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Jornada por Herzog revisita marcos da luta contra a ditadura em SP

Os criminosos tentaram disfarçar o crime, transformar a morte em suicídio, farsa em que nem as paredes do DOI-Codi acreditavam

Praça Vladmimir Herzog, no bairro Bela Vista, em São Paulo
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Casa de Vladimir Herzog O filho, Ivo Herzog, mostra a casa onde viveu com a família

Éramos uma turma pequena, mas animada.

Pouco mais de 15 pessoas, com gente representativa como o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Paulo Zocchi, e o diretor do centro de memória do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, José Francisco Campos, além do jornalista Sérgio Gomes, que é uma espécie de símbolo da imprensa sindical em São Paulo, mais corredores e caminhantes, amigos e apoiadores das corridas e das lutas pela democracia.

Nos reunimos todos com Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog e diretor do Instituto Vladimir Herzog, para uma jornada caminhada e corrida em homenagem ao jornalista assassinado pela Ditadura Militar em 25 de outubro de 1975.

Os criminosos tentaram disfarçar o crime, transformar a morte em suicídio, farsa em que nem as paredes do DOI-Codi acreditavam. A sociedade civil se rebelou, dom Paulo Evaristo Arns falou, o rabino Henry Sobel se recusou a fazer o enterro na quadra dos suicidas no cemitério judaico, o Sindicato dos Jornalistas abriu suas portas para uma vigília democrática, transformou-se em centro das articulações do enfrentamento à Ditadura.

Clarice, mulher de Herzog, ficou sabendo da morte na noite do dia 25. Na manhã seguinte, um domingo, acordou cedo os filhos para contar o que tinha acontecido. Eles moravam em uma casa de fundos nos alto da rua Oscar Freire, entre a Cardeal Arcoverde e a Galeno de Almeida.

Foi em frente à antiga casa da família que nos reunimos na manhã de hoje para a Jornada por Herzog, 29ª etapa da Corrida por Manoel. 

Antes da largada, Ivo contou um pouco das histórias vividas naquela casa.

Largada da Corrida por Manoel Início da corrida, na rua Cardoso de Almeida

“Tinha um jardim grande, meu pai gostava muito de animais, ele tinha passarinhos, periquitos. A gente tinha cachorro, a Lady, uma cocker spaniel. Tivemos marreco, tartaruga, cobaia, mil bichinhos de estimação na época do meu pai. Antes de a gente morar, ela foi uma escola de arte, o meu tio e a minha tia tocavam, chamada Piolim. A escola acabou, a gente foi morar na casa, mas o portão ficou: era o Piolim, um boneco. Para fora era ele de frente e atrás era ele de trás.”

Reminiscências também deram o tom na fala de Campos, o dirigente sindical, que contou como conhecera Manoel Fiel Filho, morto no mesmo DOI-Codi onde Herzog foi assassinado.

Aliás, apesar de terem suas dores tão próximas – a morte de Herzog foi em outubro de 1975, a de Fiel Filho em janeiro de 1976 – as famílias pouco se encontraram.

Dias antes de nossa corrida, conversei com Clarice Herzog, que contou ter ficado sabendo da morte de Manoel pelos jornais, na volta de uma viagem.

“Eu fui ao enterro de Manoel, e encontrei com ela, dona Thereza. Quando saiu a sentença do Vlado, fui falar com dom Paulo, agradecer. Ela estava esperando. Eu tinha marcado. Ela estava esperando ser atendida, me viu, falou comigo. Nós entramos juntas. Depois disso eu nunca mais a vi.”

A morte de Manoel aumentou a revolta de Clarice.

“Senti uma indignação enorme. Aquela coisa terrível da foto [encenando o suicídio]. O pessoal vivendo numa impunidade tão grande, eram tão poderosos, que nem precisava fazer um negócio bem feito. Ele sentado na bacia da privada com a meia. É complicado uma coisa dessas. A questão da impunidade e como eles se sentiram, se sentiram poderosos realmente. Não havia nenhum tipo de reação com relação a isso. Eu estava vivendo naquele momento muito ódio. Eu acho, inclusive, o que me fez agir, muito, foi o ódio que eu sentia. Essa raiva que eu tinha, muito mais do que indignação, me fez fazer muitas coisas. Me fez lutar para provar que ele tinha sido assassinado.”

Clarice também tratou de proteger os filhos, mantê-los em resguardo, como diz Ivo Herzog. “Mas a gente participou de tudo que aconteceu. A gente esteve no velório, no enterro, missa na Catedral e tudo o que aconteceu nos dias seguintes”, contou ele em uma conversa que tivemos dias atrás, preparando a jornada de hoje.

Ivo estava com nove anos, André tinha sete e pouco.

“A gente não conseguia entender. Era muita informação para alguém de nove anos, que não tinha contato com o contexto, com o que estava acontecendo na época. Nós éramos crianças que iam para a escola brincar. Gente como a gente. Gente comum. Até então. De repente, a gente deixou de ser, numa velocidade muito grande. Foi um processo muito intenso.

Tão intenso que Ivo adoeceu: “Foi um processo de somatização bastante complicado porque ninguém sabia o que eu tinha. Eu perdi muito peso, não comia, não fazia nada. Teve médico que falou para a minha mãe que eu ia morrer. Que não tinha o que fazer. Um médico idiota. Durou um ano, um ano e meio”.

Ao contrário do que previa o médico, o garoto sobreviveu. Formou-se em engenharia naval, casou, teve filho e hoje comanda o Instituto que leva o nome de seu pai, realizando ações em defesa dos direitos humanos.

