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Modelo para uma rede mais livre

O Marco Civil brasileiro impede intervenções contra a liberdade de expressão e a neutralidade da internet

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Diante do criador da internet, Tim Bernes-Lee, e de uma multidão de jornalistas, políticos, acadêmicos e ativistas de diferentes países, a presidenta Dilma Rousseff assinou a Lei 12.965, mais conhecida como Marco Civil da Internet. A legislação, construída ao longo de quatro anos, com participação significativa da população e de militantes da web, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da rede mundial no Brasil, além de determinar as regras para a atuação do Estado em relação ao assunto. É, na prática, uma espécie de Constituição da Internet.

Após quase três anos de discussão na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei foi desengavetado, no fim de 2013, em regime de urgência, na esteira do escândalo das espionagens realizadas pelo governo norte-americano em diversos países, incluindo o Brasil. Durante a sua tramitação, o projeto enfrentou resistência da oposição e de empresas do setor de telecomunicações e outros interessados na proteção de direitos autorais, como as emissoras de rádio e tevê.

O Marco foi aprovado entre os deputados em abril e, a pedido do Executivo, tramitou rapidamente pelo Senado e foi sancionado quase em tempo recorde pela presidenta no dia 23 de abril, durante o NETmundial – Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet, realizado em São Paulo. “A internet que queremos só é possível em um cenário de respeito aos direitos humanos, em particular a privacidade e a liberdade de expressão”, declarou Dilma.

Para Sérgio Amadeu, sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC, o Marco Civil é a lei da internet mais avançada do mundo. “Enquanto países fizeram legislações para criminalizar e controlar a internet, o Brasil elaborou uma lei para impedir que grandes corporações e o governo fizessem intervenções contra a liberdade de expressão e a neutralidade da rede. É uma lei que visa garantir que a internet continue livre”, analisa.

O caráter preventivo também foi elogiado por Demi Getschko, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br): “O Marco Civil é uma coleção de defesas da internet para protegê-la como ela é”, define.

A primeira inspiração para a construção do conjunto de normas para a web nasceu dentro do próprio CGI.br, em meados do ano 2000. Diante do crescimento do uso da rede em diversas instâncias no Brasil e de acontecimentos pontuais, como a suspensão do serviço de vídeos YouTube, devido a uma ação judicial movida pela apresentadora e modelo Daniela Cicarelli, decidiu-se elaborar o decálogo “Os princípios para a governança e o uso da internet”, publicado em 2009 no site do Comitê.

“Dado o cenário de disseminação da internet em todas as áreas do governo, do Legislativo e do Judiciário, ficou claro para o CGI que seria bom prover uma coleção de ideias básicas que mostrassem as características da internet e que isolassem uma característica que achamos muito boa e cidadã: a possibilidade de todo mundo falar, ouvir, se envolver no processo e participar do movimento na rede”, conta Demi Getschko.

Depois de um ano de discussões, o órgão – composto de 21 integrantes do governo, indústria, terceiro setor e academia – elaborou dez princípios básicos. Essa proposição inspirou outra iniciativa, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, que, em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, estabeleceu um processo aberto, colaborativo e inédito para a formulação de um marco civil brasileiro para uso da internet.

Durante a primeira fase do processo, foram registradas mais de 800 contribuições, entre propostas, comentários e mensagens de vários setores da sociedade. Quando o projeto de lei do Marco Civil foi apresentado à Câmara dos Deputados, em 2011, já contava com 2 mil participações do público. O processo de construção do Marco foi elogiado internacionalmente, por criar, de forma colaborativa, uma legislação que garante direitos, e não normas que restringem liberdades do usuário na rede.

Privacidade do usuário, neutralidade da rede, segurança e direito à liberdade de expressão são os principais pilares da lei brasileira para a internet. No caso da privacidade, o Marco Civil passa a limitar o uso que se possa fazer dos dados pessoais do usuário, tais como nome, endereço e telefone. Ele também determina que os provedores devem guardar sob sigilo os dados de navegação de comunicação do internauta. Esses dados só poderão ser acessados por meio de uma ordem judicial.

Na visão do relator do Projeto de Lei na Câmara, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), o Marco aumenta a proteção à privacidade. “Hoje, a nossa navegação vem sendo gravada, analisada e vendida com o marketing direcionado. O Marco Civil proíbe isso”, exemplifica. Além desse fato, a nova lei possibilita que o usuário encerre permanentemente seu perfil em redes sociais e peça a exclusão dos dados. “Hoje, os dados não são apagados, são apenas indisponibilizados pela rede. Com o Marco Civil, a gente ganha esse direito”, explica.

Por outro lado, a exigência da guarda dos registros de navegação dos usuários pelos provedores para fins investigativos – sintetizada no artigo 15 do Marco – foi um dos aspectos mais criticados da legislação. O artigo é visto como uma ameaça à liberdade na rede, por criar a obrigação de as empresas guardarem os dados por seis meses para fins investigativos. “É um absurdo do ponto de vista da privacidade”, reclama Sérgio Amadeu. O problema, na visão do sociólogo e ativista da internet, é impedir que as empresas guardem e cruzem esses dados. “No regulamento do Marco Civil teremos de ser duros contra o cruzamento desses dados entre as empresas.

O ideal seria que elas só os guardassem com o nosso consentimento. Infelizmente, esses grupos de deputados retrógrados, em vez de coibir que as empresas façam isso, obrigam que os dados sejam guardados”, critica. Amadeu defende ainda que a regulamentação do projeto se dê também de forma aberta e transparente, assim como ocorreu com o processo de criação do Marco.

O respeito à liberdade de expressão é outro pilar fundamental do Marco Civil da Internet. De acordo com o artigo 19, “o provedor somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.

Com isso, a lei estabelece que um conteúdo só deve ser retirado do ar após ordem judicial, e que o provedor não pode ser responsabilizado por conteúdo ofensivo postado em seu serviço pelos usuários. Casos de pedofilia, racismo ou violência, porém, não precisarão de ordem judicial para ser retirados do ar. O objetivo é evitar que esse tipo de conteúdo fique no ar enquanto aguarda uma decisão judicial, prejudicando as vítimas.

Já o princípio de neutralidade estabelece a igualdade da rede para todos, sem fazer diferença quanto ao tipo de uso. Dessa forma, quando um usuário compra um plano de internet, deve pagar apenas pela velocidade contratada – e não pelo tipo de página que vai acessar. Essa ideia enfrentou resistência das empresas de telecomunicações e dos provedores de internet, que afirmavam que a proposta acabaria por encarecer o acesso a todos. A versão final do Marco Civil, porém, estabelece que nenhuma empresa poderá criar barreiras para conteúdos movidas por qualquer interesse financeiro.

Assim, evitou-se a possibilidade de os provedores venderem o acesso à internet nos moldes dos planos de tevê por assinatura, em que se paga mais dependendo do conteúdo contratado. Para os defensores, a neutralidade impede que se crie uma exclusão social na internet, impedindo que os mais pobres utilizem os serviços mais caros. Para o deputado Alessandro Molon, esse foi o ponto – por mexer com interesses econômicos – mais polêmico e que suscitou mais resistência entre as empresas de telecomunicações durante o debate no Congresso. “Ao garantir a neutralidade, protegemos o direito do usuário de ter acesso pleno e integral à internet.”

O próximo desafio está na regulamentação dos princípios expressos no Marco Civil e na sua interpretação pelo Poder Judiciário. Para especialistas e militantes da rede, será preciso acompanhamento e vigilância de todos para que a Constituição da internet mantenha seus princípios.

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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