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150 anos sem Gonçalves Dias

A melhor homenagem 
ao escritor é lembrar por que foi 
tão grande e como suas obras ajudaram a construir o Brasil

Gonçalves Dias Gonçalves Dias
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Por Márcia Lígia Guidin*

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá. 
 (…)

Todos nós já lemos ou ouvimos os versos acima. Eles iniciam um famoso poema, Canção do Exílio, escrito em 1843 por Antônio Gonçalves Dias. Na época, o jovem maranhense tinha apenas 20 anos, vivia e estudava em Coimbra, Portugal. Com esse poema, ele inaugurava um dos temas mais férteis da poesia brasileira, o da saudade da pátria: estar “cá”, no exílio, querendo estar “lá”. De certa forma, há nesse verso uma ironia trágica. Muitos anos depois, já famoso, mas muito doente (e novamente na Europa a trabalho), o poeta não conseguiu voltar para morrer em seu país. Faleceu num naufrágio do navio que o trazia à pátria, na costa do Maranhão. Em novembro de 2014 comemoramos 150 anos de sua morte. E a melhor maneira de homenagear um dos maiores poetas do Brasil é lembrarmos por que foi tão grande e como suas obras ajudaram vigorosamente a construir o Brasil na literatura após nossa Independência.
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[bs_col class=”col-xs-10 amarelo”]Leia sugestão de atividade didática baseada neste artigo

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1) Reflita sobre o nacionalismo brasileiro dentro do Romantismo, em seu primeiro momento de consciência e sobre a missão que os escritores se impuseram de mostrar ao mundo nosso elemento mais autêntico para ecoar como símbolo da nação. A independência do Brasil e o Romantismo se interpenetraram e criaram vários dos heróis indígenas de Gonçalves Dias.
2) Usando poemas mais curtos, sugere-se a leitura de Tabira, nome do cacique tabajara (existiu de fato) que se aliou aos portugueses e se converteu ao cristianismo, mas acabou enganado por eles, que lutavam contra franceses no Rio, na Baía de Guanabara. Mesmo ferido de morte, o cacique, vendo seu erro, tentou salvar sua nação e penitenciar-se de seu erro. A descrição de sua coragem na batalha é exuberantemente plástica, criando uma imagem que lembra São Sebastião, cheio de flechas, misto de beleza e horror, como se pode ver nos versos finais. (Pode-se sugerir a análise ou dramatização da cena final.)
3) I-Juca-Pirama é o mais famoso poema épico do poeta, mas aquele cuja história, tão bela e original, é a menos conhecida. Podem-se escolher trechos decisivos que relevem a pureza do menino tupi (canto II); a necessidade de passar por covarde, pedindo para cuidar do pai, velho e cego, que ficara sozinho (canto V); a honra manchada quando o pai, ingrato o amaldiçoa e o leva de volta à tribo para que se cumpra o ritual da morte (canto VIII). E a honra paire acima do sentimento paternal. E, ao fim, muito mais do que a glória do herói, a narrativa recontada, anos e anos depois, pelo próprio cacique, já velho, que tivera a honra de matar o herói tupi (canto X).
4) Pode-se mostrar, num lindo poema indianista de amor, a suavidade erótica em Leito de Folhas Verdes. Tal como Penélope que espera Ulisses, seu marido e herói, nesse poema há grande vigor poético na cena da esposa índia resignada, que espera voltar o amado, Jatir, o qual partira para lutar em terras distantes. Todas as noites, ela prepara o leito de folhas macias para esperá-lo. Mas ele não vem… A beleza intensa do poema está na delicada marcação do tempo que escoa: ela espera, o sol nasce, a flor se abre e o vento da manhã varre as folhas, quando uma nova espera iniciará.
5) Excelente reflexão sobre preconceito racial, e, principalmente sobre a violência do branco contra as mulheres índias, (que gera filhos mestiços) está no belo poema Marabá. Ninguém na tribo quer a “marabá” (mestiça), a moça loura de olhos claros e cabelos ondulados. A solidão a que se entrega está no canto de desconsolo e tristeza: não conseguirá casar-se, nenhum dos jovens a quer. Vale a pena analisar seu lamento (“Eu vivo sozinha, chorando mesquinha/ Que sou Marabá!”) bem como a fala dos jovens que a renegam.

