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Os 150 anos de Alice no País das Maravilhas

Um roteiro para trabalhar a mais conhecida obra de Lewis Carroll em sala de aula

Obra completa 150 anos de publicação||
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Em julho de 2015, Alice no País das Maravilhas completou 150 anos de publicação. Professor de matemática, gago e tímido, o autor Lewis Carroll deixou uma obra de difícil definição, que conquistou um lugar privilegiado no imaginário de várias gerações, com a fantasia e o nonsense como suas principais marcas. Alice, em particular, apesar de um século e meio de idade, continua uma menina. É um símbolo importante de nossos tempos, objeto de inúmeros estudos, adaptações literárias e, mais recentemente, versões para o cinema.

Leia atividade didática de Literatura inspirada neste artigo
Ano do Ciclo: 4º ao 6º ano
Objetivos de aprendizagem:Trocar impressões com outros leitores a respeito da obra; Comparar versões de um mesmo texto (de mesma mídia ou não) quanto ao tratamento temático ou estilístico; Examinar o uso do vocabulário; Reconhecer os efeitos de sentido provocados pela combinação, no texto, de sequências narrativas e dialogais
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Área Envolvida: Língua Portuguesa
Tempo de Duração: 10 aulas

1) Alice no País da Maravilhas é uma história muito rica, repleta de situações inusitadas e de personagens interessantes, além da própria menina Alice. Para uma primeira abordagem do livro em sala de aula, talvez fosse bom tentar recapitular os episódios e os personagens do livro e suas características. Como seria estar na pele de Alice, crescendo e diminuindo todo o tempo? O que faríamos diante das situações que ela encontra? Correríamos atrás do coelho? Tomaríamos o líquido da garrafinha que diz “Beba-me”? Tentaríamos puxar conversa com um rato? Sentaríamos à mesa com o Chapeleiro e a Lebre, mesmo se não fôssemos convidados? O que perguntaríamos ao Gato? Seríamos tão corajosos quanto Alice diante da Rainha?

2) Entretanto, os livros de Alice não podem ser reduzidos ao seu próprio enredo. Seus diálogos também são de grande importância. No País das Maravilhas, Alice trava discussões de caráter lógico-semântico com a Lagarta, com o Gato de Cheshire, com o Chapeleiro Louco e a Lebre de Março, etc. Vale a pena revisitar esses diálogos com os alunos, estimulando-os a participar e dar sua opinião. O próprio livro traz muitas questões que podem gerar um debate espontâneo em sala de aula, como jogos de palavras e de sentido e especulações lógicas.

3) A história permite trabalhar as noções de paradoxo e contradição. O paradoxo é a afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo. A contradição é um desacordo, uma incoerência entre o que se diz e o que se disse, ou entre palavras e ações. O buraco que era fundo ou Alice é que caía devagar pela toca do coelho? “Gatos comem morcegos” é o mesmo que “morcegos comem gatos”? O sorriso do gato sem gato é o sorriso do gato? O gato está no sorriso ou o sorriso está no gato? Pode-se ser punido antes cometer a falta? Gritar antes de se machucar?

4) Por ser um livro tão inventivo, Alice também permite uma abordagem criativa. A Falsa Tartaruga, por exemplo, conta para Alice como era a escola que frequentava na infância. Segundo uma das traduções, o professor se chamava Torturuga, porque era uma tortura aprender com ele (tartaruga + tortura). Já em outra tradução, era o Tartarruga, porque tinha tantas rugas (como se pode ver, cada tradução do livro de Carroll é um livro bem diferente). Que palavras as crianças podem formar unindo outras duas palavras? E palavras inteiramente novas? O que elas gostariam que significassem?

5)  A proposta do livro de brincar com os sentidos das palavras, ou inventar palavras novas que não tenham sentido claro, pode ser continuada em sala de aula. Além disso, as matérias que a Falsa Tartaruga estudava tinham nomes absurdos, como Lentura e Estrita, Estudos Histéricos e Marografia – o que seriam? Que outras matérias os alunos gostariam de estudar, mas que ninguém ensina?
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Pseudônimo do reverendo Charles Lutwidge Dodgson, Lewis Carroll nasceu em 1832. Por quase meio século, trabalhou e residiu em Christ Church, uma das faculdades da universidade inglesa de Oxford, e por muitos anos foi professor de Matemática. No entanto, não fazia muito sucesso entre os alunos (suas aulas eram consideradas maçantes) e não deixou nenhuma contribuição significativa para a área da matemática. Por toda a obra de Carroll, porém, percebe-se o seu lado lógico, tanto no enorme interesse cultivado pelos jogos, enigmas e paradoxos, como no prazer com que desmonta raciocínios e linguagens estabelecidas.

