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Por que trabalho e legado de Paulo Freire são alvos de tanta desinformação?

‘As ideias de Freire são perigosas aos que entendem os sujeitos como meros depositários de conteúdos e que defendem uma educação bancária’

Foto: MST
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Na semana em que se comemora o centenário de Paulo Freire, a disputa por seu legado ganhou volume nas redes. Mesmo sendo patrono da educação brasileira, premiado em diversos países e tendo reconhecimento internacional nas principais universidades do mundo, o educador foi novamente alvo de desinformação e de ataques de diversas ordens, sobretudo por parte de políticos e veículos de mídia ligados à extrema-direita. Os ataques foram tantos que justificaram uma recente liminar para impedir o governo Bolsonaro de atacar a dignidade e a memória do educador – decisão descumprida por governistas.

Entre as inúmeras fake news a respeito de Paulo Freire, as mais corriqueiras o associam à doutrinação (diametralmente oposta à sua proposta pedagógica) e tentam culpá-lo pelos problemas estruturais da educação brasileira. Para isso, distorcem a realidade para convencer seguidores de que as ideias freirianas são implementadas amplamente nas escolas brasileiras e que seria essa a causa de qualquer problema educacional nacional. Cabe dizer que, infelizmente, os métodos de Paulo Freire não são predominantes nas escolas do país e nas práticas docentes. Quem dera fossem!

Os ataques, no entanto, não são novos. E há um papel da chamada mídia tradicional em sua difusão que precisa ser recuperado. Ainda em 2008, uma edição da revista Veja trouxe como matéria de capa um texto, terrível, com a chamada “O Inssino no Brasiu é otimo”. A matéria é ilustrativa do embrião que a revista foi para a ascensão da extrema-direita no país e para a criação de outros veículos de mídia com papel similar — como o portal O Antagonista. Há mais de 10 anos, já trazia a ideia de “doutrinação ideológica”, que resultou na lógica censura e perseguição a professores progressistas depois de lançado o projeto Escola Sem Partido.

Imagem da edição 2074 da Revista Veja, de 20 de agosto de 2008.

Não por acaso, uma das fontes ouvidas pela Veja foi o então ainda pouco conhecido movimento Escola Sem Partido. Entre seções que questionavam “você sabe o que estão ensinando a ele?” e alegavam que os alunos estariam “prontos para o século XIX”, Veja criticou o fato de professores considerarem como missão da escola “formar cidadãos” – nada mais próprio da ideologia neoliberal do que a crítica a uma educação voltada à cidadania.

O ataque direto a Paulo Freire partiu de uma pergunta feita a professores sobre com quem (pelas alternativas, com qual homem) eles mais se identificavam. Nas possibilidades de respostas figuravam Jesus, Einstein, Gandhi, Marx e Freire. O leitor atento notará que Freire era, por seu ofício, o mais identificado com a profissão de professor. No entanto, o fato do educador ter ficado em primeiro lugar na enquete (com 29% dos votos) foi o suficiente para a destilação do ódio da revista:

“Idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. […] Freire goleia o físico teórico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da história da humanidade. Só isso já seria evidência suficiente de que se está diante de uma distorção gigantesca das prioridades educacionais dos senhores docentes”.

Agressões em vida

Ataques como esse aos educadores foram proferidos a Paulo Freire também em vida. Na obra Pedagogia da Esperança, ele lembra que, mesmo na Unesco, questionaram sua condição de educador em função de uma “politização exagerada”. Em suas próprias palavras: “não percebiam, porém, que, ao negarem a minha condição de educador, por ser demasiado político, eram tão políticos quanto eu. Certamente, contudo, numa posição contrária à minha”.

É o que fazia a revista Veja. Na mesma edição, atacou materiais didáticos por uma suposta doutrinação ideológica, em especial do sistema de ensino COC — na época, concorrente do dono da Veja, o Grupo Abril. Os comentários da revista supostamente “corrigindo” informações ideológicas nos materiais didáticos são repletos de falsificações e de desinformação, frutos justamente de seu viés ideológico. Afirmaram que Salvador Allende teria cometido suicídio afundado em sua própria incompetência; que o capitalismo não estava relacionado à crise ambiental e era a única esperança para sua solução; que as estatais privatizadas geravam empregos e tinham melhores salários. Tudo isso entre ataques rasteiros a movimentos sociais, ao comunismo e a críticos da globalização neoliberal.

