Disciplinas

Os rios sufocados de São Paulo

A história do abastecimento hídrico 
de São Paulo e sua relação com os rios da cidade

Água
Solvente universal água
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Anhangabaú, Tamanduateí, Tietê, Pinheiros, Pacaembu, Pirajussara, Mandaqui, Itororó, Itaquera são alguns dos rios e córregos canalizados ou escondidos debaixo do asfalto da cidade de São Paulo. Em outros tempos, nomeados pelas populações indígenas, compunham uma paisagem de rios de planície. Hoje, as novas gerações não sabem que eles ainda tentam brotar para fora da terra.

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da falta d’água

Historicamente, os rios, riachos e córregos sempre foram importantes para a comunicação entre os lugares e as vias de transporte de pessoas e mercadorias. Mas, no último meio século, descobriu-se que nos espaços urbanos as águas correntes representam faixas de ar e de vegetação importantes para a qualidade ambiental. Os rios sufocados pelo concreto representam prejuízos para o espaço citadino, dificultando o abastecimento de água e deteriorando a condição de vida da população.

[bs_row class=”row”][bs_col class=”col-xs-2″][/bs_col][bs_col class=”col-xs-10 azul”]Leia atividade didática de História inspirada neste texto
Competências: compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo interações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos
Habilidades: analisar interações sociais com o meio físico, considerando aspectos históricos e (ou) geográficos; Reconhecer a função dos recursos naturais na produção do espaço geográfico, relacionando-o com as ações humanas
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1) Os diferentes bairros da cidade de São Paulo possuem histórias específicas a respeito da implantação do sistema de abastecimento de água e de convívio da população com os rios e riachos da região. São boas situações escolares, assim, propor trabalhos para os alunos conhecerem melhor a realidade local e seus problemas urbanos. Neste caso, atividades podem ser orientadas para a identificação e avaliação dos fluxos de água do bairro; o diagnóstico das condições dos córregos; entrevistas com moradores para pesquisar como tiveram acesso à água ao longo da vida e quais relações já estabeleceram com os rios e córregos.

2) Outra atividade pode ser o debate de textos de historiadores e memorialistas. Ernani da Silva Bruno, por exemplo, conta sobre os protestos da população diante da destruição dos chafarizes, quando a Companhia Cantareiras começou a impor o fornecimento da água encanada para as casas em São Paulo, cobrando um pagamento pela água antes gratuitamente obtida nas fontes públicas. O autor expressa também sua indignação pela não preservação dos chafarizes, como um sintoma da falta de valorização da memória do passado da cidade.
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A ausência histórica de preocupação com a qualidade das águas dos rios de São Paulo, sempre recriminados por seus fluxos naturais de enchentes e margens lodosas, desencadeou decisões políticas de cerceamento, de canalização, de reversão de curso e de uso de suas trilhas para delinear ruas e avenidas no processo de alargamento do espaço urbano. Um ambiente repleto de riachos e córregos tornou-se um centro urbano sem água para uso da população, tendo ela de ser captada de bacia hidrográfica cada vez mais distante.

Do chafariz à água encanada

A cidade de São Paulo cresceu durante quase quatro séculos em cima de uma colina, cercada pelo Ribeirão Anhangabaú e pelo Rio Tamanduateí. A escolha do local remonta às populações indígenas que souberam escolher um sítio com fartura de água e de alimento, e uma visão privilegiada da planície do entorno.

Os portugueses assentaram seu acampamento ali se aproveitando dos conhecimentos indígenas. Aos poucos arranjaram o espaço para seu próprio uso: plantaram roças e dos rios obtinham a água para abastecer suas cacimbas. De vila, o povoado passou a cidade em 1711. Em 1766, nela viviam pouco mais de 1,5 mil pessoas.

Naquela época, a população ia captá-la nos rios e em fontes espalhadas pela cidade. Os chafarizes públicos só começaram em 1744, quando os franciscanos propuseram encaminhar as sobras de suas fontes para uso público. Desde então, foram abertas bicas e chafarizes para a população e, para abastecê-los, a municipalidade construiu, em 1746, um tanque no antigo morro do Caaguaçu, na altura do Paraíso.

Em 1791, o governador enviou à Câmara um ofício comunicando a necessidade de outro chafariz com água de boa qualidade para a população. No ano seguinte, foi erguido o do Largo da Misericórdia. Nele, por meio de quatro torneiras de bronze, jorrava a água do Rio Anhangabaú.

Poucos anos depois, diante da falta d’água na cidade, foram abertas mais duas novas bicas. Mas, mesmo assim, em 1806, por falta de chuva para alimentar os córregos que abasteciam as bicas, a cidade viveu outro período de escassez.

