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Manoel separou sua vida familiar da militância sindical nos metalúrgicos

Em casa, o metalúrgico Manoel Filel Filho fazia um bom bacalhau, gostava de ouvir Elis Regina e evitava discutir política ou religião

Enlace de Manoel e Thereza aconteceu em 1954, com vestido comprado na "Rua das Noivas", em São Paulo
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Casa de Manoel Fiel Filho A casa de Manoel Fiel Filho, na rua Ibó, na zona leste de São PauloA rua Ibó vai de posto a posto, pode-se dizer. Nasce na esquina com a avenida Regente Feijó, grande artéria da zona leste de São Paulo; ali, do lado esquerdo, o lado ímpar da rua, há uma venda de gasolina.

De marca diferente, mas quase igual em tamanho, o outro posto fica no extremo oposto, no lado par da Ibó, quando ela se encontra com a avenida Sapopemba, uma das vias mais emblemáticas da cidade, marcante na história de São Paulo e dolorosa na carreira deste corredor.

A Sapopemba foi mote de debates, comentários, piadas e provocações durante a campanha eleitoral para a prefeitura paulistana, nos idos de 1985.

Com uma só frase, o ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992) derrubou a empáfia de seu oponente, Fernando Henrique Cardoso, que se licenciara do posto de senador não eleito (suplente de Montoro, assumiu quando o colega de partido venceu as eleições para o governo de São Paulo, em 1982) para disputar o executivo municipal.

Jânio quis saber se o sabe-tudo FHC sabia onde ficava Sapopemba. A blague desarmou o peemedebista e deixou sua equipe em polvorosa – os assessores chegaram a montar polpudos dossiês sobre a avenida que corta a zona leste paulistana.

A Sapopemba também cortou meu coração. Para ser mais exato, meu joelho; para ser mais exato ainda, a cabeça da tíbia direita, o platô onde se insere a rótula. Foi ali que tive minha segunda fratura por estresse na minha curta, mas movimentada, carreira de corredor. O fato se deu em 2013, quando percorri a avenidona de cabo a rabo, num projeto para homenagear os 460 anos de São Paulo (saiba mais clicando aqui).

Pois foi pela Sapopemba que cheguei à rua Ibó, para onde Manoel Fiel Filho levou sua jovem esposa em 1954. Naquela rua, em uma casa que hoje já não existe mais, moraram logo depois do casório.

Lá viveram por muitos anos, lá viram as filhas crescerem – de lá viram a mais velha sair para construir sua própria família.

Naquela época, quando o século passado começava sua segunda metade, a região da Água Rasa, nas cercanias da Mooca, já vivia a efervescência industrial de que hoje vemos ruínas.

Correr num domingo pela rua da Mooca é como visitar uma cidade fantasma, pelo menos em seus primeiros quarteirões. Se, durante a semana, a região vive em burburinho, quando o comércio fecha o silêncio toma conta da via.

Cruzando o viaduto sobre os trilhos do trem – espécie de marco divisório entre a região central da cidade e a zona leste–, dá para ver os telhados de enormes construções que um dia abrigaram armazéns ou máquinas de agitadas metalúrgicas – hoje são ruínas.

Nesse cenário pouco empolgante, cinzento, sigo na corcoveada rua –são subidas e descidas leves, ao longo de três ou quatro quilômetros. Presto atenção nas transversais, pois é uma delas que vai me levar à Água Rasa. Nisso, sou surpreendido por uma rua que homenageia a atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923); a lembrança é curiosa em meio a um monte de ruas em que são lembradas figuras não muito conhecidas do passado paulista e brasileiro.

Dois quarteirões depois, como a me dizer que o tonto sou, e que homenagens nas cidades podem ser feitas a quem se queira, quando se queira, vem um rua que celebra a heroína francesa Joana D`Arc (1412-1431).

É melhor eu prestar atenção no trajeto, se não logo me perco.

Mas não: acerto o passo descendo a rua do Acre, cruzo a avenida Salim Farah Maluf, subo a primeira e dolorida lomba da icônica Sapopemba e logo me dou de cara com meu destino de hoje, quinto dia da Corrida por Manoel.

Metalúrgico quando morreu, Manoel tinha sido antes padeiro e cobrador de ônibus. Quando morou na rua Eli, onde conheceu sua futura esposa, ainda não era operário. Mas ganhava o suficiente para sustentar família e foi acolhido pelos pais de dona Thereza.

O namoro se deu à moda da época, e o casório também seguiu a apropriada liturgia. Apesar dos ganhos modestos – o pai de Thereza trabalhava na limpeza de ruas, e ela mesma era tecelã –, a família da noiva tratou de produzir o casamento com a pompa que lhe era possível.

Ela estava linda, exultante, quando passou pelo corredor da grandiosa igreja da Vila Formosa. Na rua São Caetano, a “Rua das Noivas”, tinha garimpado um vestido que lhe caía no corpo com perfeição. A tiara e o véu que usou no dia ainda hoje arrancam suspiros da filha mais velha: “Olha isso!”, diz Aparecida, 60, mostrando a foto do casamento dos pais.

