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Proposta que visa estimular o jornalismo no PL das Fake News é perigosa

Apesar das boas intenções, possíveis impactos negativos não foram analisados

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Por Marina Pita*

O PL 2630/2020, aprovado pelo Senado Federal no dia 30 de junho, ganhou os holofotes mais uma vez. Uma proposta informal de relatório do PL das Fake News foi apresentada publicamente pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que vem sendo apontado como o parlamentar indicado por Rodrigo Maia (DEM-RJ) para relator da matéria. Até agora nada foi formalizado, mas um dos artigos do texto, que não consta na redação aprovada, traz uma proposta perigosa: obrigar as plataformas de grande porte a remunerar empresas de mídia e, teoricamente, também os profissionais do jornalismo.

De acordo com o próprio Orlando Silva, a proposta visa a remuneração de conteúdo jornalístico indexado pelas plataformas de busca. A intenção do deputado, conforme registro da mídia, é valorizar o jornalismo profissional: “Ao remunerar esses conteúdos, você vai fortalecer o jornalismo profissional, vai fortalecer o jornalista que tem compromisso com a ética, que tem na razão de ser da sua atividade profissional bem informar a sociedade”, afirmou o deputado.

O pagamento pelo uso do conteúdo jornalístico já havia sido defendido no mês passado por uma coalizão de 27 instituições representativas dos empresários do setor de comunicação social. Agora, diante do posicionamento público do possível relator da matéria na Câmara dos Deputados, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), entidade que representa os trabalhadores jornalistas, também veio à público apontar que o tema não deve constar do Projeto de Lei 2630/2020 por tratar-se de assunto diverso e pela falta de profundidade das discussões.

A Fenaj explicou em nota: “o Brasil precisa aprofundar o debate para que a remuneração do conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais não venha a resultar num acordo entre corporações, sem a efetiva participação dos verdadeiros autores, os jornalistas”. E complementou: “aspectos de grande relevância, como necessidade ou não de autorização prévia para utilização, cobrança e distribuição dos valores arrecadados, precisam ser colocados em debate”.

Também na perspectiva de apontar a complexidade do tema, a Coalizão Direitos na Rede da qual o Intervozes é integrante, realizou debate online para tratar das novas propostas incorporadas no relatório de Orlando Silva com o próprio deputado. Na ocasião também foram apresentadas dúvidas e complexidades diante da inclusão de apenas um artigo para tratar do tema da remuneração de empresas e jornalistas por conteúdo disponibilizado na web. Tais questionamentos e uma posição da Coalizão Direitos na Rede estão consolidadas neste documento.

Antes disso, na tentativa de contribuir para o debate público e observando a movimentação empresarial, o Intervozes publicou documento antes mesmo da divulgação do relatório informal com reflexões em torno da proposta da coalizão empresarial para regulação da publicidade e remuneração de empresas de jornalismo.

Como parte deste esforço, trazemos aqui uma tentativa de síntese das críticas já colocadas ao artigo.

Tema complexo e pode estimular oligopólios

A proposta de remuneração de empresas jornalísticas e seus profissionais por mineração de textos e dados produzidos por estes é relevante e deve ser debatida, mas sem ignorar a complexidade do tema, que requer mais do que um artigo para que tenha os efeitos desejados sem os efeitos negativos.

Vale observar que nos países em que uma obrigação de remuneração de conteúdo jornalístico pelo uso de pequenos extratos e por links levaram à (I) saída do Google da atividade de indexação de notícias e (II) ameaça de exclusão de determinados conteúdos da busca e de demais ferramentas de indexação.

Essas medidas podem levar ao aumento da circulação dos conteúdos produzidos por instituições que não farão tal cobrança e que não necessariamente têm a mesma responsabilidade em apuração e disseminação de informações e análises. Ou seja, uma medida como esta, se construída sem o devido cuidado, pode restringir a circulação de informações e aumentar o alcance da desinformação.

Além disso, se a regra for incorporada sem análise cuidadosa, pode ser estabelecido um modelo de negociação entre as instituições de comunicação e as plataformas e redes sociais. E há um risco premente de que pequenos, mas relevantes produtores de conteúdo, como The Intercept, Agência Pública, Ponte Jornalismo, entre outras, não consigam realizar tais negociações ou sejam desfavorecidas nas negociações. Algo que já acontece no setor de TV por assinatura, por exemplo. A Globo tem um peso enorme nas negociações, mas Band, SBT e Record, não.

Neste sentido, há um risco real de que a aprovação de forma genérica estimule a concentração de audiência e recursos em poucos veículos de comunicação no país. Isso em um cenário nacional já de oligopólio, conforme demonstrou a pesquisa Monitoramento de Propriedade da Mídia, realizada pelo Intervozes em parceria com a Repórteres sem Fronteiras.

