que você pega, esfrega, nega… mas não lava.

O clímax do show acontece quando Bethânia sofre uma transformação. Em uma toada de candomblé, incorpora “o seu lado masculino”. Ao imitar Ney Matogrosso, o versátil Falcão começa a cantar: Me diz que eu sou seu tipo / Me diz, neném, que eu acredito.

Há tempo ainda para recordar Vinicius de Moraes em Como Diz o Poeta. Antes de “mergulhar” para fora do palco, ele interpreta Trampolim, ao som de palmas da plateia, que, em coro, pede bis.

De vestido novo, Bethânia regressa e manda três clássicos em sequência. Negue, Fera Ferida e Não Dá Mais pra Segurar (Explode Coração) encerram o repertório de 16 canções. Ao fim do espetáculo, um só sentimento: mais do que uma homenagem a Maria Bethânia, o musical de Falcão é uma ode completa à MPB.

Por Maurício Macedo

Quase 3 mil quilômetros separam o Rio Grande do Sul e a Bahia. Distância superada facilmente quando Antônio Carlos Falcão entra em cena de vestido longo e cabelos compridos e rebeldes.Por mais da metade de seus 57 anos, o gaúcho tem assumido uma personalidade baiana. Nas noites dos pampas, Falcão vira Maria Bethânia. Devoto da filha mais famosa de Dona Canô, ele percebeu cedo as semelhanças no timbre de voz ao ouvir e cantar canções interpretadas pela musa. Imitar o gestual não foi difícil.

A primeira aparição pública, há mais de três décadas, deu-se no tradicional Bar Ocidente, ponto de encontro da juventude de Porto Alegre. Convidado por um grupo de dança, cantou Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi. A Abelha Rainha do Rio Grande conquistou o músico Nei Lisboa, que o convidou para interpretar Bethânia em shows pelo interior do estado. “Nei praticamente imortalizou meu personagem”, diz Falcão.

Da convivência restou a amizade e a admiração mútua. “Estive no palco com o Antônio Carlos um sem-número de vezes. Tive o prazer de contracenar ou admirá-lo na pele de muitos personagens, todos genialmente interpretados e hilariantes”, revela o músico, que lembra as aparições da Bethânia gaúcha de maneira peculiar. “Com ela, sempre e desde a primeira vez, algo de estranho e um tanto indefinível me acontece. Simplesmente não aceito que seja o Falcão. Posso tê-lo visto se preparando para o show, vestir-se, maquiar-se, ensaiar o texto. Não adianta. Quando aquela mulher sobe ao palco, é ela e mais ninguém que está ali. Não poucas vezes me assustei ao vê-la entrar em cena, tanto pela preocupação de receber bem convidada tão ilustre quanto por me perguntar por onde andaria o Falcão, que não aparecera.”

A transformação do artista já confundiu muita gente. Certa feita, em Alegrete, cidade famosa por preservar as tradições gaúchas, um gaudério de bombacha e tudo, enganado pela semelhança, permanecia boquiaberto, colado ao palco, de olhos vidrados. O resto da plateia, diante de tamanha devoção, começou a gritar: “sobe, sobe”. O gauchão “macho, tchê” estufou o peito e atendeu aos clamores. Prostrado diante do objeto de desejo, ouviu outro pedido dos espectadores: “Beija! Beija!”

“Ele me tascou um beijão daqueles na boca”, recorda Falcão. Para não despertar a ira do “gauchão de Alegrete”, que poderia estar armado, a Maria Bethânia gaúcha fugiu do palco antes que a farsa fosse revelada.

Para Nei Lisboa, o figurino, a peruca, a ribalta e a verve afiada podem até produzir um transformismo, mas só o canto, a interpretação, o encanto e o respeito pela personagem produzem magia. “Respeito, como todo o resto, que nunca faltou ao Falcão.”

Após tantos anos na estrada surgiu o monólogo musical A Doce Bárbara. A Bethânia de Falcão é uma gaúcha nascida em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Para pontuar as diferenças, a segunda canção executada pela banda (com violão, guitarra, baixo e bateria) vem do folclore platino, pois o artista nasceu em São Borja, divisa com a Argentina. Que dulce encanto tienen / Tus recuerdos Mercedita/Aromada, florecida/Amor mio de una vez são os versos iniciais de Mercedita, composição da década de 1940, do argentino Ramón Sixto Ríos.

A Maria Bethânia do monólogo deixou o Sul ainda criança para morar na baiana Santo Amaro da Purificação. “Meus pais e meu irmão Caetano foram montados num burrico. Eu fiz todo o trajeto a pé. Mamãe dizia: ‘Vamos adiante que a fé move montanhas’. E eu respondia, baixinho: ‘Mas deixa calo nos pés’”, narra Falcão, arrancando gargalhadas do público. E emenda: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada…”, dando início a Fé Cega, Faca Amolada, um dos sucessos do mineiro Milton Nascimento.

Ao pisar na Bahia e ver alguém bebericando água de coco de canudinho, vem à mente da Bethânia inventada a imagem da avó Bibiana, referência à obra O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, a tomar chimarrão. A fruta representa a cuia e o canudo, a bomba usada para sorver o mate. “Às vezes, a diferença não é tudo. Do chimarrão pro coco é só um canudo.”

Assim como a cantora original, que intercala música e poesia em seus shows, a personagem de Falcão segue o mesmo caminho. O óbvio tem a nudez que irrita, e eu não posso mudar a imagem, seu moço. Sou o que sou, magro, minguado e pouco. Em vez de chorar gordura, faço brilhar o osso, é um dos poemas de Celso Gut­freind recitado pelo artista.

A Bethânia gaúcha vai tentar a vida no Rio de Janeiro, onde encontra outro ícone da Música Popular Brasileira. Depois de cantar Baioque, revive a parceria com Chico Buarque, que lhe dá um Bom Conselho. É quando Falcão demonstra versatilidade e ataca com uma imitação impecável do cantor carioca.

Como se fosse dois em um, ainda apresenta um “dueto” na canção Tatuagem. Cada estrofe é interpretada em um estilo diferente, entre as vozes de Chico e Bethânia. Quero ficar no teu corpo / Feito tatuagem / Que é pra te dar coragem / Pra seguir viagem / Quando a noite vem / E também pra me perpetuar em tua escrava / Que você pega, esfrega, nega… mas não lava.

O clímax do show acontece quando Bethânia sofre uma transformação. Em uma toada de candomblé, incorpora “o seu lado masculino”. Ao imitar Ney Matogrosso, o versátil Falcão começa a cantar: Me diz que eu sou seu tipo / Me diz, neném, que eu acredito.

Há tempo ainda para recordar Vinicius de Moraes em Como Diz o Poeta. Antes de “mergulhar” para fora do palco, ele interpreta Trampolim, ao som de palmas da plateia, que, em coro, pede bis.

De vestido novo, Bethânia regressa e manda três clássicos em sequência. Negue, Fera Ferida e Não Dá Mais pra Segurar (Explode Coração) encerram o repertório de 16 canções. Ao fim do espetáculo, um só sentimento: mais do que uma homenagem a Maria Bethânia, o musical de Falcão é uma ode completa à MPB.

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