Carroll tinha talento para contar histórias, mas, introvertido, sentia-se mais à vontade com as crianças. Declarou, certa vez, numa fórmula bem carrolliana: “Gosto de crianças, exceto meninos”. Escreveu Alice durante uma viagem de barco pelo Tâmisa, entre Oxford e a aldeia de Godstow, em 1862. Faziam parte da comitiva o reverendo Robinson Duckworth e as três filhas do seu amigo (e diretor da faculdade Christ Church) Harry Liddell: Edith (8 anos), Alice (10 anos) e Lorina (13 anos). Para entreter as meninas durante a viagem, Carroll inventou um mundo de fantasia cheio de personagens excepcionais e nomeou sua protagonista de Alice. A menina Alice teria gostado tanto da história que pediu a Carroll que a colocasse no papel e, assim, surgiu o manuscrito de As Aventuras Subterrâneas de Alice (Alice’s Adventures Under Ground).

O manuscrito de Alice chegou às mãos do autor escocês George MacDonald, pioneiro na literatura de fantasia e ídolo de Carroll, que o leu para seus próprios filhos. Todos, sem exceção, vibraram com a história. Estimulado, Caroll revisou o manuscrito, incluindo a cena do Chapeleiro Louco e o personagem do Gato de Cheshire. Apresentou-o em seguida para publicação com um tamanho duas vezes maior que o originalmente enviado a Alice Liddell. Assim, em 1865, foi lançado Alice no País das Maravilhas.

Em 1871, Carroll publicou a continuação das histórias de Alice em Através do Espelho e o Que Alice Encontrou Por Lá. Além dos livros mais conhecidos, escreveu também poemas, contos e o extenso romance em duas partes Sílvia e Bruno (1889-1893), misturando real e fantasia.

Alice no País das Maravilhas não é propriamente um conto de fadas, os quais têm origem na tradição oral e, geralmente, carregam um conteúdo moral. Tampouco é uma obra surrealista, pois o absurdo lida com valores humanos. O livro de Carroll se situa no campo da lógica. Mas o problema lógico do raciocínio em Carroll muitas vezes se subordina ao problema semântico. Carroll questionava poeticamente, por meio do nonsense, os jogos de palavra e sentido, assim como os paradoxos.

Então, vamos às aventuras – “porque explicações sempre levam um tempo medonho”.

No início do livro, a menina Alice está sentada numa ribanceira, ao lado de sua irmã mais velha, a qual lê um livro para adultos. Alice, inclusive, pensa: “E de que serve um livro sem figuras nem diálogos?” Nesse momento, ela vê passar um Coelho Branco de colete e relógio de bolso, que olha as horas e exclama: “Por minhas orelhas e meus bigodes, como está ficando tarde!” Curiosa, mas não espantada, Alice segue o Coelho Branco e cai pelo buraco de sua toca. A partir daí, embarcamos junto com ela num mundo subterrâneo de fantasia – o País das Maravilhas (Wonderland, no original em inglês). No entanto, essa não é uma história qualquer. No mundo de Alice, “quase nada é realmente impossível”.

Para entrar no País das Maravilhas, Alice precisa mudar de tamanho. O problema do tamanho é uma constante em Alice: ela cresce e diminui diversas vezes ao longo do livro, seja porque tomou de uma garrafinha, comeu um pedaço de bolo ou de cogumelo. E parece nunca ter o tamanho apropriado: quando precisa passar pela porta está grande demais, quando necessita alcançar a chave em cima da mesa, está muito pequena. No meio da história, Alice tem acesso ao cogumelo da Lagarta, que de um lado faz crescer e do outro, diminuir. E, assim, passa a controlar seu tamanho como lhe convém.

Ao mesmo tempo, são justamente as mudanças de tamanho que permitem os encontros da protagonista com tantos seres que, de outra forma, não estariam ao seu alcance. A conversa com uma Lagarta, por exemplo, só é possível porque Alice estava, então, com o tamanho do inseto fumador de narguilé, que lhe pergunta sorumbaticamente:

“Quem é você?”

“Eu… eu… nem eu mesma sei, senhora, nesse momento… eu… enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me transformei várias vezes desde então.”

(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 1980, pág. 69)

Esta é outra questão que se repete ao longo do livro: a identidade de Alice. Tantas coisas estranhas acontecem a sua volta que a menina passa a duvidar de si mesma e se pergunta: será que o mundo mudou, ou fui eu? E, para ter certeza de que continua a mesma, Alice tenta se lembrar do que costumava saber: a tabuada, as capitais… mas não acerta em nada. Ao recitar um poema conhecido de cor, para seu espanto, as palavras saídas de sua boca recitam outra poesia. Em outro momento, a Pomba confunde uma Alice muito comprida com uma serpente, porque, além disso, Alice gosta de comer ovos, e todas as serpentes comem ovos. Segundo Gilles Deleuze, filósofo francês, a perda do nome próprio é a aventura que se repete em todas as aventuras de Alice. A incerteza sobre si mesmo está ligada aos acontecimentos exteriores e o que se passa.