E foi para lembrar a defesa dos direitos humanos, para lembrar vítimas de regimes que rompem os mais elementares direitos do cidadão, que caminhamos e corremos hoje.

Corrida por Manoel

O grupo de corredores enfrentou de saída uma ladeirona, dois quarteirões poderosos na Cardoso de Almeida, subindo para a avenida Doutor Arnaldo. Depois do esforço, a alegria de rodar no plano, recuperando o fôlego. Fizemos até uma parada estratégica –e também política, histórica.

Paramos em frente ao Emílio Ribas para lembrar outro dos atos infames da Ditadura Militar, que proibiu, no início da década de 1970, a divulgação de notícias sobre o surto de meningite que estava atingindo São Paulo e boa parte do país. Só em 1974, no município de São Paulo, foram 12.330 casos; uma média de 33 por dia. No mesmo período ocorreram cerca de 900 óbitos.

É a comprovação de que a Ditadura não matou apenas nas câmaras de tortura e nos cárceres, mas deixou a população sofrer e impôs a censura sobre o caso, pois a epidemia poderia ser vista como um sinal de fraqueza do regime.

“As autoridades de saúde negaram a existência da epidemia”, lembra o médico na entrevista ao Viomundo. “O Brasil vivia a época do ‘milagre econômico’ e as autoridades consideravam a epidemia um fracasso. Logo, empanava o brilho do ‘milagre econômico’. Por isso, optaram por negá-la. É como se determinassem a inexistência da epidemia por decreto.”

Como se viu, a farsa foi desmascarada no caso da epidemia e nos casos de tortura e assassinato. Mas muitos, na época e ainda hoje, teimam em dizer que nada aconteceu.

Pois a Ditadura, por criminosa e brutal que fosse, teve apoiadores na sociedade civil. Até mesmo entre a juventude o regime conseguiu cooptar acólitos; alguns, mais raivosos e cheios de ódio contra o povo, montaram o que ficou conhecido como CCC, Comando de Caça aos Comunistas.

Os ataques terroristas do CCC, porém, não ficaram sem resposta. Em 1968, aconteceu a famosa Batalha da Maria Antonia, rua que integrou nosso trajeto de hoje.

Nas escadarias do prédio da USP na Maria Antonia, nos reunimos todos para um registro da jornada sob a placa que relembra os mártires da ditadura militar, os que desapareceram ou foram mortos porque lutaram em defesa da democracia, pela liberdade e pelos direitos essenciais da pessoa humana.

Essas paradas de lembrança e homenagens fazem ainda mais especiais cada uma das jornadas da Corrida por Manoel. São mais do que reminiscências; trata-se de recuperar um passado muito recente do nosso Brasil, que não pode ser esquecido para que não venha a se repetir.

Foi esse, aliás, o sentido das palavras de Paulo Zocchi, o anfitrião da parada seguinte da Jornada por Herzog: fomos até o auditório do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, nomeado em homenagem a Vladimir Herzog.

O batismo da sala ocorreu no fragor da luta, em 1976, dois dias após o assassinato do jornalista, como conta o site do sindicato:

“O auditório Vladimir Herzog recebeu o nome do jornalista em 27 de outubro de 1975, dois dias após o seu assassinato nas dependências do Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa (DOI-Codi) do II Exército. Outros profissionais da imprensa também foram presos pela ditadura naquele mês: Anthony de Christo, Diléa Frate, Fred Pessoa, George Duque Estrada, Luiz Paulo Galé, Marinilda Marchi, Paulo Markun, Ricardo de Moraes Monteiro, Rodolfo Konder (in memoriam) e Sérgio Gomes. (…) Os jornalistas compareceram em peso à sede do Sindicato para organizar a reação frente ao arbítrio. Sob a direção do então presidente da entidade, Audálio Dantas, decidiram marcar um protesto e determinaram que o espaço do auditório, onde eram realizadas as assembleias, passaria a se chamar “Vladimir Herzog”. Desde então, o local se tornou uma trincheira do movimento sindical e da sociedade civil para debate e organização das ações em defesa dos direitos humanos, das conquistas trabalhistas, da liberdade de imprensa e da democracia no Brasil.”

Do Sindicato, enfim, saímos direto e reto para nosso destino derradeiro, a praça Vladimir Herzog.

Inaugurada em 2013 – e reinaugurada no ano passado, nos 40 anos na morte de Herzog –  a praça tem como maior destaque uma reprodução em mosaico da pintura criada por Elifas Andreato, em que representa a morte de Vlado com a dissonância gráfica que marca a obra “Guernica”, de Pablo Picasso.

Fica atrás da Câmara Municipal e dá as caras para o Joelma, o prédio que passou por um terrível incêndio em 1974, no qual 191 pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas.

A praça precisa de cuidados, como notou Sérgio Gomes – um dos jornalistas presos em 1975, pouco antes de Herzog. Mas, de qualquer forma, é um pequeno oásis de verde em meio ao cimento do centrão de São Paulo.

Mais do que isso, é uma demonstração de que a cidade honra seus mártires e homenageia quem luta pelos direitos humanos. Campanha, por sinal, que segue viva nas mãos do Instituto Vladimir Herzog, como nos conta Ivo:

“O Instituto, criado em 2009, é um instrumento para fazer uma ação que colabore com a formação de uma população cidadã e aprofunde os instrumentos democráticos, a partir do conhecimento da nossa história. A gente só não comete um erro se a gente souber que aconteceu uma coisa errada lá atrás. A gente conta essa história, põe para debate, instiga a discussão.”

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