Intervozes

Militarismo x liberdade de pensamento e expressão nas redes sociais

Deter jovens por fazer críticas à Polícia Militar no Facebook é mais do que abuso de autoridade. É violação clara de um direito fundamental

Jovem que criticou PM de Pedregulho (SP) nas redes sociais foi algemado até a delegacia
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Por Natasha Cruz*

Antes de iniciar a leitura desse artigo, é muito importante que você tente se lembrar se já publicou, em alguma rede social, uma crítica à Polícia Militar da sua cidade. Digamos que você foi assaltado e postou em sua timeline que não havia segurança no local e que a polícia não estava fazendo um bom trabalho. Assim, genericamente mesmo. Já fez isso ou coisa parecida?

Pois você poderia ter sido detido! Detido e autuado por desacato à autoridade. Além, é claro, de receber uma visita da PM em sua casa, ser algemado e conduzido – na parte de trás da viatura –, à delegacia.

Não se impressione. Foi exatamente isso o que aconteceu na semana passada no município de Itatira, interior do Ceará, e em Pedregulho, em São Paulo, onde a Polícia Militar apreendeu, respectivamente, um adolescente de 17 anos e um jovem de 19 anos. Ambos haviam publicado em suas páginas no Facebook críticas genéricas à PM.

O primeiro escreveu, depois de saber de um assalto a um banco na cidade: “Pra pegar os filhos dos outros e bater na cara e outras coisas eles são bons. Aí chega o crime organizado aqui e leva um banco, e os PMs sumiram, cadê? Correu.” O segundo postou: “Aqui em Itatira os roubos acontecem e a polícia não faz nada, e quando faz é para ajudar bandido”. Ambos foram levados pela PM e tiveram suas mensagens virtuais registradas como desacato.

O caso revela a banalização da acusação deste crime e sua utilização como forma de intimidação e silenciamento, numa demonstração clássica de abuso de autoridade policial. Vale lembrar ainda que o desacato pode ser praticado contra uma autoridade (pessoa identificada) e não contra uma instituição.

Previsto no artigo 331 do Código Penal, o crime de desacato é recorrentemente questionado por sua incompatibilidade com as liberdades democráticas. Tal tipificação penal viola, por exemplo, o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que assegura a liberdade de pensamento e de expressão, e o artigo 5°, inciso IV, da nossa Constituição Federal, que garante o direito à livre manifestação de pensamento.

Em 1995, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou que o desacato é incompatível com as democracias porque impede que autoridades públicas estejam sujeitas ao controle público. Ou estará a atividade de agentes públicos imune a uma simples crítica e à livre manifestação de ideias?

A lógica do inimigo

Respeitar a liberdade de expressão não parece ser mesmo o forte da Polícia Militar. Todos conhecemos sua eficiência da PM em limitá-la, seja por meio da repressão policial a manifestações públicas, das esdrúxulas detenções justificadas por desacato ou ainda da barbárie cotidiana das execuções sumárias nas periferias, que varre do mapa muita gente que “fala mais do que deve”. Mas o que leva a PM brasileira a ser a força policial que mais mata no mundo e uma das mais violadores de direitos humanos?

Por óbvio não temos a pretensão de imergir com profundidade nessa reflexão nesse blog. Mas um aspecto central desse cenário advém da lógica militarista da PM, que forma seus agentes (públicos) para uma guerra na qual os “inimigos” devem ser silenciados. Não bastassem as incontáveis limitações que o cidadão comum enfrenta para se expressar nos espaços públicos, no caso desses jovens não lhes restou nem a expressão no mundo virtual. O silenciamento foi, de fato, bater na porta de suas casas.

Daí a urgência de repudiarmos tamanho abuso e de defendermos a liberdade de expressão como direito fundamental, de reivindicarmos políticas públicas que garantam a todas e todos este direito. Metade da população brasileira sequer tem acesso regular à internet. Pense agora nas dificuldades que a maioria do povo brasileiro tem para se manifestar livremente. E se você for você for mulher, negra, pobre, lésbica e morar no norte do País? E se for um jovem de uma cidade do interior do estado?

O caso dos jovens de Itatira e Pedregulho, vítimas de abuso de autoridade, não pode ser para nós menos do que uma convocatória para defesa do direito à livre expressão, da ampliação de mecanismos de participação e controle social de instâncias do Estado e, evidentemente, da exclusão do crime de desacato do ordenamento jurídico brasileiro.

*Natasha Cruz é jornalista, assessora de comunicação do CEDECA Ceará (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente) e integrante do Intervozes.

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