Sucedem-se os personagens, um mais surpreendente do que o outro: o Coelho Branco sempre apressado, a Lagarta que fuma narguilé, o Gato cujo sorriso paira sozinho no espaço, o Chapeleiro e a Lebre de Março, ambos loucos assumidos, uma corte de cartas de baralho cuja Rainha encolerizada manda cortar as cabeças ao menor deslize, a Duquesa que adora achar moral em tudo e constrói frases complicadíssimas…

A história segue repleta de desentendimentos e mal-entendidos entre Alice e os outros personagens. Aliás, Alice acredita que eles se ofendem facilmente, apesar de também se sentir insultada em algumas ocasiões. Ela é repreendida diversas vezes: não devia se sentar sem ser convidada, devia cortar o cabelo, devia ter vergonha de fazer uma pergunta tão boba… Os personagens parecem não se preocupar muito com os sentimentos uns dos outros: as relações entre eles são sempre contraditórias e se estabelecem pela dialética.

Numa cena emblemática, o Chapeleiro, a Lebre de Março e o Caxinguelê tomam chá amontoados no canto de uma mesa bastante espaçosa, com várias cadeiras vazias, mas juram que não há lugar para mais ninguém. Alice senta-se à mesa assim mesmo, e eles acham por bem serem mal-educados com ela também. É que Alice não está respeitando a lógica que vigora ali – pois não deixa de haver uma lógica por detrás até da maluquice. O Chapeleiro teve uma briga com o tempo e o seu relógio parou às 6 da tarde, hora do chá. E como não deixa nunca de ser seis da tarde, a toda hora é sempre hora do chá, e eles estão fadados a rodar em volta da mesa, em eterno recomeço, até conseguirem consertar o relógio. A discussão entre Alice e o Chapeleiro sobre o tempo é muito instigante para se tratar em sala de aula. Aqui segue um trecho:

“Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo!”, disse o Chapeleiro. “Por exemplo, suponha que fossem nove horas da manhã, hora de estudar as lições; bastaria um cochicho com o Tempo, e o relógio giraria num piscar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!”

“Seria formidável, sem dúvida”, disse Alice, pensativa. “Mas nesse caso eu não estaria com fome, não é?”

“Não a princípio, talvez”, disse o Chapeleiro; “mas você poderia mantê-lo em uma e meia até quando quisesse.”
(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 2013, pág. 57)

O Gato de Cheshire afirma que todos ali são loucos, inclusive Alice. O que significa ser louco? Somos todos loucos? Só no País das Maravilhas, ou no nosso mundo também? O Grifo diz a Alice, com todas as letras, que tudo ali não passa de fantasia, inclusive os sentimentos, como a tristeza que abate a Falsa Tartaruga.

Mais adiante na história, Alice é chamada a prestar depoimento diante da corte, no julgamento do roubo das tortas. Diante de tantas arbitrariedades e desmandos do Rei e da Rainha, porém, já não pode conter sua indignação e tudo se encaminha para o limite. Ao mesmo tempo, durante o julgamento, Alice aumenta de tamanho até o ponto em que o baralho de cartas adquire sua proporção normal e a menina consegue se distanciar de tudo aquilo, vendo ali apenas um baralho de cartas. Nesse momento, acorda novamente no campo, ao lado da irmã, e lhe conta todas as aventuras que sonhou. Em seguida volta para casa, pois é hora do chá. Enquanto isso, a irmã permanece na ribanceira, fecha os olhos e sonha com o sonho de Alice. Quando o vento sopra, ela pode ouvir o Coelho Branco correr apressado, ouve o tilintar das xícaras de chá do Chapeleiro no tinido dos sinos dos carneiros pastando, os gritos estridentes da Rainha na voz do pastor e os soluços da Falsa Tartaruga no mugir do gado. Esses e tantos outros sons e ruídos do sonho estavam presentes nos confusos rumores do campo.

*Julia Tietelroit Martins é doutoranda em Literatura e Cultura pela PUC-Rio, mestre em Letras (PUC-Rio) e cineasta

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A obra de Lewis Carroll foi objeto de inúmeras releituras e adaptações. É importante escolher uma que seja compatível com a faixa etária dos alunos.

Alice – Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho, de Lewis Carroll. Edição comentada e ilustrada: Martin Gardner; ilustrações originais: John Tenniel; tradução: Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 2013.

Alice – Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho, de Lewis Carroll. Edição integral ilustrada, de Nicolau Sevcenko; ilustrações: Luiz Zerbini. Cosac Naify, 2009.

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Edição integral de Sebastião Uchoa Leite, Summus, 1980.

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Edição adaptada de Ana Maria Machado, Ática, 1997.

The Magic of Lewis Carroll, de John Fisher,1973.

The Field of Nonsense, de Elizabeth Swell, 1952.

Filmes
As versões do livro para filme tem, no geral, o enredo bastante reduzido, ou combinam episódios dos dois livros de Alice.

Alice no país das maravilhas, Estúdios Disney, 1951.

Alice no páis das maravilhas, Estúdios Disney, Tim Burton, 2010.

Neco z Alenky, por Jan Svankmajer, da Tchecoslováquia, 1988.
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