Essa lógica segue sendo propagandeada na mídia. Uma busca no acervo do portal Antagonista também traz inúmeros textos recentes repletos de ataques a Paulo Freire, com conteúdos próximos daqueles mobilizados nas redes sociais cotidianamente pelo bolsonarismo. É evidente que essa desinformação sobre o educador é parte de um projeto, que tem na mídia agentes importantes de circulação de ideias. Mas por que Paulo Freire e seu legado incomodam tanto esses setores?

A comunicação popular, seu caráter crítico e libertador e o combate à desinformação

O que da obra de Paulo Freire assusta tanto a extrema-direita e grande parte da mídia? Para contribuir com essa resposta, recuperamos três aspectos das inúmeras contribuições do autor: sua concepção libertadora de educação; seu entendimento sobre a comunicação; e sua rejeição ao fatalismo e ao pensamento único.

A educação, para Freire, deve ser libertadora, crítica e problematizadora da realidade. Partindo do cotidiano vivido pelos sujeitos, ela possibilitaria ampliar o olhar e a capacidade de leitura do mundo e do território vivido, rompendo com as relações verticais de opressão e promovendo uma autonomia de análise sobre a realidade. Ao olhar para a comunicação, uma educação com esses princípios ajuda a construir com os sujeitos uma capacidade de leitura crítica da mídia. Essa leitura também envolve o questionamento do poder concentrado dos meios de comunicação, o desvendamento de seus interesses e dos sentidos dominantes das tecnologias mobilizadas.

Mais do que isso, a educação popular parte de um entendimento de comunicação em que os sujeitos não estarão satisfeitos em ser meramente consumidores da mídia, em apenas receber informações e refletir sobre elas. O sentido da comunicação para Paulo Freire é a troca, o diálogo — nunca uma mera “transferência de saberes”. Para ele, a comunicação pressupõe a coparticipação dos sujeitos no ato de conhecer, que implica reciprocidade e diálogo. A educação libertadora, assim, promove a necessidade e o desejo da pluralidade e diversidade de vozes, de amplificarmos nossa própria voz e participarmos da comunicação social a partir de nossos territórios e cotidianos.

A comunicação popular, crítica e libertadora se faz nesse processo de ruptura que envolve o questionamento do sistema de mídia e do silenciamento dos grupos oprimidos e, ao mesmo tempo, a reivindicação de voz e de políticas de comunicação com sentido democrático. São inúmeras as experiências populares, comunitárias e alternativas de comunicação “dos de baixo” (como diria Milton Santos), carregando outros sentidos e olhares sobre e para o mundo.

As ideias de Freire são mesmo perigosas aos que entendem os sujeitos como meros depositários de conteúdos e que defendem uma educação bancária, que aliena e limita a capacidade reflexiva desses sujeitos. Estes desejariam, no máximo, educar pessoas como leitoras e consumidoras da mídia, sem olhar crítico, suscetíveis a máquinas massivas de desinformação e conformadas com o mundo em que vivem e com suas opressões.

Aí entra mais uma potência da obra de Paulo Freire: a rejeição ao fatalismo. Para ele, é impossível existir sem sonho. A utopia é uma necessidade fundamental do ser humano e as ideologias fatalistas são negadoras da humanidade. Ser no mundo significa transformar e retransformar o mundo, e não adaptar-se a ele, afirmou Freire. A libertação autêntica implica, assim, a ação e a reflexão dos sujeitos sobre o mundo para transformá-lo.

O legado de Paulo Freire nos provoca, portanto, a refletir sobre a urgência de participarmos da comunicação para transformá-la e transformar o mundo. E de levantarmos nossas vozes, coletivamente, para ocupar a imaginação sobre o futuro.

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