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Reforma da Previdência: o problema são os efeitos de curto prazo

A regra nova é aceitável, mas a produção imediata de efeitos sobre as pessoas deveria ser alterada pelo Congresso

Marcelo Caetano, o secretário da Previdência: governo não pensa em desigualdade
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Como em todas as discussões, é preciso se desarmar, o máximo possível, das paixões político-ideológicas, pensar mais no social do que em si e se informar, para que não se fale do que não existe ou coisas que não fazem sentido.

O ponto central das discussões iniciais sobre a proposta de reforma da previdência apresentada há alguns dias tem sido o novo regime de idade e de tempo de contribuição para aposentadoria.

No sistema atual, há duas possibilidades autônomas. Para se aposentar pela idade, a mulher e o homem precisam hoje completar 60 e 65 anos. É possível também que mulheres e homens se aposentem por tempo de contribuição de 30 e 35 anos, independentemente da idade, o que não é fácil de se ver entre os mais pobres. Essa regra beneficia mais as classes média e alta.

A proposta de reforma extinguirá essa segunda possibilidade de aposentadoria, ficando apenas a primeira, mas reformulada, pois as mulheres também precisarão completar 65 anos para se aposentar e ambos, homens e mulheres, precisarão completar ao menos 25 anos de contribuição.

Ninguém precisará trabalhar 49 anos para se aposentar. A regra proposta prevê um maior benefício para aqueles que trabalhem e contribuam para a previdência por mais tempo. Nada mais justo.

Com 25 anos, surge o direito de aposentar com 76% do benefício. Cada ano a mais trabalhado dará 1% a mais de benefício. Daí surgem os 49 anos, pois será necessário trabalhar mais 24 anos, além dos 25 que dão direito à aposentadoria, para ter mais 24%, ou seja, aposentadoria de 100% (integral).

Como se pode ver, o assunto é complexo e precisa ser discutido com cautela. Desde que criado o fator previdenciário, em 1999 (há 17 anos), poucos vêm se aposentando com o benefício integral, pois a função do fator é exatamente reduzir benefícios dos que contribuíram menos. Já é assim há muito tempo. Esse tipo de sistema é necessário para que a previdência seja sustentável. É assim em quase todo o mundo, em países de todos os níveis de desenvolvimento.

Segundo as regras atuais, para ter aposentadoria integral, por conta do fator previdenciário, já é preciso que mulheres somem 85 pontos em termos de idade mais contribuição, enquanto que os homens precisam somar 95 pontos.

Pelas regras vigentes, só recebe 100% de benefício a mulher que tiver, ao se aposentar, por exemplo, 60 anos de idade e 25 anos de contribuição ou 65 anos de idade e 20 anos de contribuição. Para homens, é preciso ter 70 anos de idade e 25 anos de contribuição ou 65 anos de idade e 30 anos de contribuição.

A mudança, que é dura, leva a ser necessário, no caso de homens e mulheres, somar 114 pontos, ou seja, 65 anos de idade e 49 anos de contribuição, para que se tenha direito a benefício de 100%. Se os indivíduos começarem a contribuir com 16 anos, terão 49 anos de contribuição aos seus 65 anos.

Os defensores do social – e este autor se considera um ferrenho – precisam compreender bem o tema para defenderem apropriadamente o social.

No que toca às regras citadas acima sobre idade e tempo de contribuição, após estudar longamente o sistema de dezenas de países e conversar com muitos dos maiores especialistas do mundo, a exemplo de Nicholas Barr e de Peter Diamond, vencedor do Nobel de Economia, este autor entende que a proposta de reforma da previdência é, em parte, boa. Os defensores do social devem se concentrar, portanto, no que é ruim e no que ela é omissa.

As mudanças na previdência, como provam as teorias e práticas ao redor do mundo, e como afirmado por Barr em entrevista publicada neste blog, devem ser realizadas de forma bem suave, com tempo para que as expectativas das pessoas possam se adequar às novas regras.

A surpresa – como mudanças em curto prazo, pior ainda se forem drásticas – causa problemas graves nas vidas das pessoas e, portanto, dificulta a aprovação das propostas. 

