Cultura

A máquina voadora

Anotações em torno de uma escala forçada na capital do Senegal

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Pisei em terras africanas pela primeira vez, por acaso. Fiquei exatamente duas horas e seis minutos, cronometradas num enorme Omega no pulso esquerdo. Assustado, sonado, quase desmaiando de cansaço, passei a maior parte do tempo sentado num banco de madeira que cheirava forte, não sei se jacarandá ou jatobá. Escorregadio, ele me fazia adormecer torto e todo errado.

Apesar de já quase madrugada, lá fora fazia um calor de Saara e, aqui dentro, o tempo era fresco, como quase tudo é fresco nos ambientes chiques e fechados da África. Pelas janelas grandes de vidro do aeroporto Yoff-Léopold Sédar Senghor, de Dacar, via muitos aviões parados na pista, uns poucos com luzes acesas, outros taxiando silenciosos. Aviões da Kenya Airways, da Air Algérie, da Emirates Airlines, da Royal Air Maroc, bonitos e pomposos.

Depois de termos a rota Madri-Rio desviada, esperávamos ali sentados, o tempo que fosse necessário. Era preciso que o furacão passasse para que pudéssemos seguir caminho.

Duas horas e seis minutos foi o tempo necessário para que voltasse vinte e tantos anos na minha vida e me lembrasse das velas que minha mãe acendia todos os dias, num altar na minha casa, por volta de sete horas da noite. Principalmente nos dias em que o meu pai pegava o Constellation da Panair. Aquela luz amarelada e trêmula iluminava os santos no altar enquanto um Jesus de porcelana, com o coração exposto, olhava firmemente para ela, ao lado de novenas enfileiradas, cheias de respingos de velas.

Duas horas e seis minutos foi o tempo necessário para fechar os olhos, cochilar e sonhar com Maria Bethânia cantando Iansã comanda os ventos/E a força dos elementos/Na ponta do seu florim/É uma menina bonita/Quando o céu se precipita/Sempre o princípio e o fim.

O sonho acabou quando o serviço de alto falante do aeroporto quebrou o silêncio anunciando a última partida do dia, um voo da Air Ivoire, com destino a Abidjan.

Nós, passageiros da agonia, sobreviventes, continuávamos esperávamos o vento a favor mas o vento insistia em soprar em direção contrária. Aquele vento bravo, forte, que varria a pista do aeroporto e às vezes jogava um galho seco no vidro, fazendo um barulho seco, nos dava uma espécie de sobrevida.

Um sanduiche foi servido pouco antes de entrarmos naquele pássaro de prata, o nosso aeroplano. Pão preto com paté de azeitona e um suco de laranja amarga dentro de um copinho de plástico transparente.

De repente, me perguntei onde estávamos. Que país era aquele? Quem era o seu presidente? Qual era a sua renda per capita? E seu PIB? Que cores tinha sua bandeira? Qual seria a manchete do dia seguinte do Soleil?

Duas horas e seis minutos depois, negros altos, lábios grossos, olhos grandes e muito bonitos, todos vestidos de azul marinho, nos conduziram até a entrada do avião da Iberia.

Assim que sentei na poltrona 31F, me veio à cabeça uma velha canção que Ronnie Von cantava e eu ouvia numa rádio de Belo Horizonte que só tocava música brasileira: Quero todo universo sem fim/As alturas vou subir/Vejo o espaço acima de mim/E por ele vou sumir/Vou vagar em pleno ar/Vou voar/Vou voar.

Em poucos minutos estávamos novamente nas nuvens e com o vento favorável, nenhuma turbulência, nenhum furacão à vista. As velas da minha mãe, com certeza, ainda estavam acesas e ficaram acesas durante todo o tempo em que voávamos rumo ao nosso país, terra onde tudo que se planta cresce e floresce.

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