No civil, o enlace se deu no dia nove de dezembro de 1954; dois dias depois, aconteceram as núpcias no religioso. O novo casal foi morar em uma casinha nos fundos da casa dos pais de Thereza, na Água. O endereço era rua Ibó, 340 –em alguns documentos, porém, o nome da rua aparece grafado de maneira diferente.

“Fomos morar nos fundos da casa de minha mãe”, confirma dona Thereza em entrevista para este corredor. Era um conjunto movimentado, a julgar pela lembrança da filha mais velha, Aparecida.
“Morava a minha avó com meu avô na frente, nós na casa na sequência. Morava a mãe, eu e o pai, e a minha avó alugava uma casinha que tinha do lado. Sempre tinha inquilino novo.”

Quando Aparecida nasceu, o pai já estava de emprego novo. Tinha finalmente iniciado carreira como metalúrgico. Na função de serralheiro, entrara em 19 de julho de 1956 na Indústria de Móveis Cromados, que funcionava na avenida Santo Amaro, 622.

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Talvez por ser o emprego muito longe de sua casa, Miguel não ficou muito tempo naquela empresa. No ano seguinte já estaria na Metal Arte, onde ficou por 19 anos, seu último dia de trabalho foi a sexta-feira 16 de janeiro de 1976, quando dois policiais não identificados o levaram dando explicações esfarrapadas para o sequestro.

Na rua Ibó a família ficou por longos anos. As filhas guardam de lá memórias gostosas. “A gente ficava muito em casa, tinha um quintal, tinha galinha, árvores”, lembra Aparecida.

Quando era preciso algum reparo, Manoel assumia a responsabilidade. E ensinava para as filhas algumas tarefas. “Ele pintava as casas dos vizinhos”, conta a viúva. “Nós também pintávamos, na brocha”, diz Aparecida. “Ele não tinha filho homem, tinha de ser as mulheres mesmo”, completa Márcia, a caçula.

Também era rigoroso. “Gostava de limpeza, não podia ver um cisquinho”, fala dona Thereza. “Engraxava nossos sapatos, os de ir à escola”, diz a filha caçula.

Mesmo quando as meninas cresceram. Manoel não abandonou os cuidados, conforme conta Márcia: “A minha irmã estava grávida da primeira menina dela, casou às pressas, meu cunhado também não ganhava muito bem. Sábado, meu pai ia lá na feira perto da casa dela, enchia a sacola de frutas e legumes e levava para eles. Saía de casa, não falava onde ia”.

Cuidava da filha casada e não tirava o olho da que tinha ficado em casa, adolescente ainda. “Às vezes eu estava na casa de uma amiga, ele aparecia: `Vim te buscar`. Não tinha carro, era de ônibus. Ele saía atrás de mim. Com 15 anos eu estudava e trabalhava. Trabalhava na Casas Buri, perto da Vinte e Cinco de Março, na Barrão Duprat. A escola era [Escola Estadual] André Xavier Gallicho, na Rua da Mooca [4650]. Três quadras antes de acabar a Rua da Mooca”.

Manoel fazia um bom bacalhau nos encontros da parentada, gostava de ouvir Elis Regina, adorava o Corinthians e, com a turma da família, evitava discutir política ou religião – “Meu pai era completamente ateu”, fala a caçula, Márcia, 56.

Fosse por seu estilo calado, fosse por preocupações com a segurança da mulher e das filhas, o certo é que Manoel não costuma comentar em suas atividades sindicais.

Quando pergunto às filhas o que elas lembram da vida profissional de Manoel, quem responde é Aparecida: “A única coisa que a gente pode te contar com certeza é que a gente não sabia de nada em que ele participava”.

Dona Thereza confirma, falando como se o tempo tivesse parado: “Nós fomos saber agora”.

“Ele era muito certinho nos horários dele. A única coisa é que ele ia ao sindicato”, diz Aparecida. “De sábado ele falava: ‘Preciso ir no sindicato’. Era o Sindicato dos Metalúrgicos”, completa a mãe.

Depois da morte de Manoel, em encontros com antigos colegas de trabalho ou de atuação sindical, a família foi descobrindo coisas. Informações nebulosas, nada em que se possa por certeza.

Aparecida conta: “Falam cada coisa. Falam que ele ia para Minas fazer palestra… O que é lenda e o que é verdade?”

“Meu pai está parecendo agente secreto”, brinca Márcia.

Aparentemente, porém, os amigos sabiam ou imaginavam que Manoel talvez estivesse na mira dos informantes da Ditadura Militar, talvez sua atividade sindical – era delegado sindical, representante de fábrica — tivesse chamado atenção.

Dona Thereza lembra de um encontro no sindicato –provavelmente uma homenagem a Manoel— em que amigos do operário contaram que ele tinha sido aconselhado a fugir, a sair do Brasil.

“Como é que eu vou se a minha mulher não está sabendo de nada? Eu não tenho dinheiro para ir. Como é que eu vou?”, teria perguntado Manoel, recusando o caminho da fuga.

Dona Thereza conclui, as lembranças já lhe tomando conta das emoções: “ Ele ficou para morrer, para matarem ele”.

 

*Texto publicado originalmente no blog Lucena Corredor, do jornalista Rodolfo Lucena

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