Vanguardas do Conhecimento

100 anos de Antonio Callado

Hoje Antonio Callado completaria 100 anos, mas ele que presenteia a todos com alguns trabalhos inéditos descobertos na Inglaterra

Antonio Callado
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Considerado pelo crítico Raymond L. Williams um dos mais destacados romancistas latino-americanos do século XX, o escritor brasileiro Antonio Callado (1917-1997) completaria hoje, se estivesse vivo, 100 anos.

Inúmeros eventos marcarão este ano do centenário do romancista, dramaturgo e jornalista: o lançamento de um novo documentário dirigido por Emília Silveira, uma sessão comemorativa na Academia Brasileira de Letras prevista para março e uma conferência sobre sua vida e obra na Universidade de Oxford, Inglaterra, no dia 4 de fevereiro.

Para além do seu centenário, são os tempos incertos pelos quais passa o País que fazem da releitura da obra de Callado algo tão necessário. Trata-se de um autor profundamente comprometido com o Brasil, o que adiciona à sua obra um sentindo ainda maior. 

Callado foi um homem cuja vida se mesclou de forma fascinante com a história do século XX. Enquanto jornalista, cobriu eventos que moldaram o mundo contemporâneo, como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, e a Guerra do Vietnã (1955-1975), esta última como enviado do Jornal do Brasil em 1968. 

Enquanto dramaturgo, foi um dos primeiros autores no Brasil a escrever peças de teatro para protagonistas negros. Sensibilizado pelo Teatro Experimental Negro iniciado por Abdias do Nascimento em 1944, Callado escreveu, a partir dos anos 50, peças com personagens e temas que problematizam direta ou indiretamente o racismo no Brasil, como Pedro Mico (1957), Uma rede para Iemanjá (1961), O tesouro de Chica da Silva (1962) e a Revolta da Cachaça (1983).

Escritor de mão cheia, estreou como romancista em 1954, com Assunção de Salviano, história cujo enredo tem como pano de fundo os conflitos fundiários do Nordeste nos anos 50. No início dos anos 60, Callado escreve uma série de reportagens, primeiro para o Correio da Manhã e depois para o Jornal do Brasil, sobre as Ligas Camponesas, colocando o tema da reforma agrária sob os holofotes da imprensa e fixando na linguagem corrente o termo “indústria da seca”.

É com Quarup (1967) que Callado se consagra como autor. Considerado por alguns críticos o romance mais importante da década de 60, Quarup – nome de um ritual fúnebre dos povos indígenas do Xingu – tem como protagonista um padre que vai para o Norte do país catequizar os índios e, depois de uma série de choques e descobertas no Brasil profundo, se converte em militante contra a ditadura (1964-1985).

Em passagem antológica, o protagonista, padre Nando, se envolve numa expedição para contatar tribos isoladas e demarcar o centro geográfico do Brasil. Ao fincarem o marco no lugar que acreditam ser o centro do País, os personagens descobrem que o solo onde pisavam era, em verdade, um formigueiro colossal, capaz de devorá-los.

A cena, uma recriação ficcional da expedição original realizada pelos irmãos Villas-Boas em 1958, é uma belíssima metáfora da busca incessante de um povo por sua identidade. Uma longa tradição de pensadores brasileiros, de Oliveira Vianna a Darcy Ribeiro, passando por nomes como Sergio Buarque, Caio Prado Jr. e o próprio Callado, buscaram ao longo do século XX desvendar a alma brasileira, interpretar a identidade nacional e cultural do País e produzir sentido sobre sua trajetória histórica.  

Quarup é parte do esforço de Callado por entender o Brasil, com seus enormes dilemas e contradições. O romance é uma reflexão sobre a trajetória recente de uma gente que se fez como povo através de processos históricos brutais, banhados em sangue negro e indígena, e que é pobre embora viva em meio a uma imensa abundância de recursos naturais.