Jornalistas precisam ser consultados

É preciso que o avanço em uma proposição regulatória deste tipo ouça a categoria profissional diretamente interessada, a dos jornalistas. E, como destacado, a entidade que a representa rejeitou a inclusão deste tema no PL 2630.

Não é razoável ignorar que os problemas de precarização da profissão de jornalista vão muito além do uso de seus textos e dados por ferramentas de busca ou redes sociais. Esses problemas não serão solucionados apenas com o enxerto deste tema, de última hora, em projeto de lei.

Nada garante que na disputa com as empresas do setor, a negociação seja favorável aos jornalistas. Há relatos de várias empresas que impõem contratos de licenciamento dos conteúdos produzidos pelos profissionais para demais veículos de um grupo sem remuneração, por exemplo. A categoria organizada mantém, inclusive, uma lista de proposições de regulação para garantia dos direitos dos jornalistas, que inclui o piso salarial nacional dos jornalistas, a proposta de nova Lei de Imprensa e a proposta de nova regulamentação profissional.

Limites, exceções e fiscalização

Além disso, seria precoce apontar a remuneração de produtores de conteúdo pela mineração de seus dados e textos sem discutir, por exemplo, casos sobre os quais não devem recair direitos autorais – inclusive para permitir pesquisas e para que a própria indústria de notícias produza conteúdo analítico. A título de exemplo, como publicou a Agência Fapesp, uma ferramenta desenvolvida pelo Instituto de Ciência Matemáticas e da Computação da Universidade de São Paulo para mineração de dados e textos de notícias, chamada Websensors, está sendo utilizada para ajustar os modelos de perspectiva de evolução da pandemia de Covid-19 pela população.

Outro tema de extrema relevância, e sem resposta até agora, é qual seria a entidade ou órgão a fiscalizar, cobrar e distribuir os recursos oriundos dos direitos autorais dos produtores de textos e dados minerados, inclusive aqueles de propriedade de empresas jornalísticas. Afinal, compreendendo que a negociação entre empresas e plataformas individualmente pode levar a efeitos indesejados, qual seria a alternativa? Uma entidade para cumprir esta função. E, no entanto, não há no país entidade para isso, como existe na Europa.

Conteúdo jornalístico e direitos autorais

Quando a proposta da Coalizão Liberdade com Responsabilidade é apresentada, defendendo que os conteúdos jornalísticos sejam remunerados pelas empresas de tecnologia que o utilizam, é inevitável que se questione quais os parâmetros para definir o que é jornalismo e a quem cabe avaliar se as instituições e conteúdos se enquadram. Este debate é delicado, requer atenção. Excluir determinados produtores de conteúdo do âmbito do jornalismo não só poderá ser considerado inconstitucional, mas também uma ameaça à implantação da censura de forma indireta.

Outro ponto a ser observado é a lei brasileira de direitos autorais, que precisa ser revista para que seja aderente ao contexto de disseminação de conteúdos e bens culturais em meios e dispositivos digitais. Faz-se necessária e urgente a ampliação das limitações e exceções ao direito de autor. Esta necessidade de harmonização entre direitos, compatibilização de interesses e adequação das limitações e exceções ao estágio de desenvolvimento e condições sociais do país está, inclusive, positivada no Plano Nacional de Cultura, que impõe ao Estado o dever de “promover e estimular o acesso à produção e ao empreendimento cultural; a circulação e o intercâmbio de bens, serviços e conteúdos culturais; e o contato e a fruição do público com a arte e a cultura de forma universal”.

Assim, a formulação de uma regra genérica acerca do direito de autor em um projeto de lei focado no combate às chamadas fake news, e que atende unicamente a um interesse específico, pode servir apenas para manter o atual estado de atraso regulatório do país neste campo, a despeito dos esforços empregados por alguns parlamentares. Vale dizer que é a partir da atuação de boa parte das empresas produtoras de conteúdo, inclusive jornalístico, que o país padece em uma estagnação quanto à regulação de direitos autorais.

Tal reflexão é relevante especialmente quando lembramos que o Marco Civil da Internet, aprovado há seis anos, já previa regras específicas para normas de direitos de autor na Internet em seu art. 19, que nunca saíram do papel. Isso se deu justamente porque não é do interesse de alguns setores o debate amplo. Trabalham apenas por enxertos estranhos em outras propostas legislativas.

Dada a diferença de cenário e a absoluta falta de acúmulo neste debate no Brasil, a inclusão de uma regra nos mesmos moldes europeus, no que parece ser a reta final dos debates do PL 2630/2020 na Câmara dos Deputados, pode ter efeitos prejudiciais que, repetimos, não foram sequer discutidos nestes últimos meses.

*Marina Pita é jornalista e coordenadora executiva do Intervozes

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