Como o governo atual decidiu fazer um ajuste fiscal drástico, no meio de uma gravíssima recessão, apenas pelo lado das despesas primárias, deixando para mexer nos maiores juros reais do mundo em conta gotas e deixando o péssimo sistema tributário intacto, é preciso, então, mudar drasticamente a previdência, até para que sobre dinheiro à frente por conta da famigerada PEC dos gastos.

As regras de eficácia da proposta de reforma da previdência são muito ruins. Serão afetados desde já mulheres com até 45 anos e homens com até 50 anos, e os acima dessa idade cairão na regra de transição.

O foco das críticas deve ser o regime de produção de efeitos das regras, pois a proposta é para que comecem a valer imediatamente.

Conforme a regra de transição, aqueles acima das idades de 45 e 50 anos não se sujeitarão às regras novas, porém deverão trabalhar mais metade do tempo que faltam hoje para se aposentar.

A regra é ruim, porque ela discrimina indivíduos em situações muito semelhantes por um dia de idade. O homem que tiver 49 anos, 11 meses e 29 dias não vai ser submetido à transição, devendo seguir desde logo as novas regras, enquanto que o homem com 50 anos completos se submeterá à transição.  

Veja o exemplo de um homem que começou a trabalhar com 18 anos e vem contribuindo ao longo dos últimos 32 anos. Hoje ele tem 50 anos e alguns dias, ficando submetido à regra de transição. Como ele faltava apenas 3 anos para se aposentar por 35 anos de contribuição e provavelmente já fazia planos nesse sentido, precisará adiar os planos por mais 1 ano e 6 meses.

As regras deveriam começar a produzir efeitos na prática apenas depois de 5, 10 ou 15 anos. É um absurdo uma reforma da previdência que endureça as regras para aposentadoria a partir do dia seguinte em que entrar em vigor. Isso contraria o que há de mais avançado no mundo.

Se ficará ruim para os submetidos à regra de transição, pior será para quem não se sujeitar a ela, pois estará imediatamente sujeito à idade de 65 anos com ao menos 25 anos de contribuição.

Aquele homem mencionado acima, com 49 anos, 11 meses e 29 dias de idade, poderia vir contribuindo desde os 16 anos e alguns dias de idade, restando apenas 1 ano e alguns dias para sua aposentadoria. Pela proposta de reforma da previdência, esse homem precisará agora esperar mais 15 anos, pois apenas poderá se aposentar com 65 anos de idade.

Se a regra de transição aplicada de imediato causa espanto, a aplicação das novas regras de imediato a quem estava próximo da aposentadoria é criminosa. O corte teria que ser, ao menos, em 35 e 40 anos de idade para que não surpreendesse tanto as pessoas.

O Congresso Nacional deve ser pressionado a alterar o início da produção de efeitos tanto das regras novas, como da própria regra de transição.

É importante, ainda, apesar de não haver espaço suficiente aqui, retornar a um tema já tratado em texto anterior. Como era de se esperar, a proposta do governo Temer não busca em nenhum momento fazer distribuição de renda, um dos objetivos principais da previdência social, conforme amplamente aceito pelas melhores teorias e práticas.

Num país de desigualdade anacrônica como o Brasil, o financiamento da previdência não pode ser o mesmo criado décadas atrás, com apenas três faixas de alíquotas (8%, 9% e 11%) muito próximas umas das outras. É preciso que a progressividade do financiamento seja elevado, criando-se, por exemplo, uma faixa de isenção, como já acontece em muitos países.

A proposta de reforma não mexe na contribuição, nem mexe nos benefícios com o objetivo de melhorar a distribuição de renda. O objetivo é exclusivamente endurecer as regras para tornar o sistema fiscalmente sustentável, que é apenas um dos fins da previdência.

O financiamento do sistema e um regime de formação do benefícios que distribua renda deveriam ser objeto de um projeto substitutivo dos partidos preocupados com um provável aumento da imensa desigualdade brasileira por conta da reforma. O objetivo deve ser exatamente o contrário: um novo sistema que leve à diminuição da desigualdade. 

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