O que Callado parece querer apontar com a imagem de um formigueiro no coração do Brasil é que a identidade de um país não é algo dado e que, portanto, possa ser descoberto, desvendado. A identidade brasileira é movediça, como um formigueiro, e quem tenta fixá-la pode ser por ela devorado. Enfim, o Brasil de Antonio Callado não precisa ser descoberto, ele tem é que ser inventado, construído pelos milhares de brasileiros que, com seu trabalho e movimento, são a matéria desse solo.  

Na época de sua publicação, o romance foi saudado por críticos como Ferreira Gullar e Hélio Pelegrino como obra-prima, capaz não apenas de produzir um retrato da encruzilhada civilizacional pela qual passava o Brasil de então, mas também como narrativa capaz de produzir uma síntese estética do projeto nacional-popular acalentado por intelectuais e movimentos sociais naquele momento. Tal projeto fora agrupado sob a bandeira das chamadas reformas de base, barradas abruptamente pelo golpe de 1964.    

A partir dos anos 1970, o escritor produzirá romances que refletem sua perplexidade diante do recrudescimento do autoritarismo e da tortura no pós-1968, mas também da incapacidade de articulação de um projeto de enfrentamento da ditadura que produzisse uma saída estruturada para o país. Tais questões são problematizadas em Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976).

Embora sua produção nos anos 80 se torne ainda mais marcada pelo pessimismo em relação aos rumos do País, como em Sempreviva (1981), Expedição Montaigne (1982) e Concerto Carioca (1985), é a ligação entre o jornalista e o romancista que será consagrada no fim de sua obra.

O último romance, Memórias de Aldenham House (1989), é uma narrativa que liga as duas pontas da vida de Antonio Callado, ao explorar através da ficção o ambiente vivido pelo autor entre 1941 e 1947, quando foi à Inglaterra para trabalhar como jornalista da BBC.

Aldenham House é o nome da mansão construída por uma família aristocrática inglesa no século XVII e que abrigou, em plena Segunda Guerra Mundial, os departamentos de transmissão internacional da BBC.

No romance de Callado, um jornalista brasileiro foge da perseguição política do Estado Novo de Vargas (1937-1945) e torna-se correspondente de guerra, convivendo com outros exilados na seção da BBC responsável por transmissões em português e espanhol para a América Latina.

Com o fim da guerra em 1945, quase todas as personagens do romance retornam a seus países de origem e são presas ou mortas por regimes ditatoriais. Embora reproduza na forma da narrativa uma sátira dos romances policiais dos anos 1930 e 40, Callado parece sugerir que, na trama política da América Latina, o assassino não é o mordomo, como nos clichés detetivescos, mas sim a tradição autoritária dos países da região.

Foi em busca de rastros deixados por Antonio Callado na Inglaterra que este autor iniciou uma pesquisa nos arquivos da BBC em 2014 e descobriu uma série de documentos inéditos não apenas sobre Callado, mas sobre a presença de intelectuais brasileiros na BBC durante a Segunda Guerra Mundial. O material encontrado inclui dezenove roteiros de rádio-drama, peças de teatro para serem encenadas no rádio, escritos por Antonio Callado e desconhecidos por biógrafos, críticos e historiadores até então.

As peças são as primeiras aventuras de Callado pelo mundo da ficção e têm o potencial de lançar uma luz nova sobre o trabalho do autor e o seu processo de formação intelectual na Inglaterra. Esse material está sendo editado para sair no Brasil ainda este ano e virou tema de pesquisa na Universidade de Oxford.

Aos 100 anos, Antonio Callado continua nos oferecendo novidades. Seu trabalho parece mais atual do que nunca. Através de seus romances, peças e reportagens é possível compreender melhor a trajetória recente do país, algo essencial para que possamos repensar nossos rumos e superar nossas contradições. Afinal, como disse o crítico Davi Arrigucci, um país que já produziu homens como Antonio Callado não pode desistir de ser alguma coisa.

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