Em 1814, o governo de São Paulo mandou construir a estrada do Piques, para facilitar as comunicações entre a capital e o interior. Entre as obras edificou o chafariz do Piques (depois conhecido como chafariz do Largo da Memória), que recebia água do Tanque Reúno. Ele foi fotografado por Militão Augusto de Azevedo, em 1860.

Na década de 1870, São Paulo, já com cerca de 50 mil habitantes, era abastecida também por águas tiradas de poços abertos nas margens do Tamanduateí e do Lavapés, vendidas por aguadeiros, em pipas ambulantes, pelas ruas.

A mudança no abastecimento só começou a ocorrer em 1877, quando alguns capitalistas locais contrataram os serviços de ingleses e organizaram a Companhia Cantareiras, para abastecer a cidade de água e esgoto. Um ano depois, o governo associou-se ao empreendimento. De 1878 a 1881, a companhia realizou obras da primeira caixa d’água de abastecimento da cidade, no Alto da Consolação, abastecida por canos que, partindo das nascentes nas montanhas da Cantareira, ao norte da cidade, percorriam 14,5 quilômetros até o reservatório. Em 1883, o primeiro distrito da cidade passou a ser servido por esgotos (o bairro da Luz), quando 71 casas foram beneficiadas.

A nova caixa d’água mudou, por algum tempo, o cotidiano da população. Em 1882, chafarizes há muito tempo secos passaram a jorrar água, permitindo que os paulistas pudessem lavar as ruas diariamente e apagar seus incêndios com hidrantes recém-instalados.

Em 1888, 5 mil edifícios da cidade eram servidos pelo melhor sistema de água e esgotos do Brasil. Mas a água encanada era paga. Assim, ao longo da década de 1890, a população, acostumada com os chafarizes, resistiu em ter água encanada, recusando pagamento por um líquido que antes era gratuito.

A Companhia Cantareiras e, mais tarde, a Repartição de Águas e Esgotos, órgão do Estado que a encampou em 1893, intensificaram campanhas, inclusive mandando destruir os chafarizes, como os dos largos do Carmo e Rosário.

São Paulo, na década de 1890, contava com três adutoras: Ipiranga, Cantareira e Guaraú. Entre 1895 e 1898, foram completadas as aduções de todos os recursos hídricos da Serra da Cantareira, sendo construído novo reservatório na Consolação e iniciada a captação do Tietê, abastecendo a zona baixa do Brás.

Apesar do aumento do volume de água para abastecer a população, em 1903 ocorreu outra estiagem na cidade e novamente os 250 mil habitantes viveram uma grave crise de abastecimento. Em 1907, então, começaram as obras de adução do Cabuçu e do Borracada, destinadas ao abastecimento de Santana, Luz, Bom Retiro e Brás.

Todo esse investimento não modificou, entretanto, a vida das populações pobres. Enquanto os bairros mais prósperos recebiam água encanada, naqueles em que se concentravam as moradias operárias e os cortiços a água era ainda escassa e as epidemias proliferavam.

Em 1910, a cidade viveu outra crise hídrica e, conjuntamente, uma epidemia de febre tifoide nos bairros baixos, provocada pelo uso das já poluídas águas do Tietê. A municipalidade resolveu, então, captar águas do Ribeirão de Cotia, em 1914. Nesse mesmo ano, foi construído o reservatório da Vila Mariana e, em 1915, o da Água Branca.

Em 1925, foi projetada a construção da adutora Rio Claro finalizada em 1930. Em 1933, foi elaborado um plano para sua ampliação e da adutora de Santo Amaro. Em 1956, foram tomadas medidas para adução da Represa de Guarapiranga e, logo depois, o aproveitamento do Rio Grande (Represa Billings).

O abastecimento de água até hoje não está solucionado. Diante do crescimento urbano, os investimentos não são realizados na mesma proporção. Inúmeros bairros são precariamente atendidos. Nos meses de pouca chuva é comum alguns deles viverem o racionamento ou cortes de fornecimento.

A água que hoje abastece a região provém principalmente de oito sistemas mantidos pela Companhia de Abastecimento Básico do Estado (Sabesp): Cantareira, Alto Cotia, Baixo Cotia, Alto Tietê, Sistema Guarapiranga, Estação Ribeirão da Estiva, Sistema Rio Claro e Rio Grande.

Em grande parte, a captação de água é realizada em locais distantes, como no caso do Sistema Cantareira, abastecido pela bacia do Rio Piracicaba, com nascentes em Minas Gerais. Já o Sistema Guarapiranga, na região metropolitana, é ameaçado pela ocupação desordenada de suas margens, pelos esgotos domésticos e assoreamentos dos rios da sua bacia. A Billings, parte desse sistema, recebe as águas poluídas do Rio Pinheiros.

A modernidade e os rios
O principal rio da cidade de São Paulo até o século XIX era o Tamanduateí. Nele, a população captava água, lavava roupa, tomava banho e despejava o lixo e os dejetos cotidianos.