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Em dezembro de 1862, Gonçalves Dias estava bastante doente. Com 40 anos, sofria de reumatismo, dizia-se que tinha câncer na garganta. Viajou à França, em busca de outro clima, e correu no Brasil a notícia inverídica de sua morte. Houve grande tristeza e muitos discursos fúnebres, até de dom Pedro II. Dois meses depois, soube-se que estava vivo, e que mandava dizer que “nunca iria morrer”.  Pouco depois, doente, sem trabalho e sem dinheiro, comprou passagem no navio Ville de Boulogne, que vinha para o Brasil. O navio, porém, naufragou no dia 3 de novembro de 1864, e seu corpo nunca foi encontrado. Dizem que trazia outros trechos de seu mais longo poema épico, Os Timbiras.

Quanto à Canção do Exílio, não é incrível que esse poema ainda circule na memória de tantos brasileiros há mais de 150 anos?  Por que será que a maioria de nós sabe declamá-lo se já não somos tão nacionalistas e não nos emocionamos mais com palmeiras e sabiás? O fato é que a simples memória desses versos em nossos ouvidos já insinua o lugar do poeta na literatura brasileira e muito revela sobre seu estilo, seus temas e seu vigor para escrever. Observe-se a grande precisão dos versos onde o tema do amor à pátria é manifestado com palavras simples e muito precisas (sem nenhum adjetivo!), num ritmo tradicional, mas a serviço da emoção que a saudade da pátria lhe inspirara. Aliás, os vários estudos sobre este poema são unânimes: Canção do Exílio é a perfeita criação literária de quem conhecia a língua portuguesa “clássica” muito bem, mas a serviço de nova temática – o amor à pátria – que tanto o Brasil precisava desenvolver naquele momento de orgulho nacional.

É claro que a obra reunida de Gonçalves Dias – sua poesia lírica, e, principalmente, a poesia indianista – criam um universo que excede muito a esse poema. Porém, como ótima referência, essa canção revela a excepcional originalidade do poeta, que soube, como nenhum outro de sua época, unir a liberdade conquistada pelo   romantismo (nacionalista e passional) sem abrir mão completamente dos modelos literários tradicionais que conhecia tão bem.

Leia também: Biografia, a vida dos outros

Tal intuição criadora – a de associar a liberdade à tradição – construiu uma obra tão exuberante que Gonçalves Dias  é considerado,  ao lado do romancista  José de Alencar, o  fundador da “literatura  nacional”. Quer dizer, da literatura com a cara do Brasil, feita por nós, brasileiros, e para o mundo, poucos anos depois de 1822.

Como revelar o Brasil?

Para os escritores brasileiros (não mais “portugueses do Brasil”), era preciso, como grande missão patriótica, que se revelasse a “cor local brasileira”, nossa verdadeira identidade para cristalizar o orgulho nacional. Qual era a identidade brasileira?  Não éramos o “país do carnaval” ou o “país do futebol”, como somos vistos hoje. Éramos nação recém-nascida, que precisava de um elemento genuíno para nos distinguir das nações europeias (sobretudo de Portugal, a metrópole), e que nos desse uma feição só nossa diante de outras nações.

Assim nasceu a literatura indianista. Na poesia (e antes de Alencar), Gonçalves Dias logo teve consciência de seu papel no que se referia à criação de um viés literário rigorosamente patriótico. Apesar da sólida e bela poesia de amor, do teatro e dos muitos estudos, o que faz de Gonçalves Dias tão fundamental  leitura na escola e na vida, é, afinal, sua poesia indianista.