Até o século XIX, o espaço urbano de São Paulo permanecia quase inalterado. A população havia, porém, crescido. Com a riqueza do café, o fim da escravidão, a chegada dos imigrantes e o início da instalação das primeiras indústrias, triplicou o número de pessoas, de 64.934, em 1890, para 239.820, em 1900. Nesse contexto, a elite local iniciou a modernização urbana, com investimentos no abastecimento de água, no transporte e na eletricidade.

Em 1899, a empresa canadense Light and Power Co. chegou para prestar serviços de bondes e iluminação, conseguindo concessões para a produção de energia e interferindo na dinâmica natural dos rios. Em 1901, construiu a Hidrelétrica de Parnaíba, intervindo na Bacia do Alto Tietê. Em 1906, represou o Rio Guarapiranga, que passou a seguir para o Rio Pinheiros, adentrando no Tietê, e aumentando o volume de água para movimentar a usina.

Entre 1923 e 1927, como consequência de uma crise de energia, por conta de longo período de estiagem, a Light construiu outra usina, na região de Cubatão, na Serra do Mar, por meio da criação artificial de uma queda d’água de 725 metros. O projeto incluía represar o Rio Grande para abastecer um reservatório a ser formado pelo Rio das Pedras, represar vários rios do Alto Tietê, criar o reservatório Billings e reverter o curso do Rio Pinheiros, que passaria a correr para cima da serra.

A reversão das águas dos rios Tietê e Pinheiros para alimentar a usina de Cubatão foi concluída em 1950. As obras passaram a garantir o fornecimento de energia elétrica para a cidade, mas desencadearam um grande problema ambiental. A poluição dos rios passou a comprometer, a partir da década de 1980, as águas da Represa Billings, integrante dos sistemas de abastecimento de água para a Região Metropolitana.

As avenidas e os leitos dos rios
O crescimento populacional e a presença dos bondes elétricos desencadearam ações governamentais para alinhar as ruas do Centro, para atender às demandas de veículos e pedestres, com a inclusão de linhas de bonde. Nessa perspectiva, em 1911, a administração de Antônio Prado propôs retificar os dois rios centrais (Tamanduateí e Anhangabaú).

Em 1920, a população chegou a meio milhão de pessoas. Ostentava o desenvolvimento econômico do café e um novo estilo de vida para sua elite. Os mais pobres, expulsos da região da colina, passaram a habitar as regiões baixas, principalmente nas margens dos rios e córregos, onde o sistema de abastecimento de água e esgoto era precário.

A segunda grande reforma urbana foi a viária, com o Plano de Avenidas, de 1930, desenvolvido pelo engenheiro Francisco Prestes Maia. Seu objetivo era criar e consolidar uma malha de ruas e avenidas que permitisse modos de acesso à área central e a expansão contínua da periferia. Esse plano estruturou o crescimento da cidade nas décadas seguintes. O Plano de Avenidas seguia um sistema de avenidas radiais e sub-radiais e várias perimetrais para distribuição do tráfego.

O plano provocou mudanças nas relações entre a cidade e os rios.  Para o Tietê, orientava sua retificação; implantação, em sua várzea, de áreas industriais no sentido leste-oeste, para ligação entre indústria e bairros operários. Na sua margem esquerda, criação e expansão de uma linha de bonde rápido (metrô), para induzir o crescimento da cidade.

Para implantação das radiais e perimetrais, os urbanistas sugeriram utilizar os fundos dos vales dos rios e córregos. Assim, ao longo das décadas seguintes, a Avenida 9 de Julho foi construída sobre o Rio Saracura, as margens do Tamanduateí viraram a Avenida do Estado, o Rio Itororó foi sufocado pela Vinte e Três de Maio, a Pacaembu, a Sumaré e a Aricanduva ficaram sobre córregos do mesmo nome, a Salim Farah Maluf sobre o Córrego Tatuapé, a Luís Inácio de Anhaia Melo sobre o Córrego da Mooca, a Eliseu de Almeida sobre o Córrego Pirajussara, a Engenheiro Caetano Álvares sobre o Córrego Cabuçu de Baixo.

As grandes obras viárias adaptaram o espaço da cidade para o uso quase exclusivo dos veículos movidos a gasolina. E como previstas no Plano de Avenidas, nas décadas de 1950-1970 foram construídas as avenidas marginais, símbolos do que hoje em dia representa a cidade: via expressa para automóveis.

As interferências sobre rios, como o cerceamento de suas margens, a canalização e a poluição, foram aos poucos encerrando algumas atividades a eles relacionadas. Assim, aos poucos, desapareceram os campos de futebol de várzea, o cultivo de hortas, a presença das lavadeiras, as pescarias, as olarias, os clubes recreativos e a navegação.

*Antonia Terra de Calazans Fernandes é professora do Departamento de História da USP

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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