Imbuído do sentimento nacionalista romântico, o poeta fez muito empenho em ser “o primeiro poeta do Brasil”.  Ao tomar como fonte de inspiração o elemento “mais” autêntico de nosso espírito, sua imaginação criadora cresceria, obra após obra, num procedimento artístico original, rico e ousado, diferente da poesia amorosa, que era mais tradicional.

Não é apenas por tola tradição que a cultura escolar ainda o lê, ensina e promove.  E isso, nós professores, temos de reconhecer e revelar aos leitores sempre que pudermos – pela alta voltagem de seus heróis indígenas, que saem de suas tribos para a luta, para a morte honrada e para a glória. Não são poucos os poemas em que se canta esse heroísmo:

Valente na guerra/ Quem há como eu sou?” (Canto do Guerreiro)
(…) Falam deuses nos cantos do Piaga/ Ó guerreiros meus cantos ouvi (O Canto do Piaga)
(…) Teus filhos valentes, temidos na guerra, /No albor da manhã quão fortes que os vi! (Deprecação)

Indiferente às duras críticas de historiadores da época, irritados com a “europeização” do indígena, Gonçalves Dias cria poemas e epopeias grandiosas: Tabira, I-Juca-Pirama, Os Timbiras (incompleto).  Seus heróis épicos serão postos à frente de um mundo hostil, onde têm de lidar com as forças da natureza e contra muitos inimigos – os europeus, o de tribos inimigas. Sua bravura, porém, é sempre comovente – como nos conta o jovem herói tupi (o I-Juca-Pirama), que capturado pelos inimigos timbiras, prestes a morrer, precisa fazer um discurso. Um discurso? Sim, o ritual exige que conte suas bravuras antes de morrer como um glorioso herói diante dos inimigos. Quem não o ouviu declamar?
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
(…)
Para compreender a grandeza de Gonçalves Dias com seus indígenas, temos de acrescentar algo importante à originalidade de seu esforço criador: ao índio brasileiro, como elemento da construção do espírito nacional, devia caber o papel de rebelde na sofrida polarização colônia/metrópole. É disso que tratam seus poemas indianistas. Do herói que se rebela, que luta. E mais: do indianismo nada ingênuo de Gonçalves Dias emerge a consciência do destino atroz que tiveram muitas tribos nas mãos do colonizador. Ou seja, diferentemente da conciliação entre povos que se encontra em José de Alencar, no indianismo do poeta maranhense ecoa muito clara a triste visão dos povos vencidos. Em O Canto do Piaga, diz o pajé:
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
(…)
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!
(…)

Na obra desse poeta que tanto canta o amor, a saudade e o heroísmo, também está revelada a solidão dos heróis, a dúvida quanto aos valores morais, e muitos rituais de violência – todos esses elementos essenciais para unir a imaginação romântica da época ao espírito brasileiro.
Assim, 150 anos depois de sua morte, para melhor compreender o Brasil, sua história e sua gente, precisamos vencer resistências, vencer o vocabulário e compreender seu talento. Para depois dizermos em voz alta, como o velho cacique timbira:“E à noite nas tabas, se alguém duvidava, 
Do que ele contava,
Tornava prudente: “– Meninos, eu vi!”
(I –Juca- Pirama) 

*Márcia Lígia Guidin é professora aposentada de Literatura Brasileira, editora da Miró Editorial, membro da Academia Paulista de Educação

PARA SABER MAIS
CUNHA, Cilaine Alves. Gonçalves Dias. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Coleção Poetas do Brasil GUIDIN, Márcia Lígia. Poesia Indianista de Gonçalves Dias. (fixação de texto) São Paulo: Martins Fontes, 2.000. Coleção Poetas do Brasil GUIDIN, Márcia Lígia. Poesia Lírica e Indianista. São Paulo: Ática, 2003. Série Bom Livro LAJOLO, Marisa. O Poeta do Exílio. São Paulo: FTD, 2011

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